Wagner Damasceno, de Florianópolis (SC)
Cláudio Donizete, do ABC Paulista

Wagner Miquéias F. Damasceno e Cláudio Donizete, da Secretaria Nacional de Negras e Negros

No dia 13 de maio deste ano completam-se 134 anos da abolição da escravidão no Brasil. Mas não há nada a se comemorar nessa data. Em primeiro lugar porque, desde o início, essa data é envolta numa fábula que atribui o fim da escravidão a um ato benevolente da princesa Isabel, uma monarca branca que passou a ser retratada como uma espécie de santa redentora.

Em segundo lugar, porque a abolição não foi acompanhada por nenhuma política de reparações aos negros e negras por séculos de escravidão no Brasil.

Tratados como coisas, gerações de negros e negras sofreram todo tipo de violência, trabalhando de sol a sol como propriedades de senhores brancos, sem direito à liberdade, sem direito ao fruto de seu trabalho e sem direito a criar seus próprios filhos, já que a escravidão também se estendia a eles.

Mas apesar de tudo isso, a lei áurea assinada pela princesa Isabel não estabelecia nenhuma medida para garantir condições dignas de existência para os negros e negras e seus descendentes. Possuindo apenas dois artigos, a lei não estabelecia nenhuma medida reparatória e indenizatória aos negros: “Art. 1º É declarada extincta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brazil; Art. 2º Revogam-se as disposições em contrario.”

E como parte do desejo do governo,  agora republicano, de negar políticas de reparações pela escravidão, Rui Barbosa mandou queimar toda a documentação de compra e venda de escravizados que estava no Arquivo Nacional.

Nas margens

Sem acesso à terra, moradia e emprego

Escravidão no Brasil, obra de Jean Baptiste Debret

Como se não bastasse uma abolição sem reparações, o governo e a classe dominante criaram uma série de medidas que dificultavam e, até mesmo, impediam o acesso de negros e negras à terra, seja para plantar, seja apenas para morar.

E se valendo dos discursos racistas de que a população brasileira deveria se embranquecer para “progredir”, a classe dominante justificou uma espécie de “segundo tráfico”, mas agora de trabalhadores imigrantes europeus, em sua maioria, expulsos do campo e empobrecidos, para substituir os negros e negras no mercado de trabalho assalariado no país. O racismo caía como uma luva para a lucrativa rede de negócios de imigração de trabalhadores