Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU
O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) aprovou na última terça-feira (5) um conjunto de parâmetros para auxiliar médicos na difícil escolha dos pacientes que devem ir para UTI em caso de necessidade. O protocolo estabelece um sistema de pontos que leva em consideração vários fatores que vão do nível de oxigenação do paciente até alterações na função renal, passando pelo histórico clínico e expectativa de vida do paciente, entre outros. Quanto mais pontos o paciente obtiver, menor é sua chance de conseguir uma vaga na UTI.
Embora o presidente do Cremerj, Dr. Sylvio Provenzano, tenha afirmado que os critérios não são voltados para a escolha entre pacientes em caso de falta de leitos, já que ao órgão cabe apenas elaborar parâmetros para internação, sendo responsabilidade do Estado prover os leitos, é evidente que a divulgação dessas orientações num momento em que o sistema de saúde começa a entrar em colapso frente à pandemia tem esse objetivo.
O Cremerj não é a primeira e nem o única entidade do país a tentar estabelecer critérios de escolha entre pacientes graves em meio à pandemia. No final de abril o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) já havia publicado uma recomendação de uso de um sistema de pontos para priorizar o acesso aos leitos de UTI no estado. Associações médicas como a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) e Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede) também produziram protocolos éticos e técnicos para auxiliar os profissionais de saúde.
Governadores e prefeitos preparam seus próprios protocolos. No Rio, um documento desenvolvido pela Secretaria Estadual de Saúde em conjunto com o Cremerj e a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) para orientar médicos na hora de escolher quais pacientes irão para leitos de UTI, aguarda publicação no Diário Oficial. Além disso, o governador Wilson Witzel (PSC) encaminhou à Alerj um projeto de lei para que profissionais de segurança e de saúde com suspeita de COVID-19 tenham prioridade de internação em unidades de saúde pública municipais e estaduais.
Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) determinou na quarta-feira (6) que a Secretaria Municipal de Saúde elabore e implante um protocolo de prioridade de utilização dos leitos públicos e privados de UTI quando a demanda for maior que a disponibilidade de vagas.
Quem vive e quem morre
Critérios para a definição de preenchimento de vagas em UTI não são uma novidade, os próprios protocolos desenvolvidos pelas entidades de classe nacionais são baseados em metodologias internacionais, como por exemplo o Sofa (Sequential Organ Failure Assessment, ou “Avaliação Sequencial de Falência de Órgãos”), desenvolvido em 1994 pela Sociedade Europeia de Terapia Intensiva e que consiste numa contagem de pontos que vai de 0 a 4, de acordo com o grau de comprometimento de seis sistemas orgânicos: cardiovascular, respiratório, hepático, hematológico, neurológico e renal. Estudos mostraram que valores altos no Sofa resultaram em altas taxas de mortalidade em grupos diferentes de pacientes, sendo que o risco de morte também é maior quando há um aumento nesse índice nas primeiras 96 horas de internação numa UTI.
Mas a questão não é a utilização de critérios para suporte de vida em pacientes com poucas chances de sobreviver. Não estamos falando de pacientes em estado terminal ou sob cuidados paliativos onde o médico, junto com os familiares (e em determinadas situações até com a ciência do paciente) decidem se, em caso de agravamento do quadro de saúde, deve-se ou não recorrer (ou seguir recorrendo) a suporte de vida, com intubação e ventilação mecânica, cuidados intensivos, etc.; e sim, até que ponto médicos devem decidir entre pacientes com chances de sobreviver, quais deles devem “ceder” o direito a lutar por suas próprias vidas no acesso à assistência e tratamento adequado. Estamos falando de paciente que irão morrer por falta de assistência de saúde e não apesar dela.
Um dilema típico da sociedade capitalista
Em meados de março, o Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Ressuscitação e Cuidado Intensivo (SIAARTI, na sigla em italiano) divulgou um documento defendendo que se seguissem critérios de justiça distributiva e de alocação apropriada de recursos limitados de saúde. O tratamento deveria ser garantido ao paciente com maiores chances de sucesso terapêutico e expectativa de vida e que, no caso de grande fluxo de pacientes, o hospital não deveria adiar a decisão de tirar da UTI uma pessoa que não respondesse ao tratamento e colocá-la sob cuidados paliativos.
Que se tenha chegado a esse nível na Itália já demonstra os limites da saúde no capitalismo. Após décadas de ataque ao estado de bem-estar social, cuja conquista foi produto, entre outras coisas, do enorme pavor da burguesia da explosão de processos revolucionários na Europa no pós 2ª guerra mundial, o país se viu diante de um sistema de saúde incapaz de absorver a demanda de doentes gerados pela pandemia, obrigando médicos a ter de escolher entre quem poderia viver e quem deveria morrer, mesmo que isso significasse retirar um paciente da UTI para dar a vaga a outro, um dilema típico de uma sociedade degenerada como a atual sociedade capitalista.
Mas no caso do Brasil é ainda pior, na medida em que o país teve um lapso de tempo que teria permitido aos governantes, já conhecendo a gravidade da situação, se preparar para enfrentar a pandemia, decretando quarentena com antecedência e fortalecendo o sistema de saúde para absorver o máximo possível os pacientes graves acometidos pela COVID-19. Que não o tenham feito, não tem nada a ver com a taxa de propagação do vírus ou a velocidade com que se espalha ou o grau de letalidade ou seja lá o que for, e sim o desprezo desses mesmos governantes pela vida do povo pobre e trabalhador. Afinal está morrendo mais gente que na China, mas… e daí?
O único critério até agora tem sido o de classe
Uma análise de protocolos de 11 estados norte-americanos realizado pelo jornal The New York Times e publicada no final de março, concluiu que a prioridade para pessoas mais saudáveis e com maior probabilidade de recuperação, na verdade, prejudica os mais pobres e negros que, por terem mais dificuldade de acesso à assistência médica ao longo da vida pelo alto custo desses serviços, apresentam mais problemas de saúde e logo acabam indo para o final da fila. A situação chegou a tal ponto que autoridades federais tiveram que proibir hospitais de discriminarem pessoas por idade, raça, religião ou deficiências físicas.
No Brasil, o colapso do sistema de saúde e a falta de leitos de UTI nas redes públicas e privadas de Manaus e Belém devido à pandemia, tem levado pacientes mais ricos destas e outras cidades das regiões Norte e Nordeste a recorrer a UTIs aéreas para fugir principalmente até São Paulo e Brasília em busca de tratamento adequado.
Levantamento feito pelo portal UOL junto a cinco empresas de aviação executiva que prestam serviço de UTI aérea apurou um aumento de 30% a 100% na demanda por esse tipo de serviço. Um voo em UTI aérea de Manaus para São Paulo não sai por menos de R$ 80 mil, de Belém a Brasília, por menos R$ 40 mil, mas o valor pode variar bastante entre as empresas e chegar a R$ 200 mil e R$ 120 mil nos mesmos trechos, dependendo da aeronave e outros fatores. Alguns planos de saúde mais caros e sofisticados cobrem o custo, mas a maioria destes voos é particular ou pago por grandes empresas para seus altos funcionários.
No estado do Rio, onde mais de mil pessoas aguardavam até a quarta-feira (6) numa fila, à espera da transferência para leitos na rede pública, sendo 500 desses em estado grave, o número de leitos ociosos chega a 1.800 nas redes federal, estadual e municipal. Somente a rede federal tem 601 vagas não utilizadas nos hospitais. De acordo com o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-RJ) e o Cremerj, a inatividade desses leitos se deve principalmente à falta de profissionais de saúde e insumos básicos, como respiradores e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).
A situação do Rio de Janeiro é emblemática, estudo realizado pela UFMG concluiu que o problema do estado não é a oferta de leitos e sim que a maior parte desses está no setor privado. 75% dos leitos UTI, por exemplo, pertencem à rede privada de saúde, percentual ainda mais alto que no país onde 55% dos leitos de UTI são privados. Ocorre que a maioria absoluta da população brasileira é usuária do SUS, no Brasil, 2 em cada 3 pessoas são usuárias do Sistema Único de Saúde.
Nenhuma vida é descartável
A questão, portanto, não é o protocolo do Cremerj ou das outras entidades de classe e sim, o motivo pelos quais esses protocolos estão sendo desenvolvidos. Como estabelecer critérios justos entre pessoas no acesso ao tratamento quando centenas esperam por um leito hospitalar? Como obrigar médicos a decidir qual dessas vidas pode ser poupada e qual deve ser descartada? Não há parâmetros de escolha possíveis que possam justificar o injustificável, justamente porque nenhuma vida é descartável. Esse é o debate.
Eu, como qualquer mãe, daria minha vida pelos meus filhos se fosse preciso, mas o mínimo que posso esperar é poder lutar pela minha própria vida caso adoeça, para poder vê-los crescer. Será que é pedir demais?
A falta de leitos não é uma casualidade, é uma política consciente dos governantes. São décadas de ataque ao Sistema Único de Saúde: terceirizações, cortes de verbas, fechamentos de leitos, demissões de trabalhadores, em uma palavra, sucateamento. A saúde pública nunca foi uma prioridade, pelo contrário, foi preciso uma enorme movimento da classe trabalhadora em defesa de uma reforma sanitária para impor a implementação do SUS, e mesmo assim, nem bem o movimento tinha alcançado essa conquista e o projeto foi desvirtuado em nome de interesses burgueses, abrindo espaço para a conformação de um sistema complementar, privado. Com o refluxo das lutas o SUS passou a ser dilapidado, desmantelado, arruinado, governo após governo.
Agora quando os representantes da burguesia são obrigados pelas circunstâncias a garantir o mínimo à população, ainda o fazem aproveitando a situação para rapinar ainda mais o Estado, não por acaso afloram denúncias de corrupção envolvendo a construção de hospitais de campanha, compra de respiradores e EPIs, etc.
Por um sistema de saúde 100% estatal e sob o controle dos trabalhadores!
Atualmente, os Estados Unidos é o país que concentra o maior número de infectados e mortos pela COVID-19 no mundo. A maior potência econômica do planeta foi incapaz de garantir a saúde da população frente a pandemia, apesar de todo seu desenvolvimento científico e tecnológico na área médica. A rede privada de saúde norte-americana é talvez o maior exemplo de como, em sendo a saúde uma mercadoria como outra qualquer e o acesso a ela limitado pelas condições econômicas dos indivíduos, acaba se convertendo numa arma de extermínio da burguesia contra a classe trabalhadora.
Essa é uma comprovação da importância que tem a defesa de um sistema público de saúde, gratuito e de qualidade e da necessidade de um SUS 100% estatal e sob controle dos trabalhadores. Não podemos aceitar que pessoas sigam morrendo por falta de tratamento médico, nem durante pandemia nem fora dela.
E esse é outro ponto que devemos levantar, cada vez fica mais evidente o quanto a luta pela saúde pública está vinculada à luta pelo socialismo, uma vez que a farsa do controle social por meio de conselhos onde participam também patrões e governo nunca foi tão evidente, fica comprovado também que o único controle social capaz de garantir os princípios do SUS é por meio do próprio controle do Estado pela classe trabalhadora.
*Enfermeira há 22 anos, trabalhou na rede pública e privada de saúde, atualmente é pesquisadora do ILAESE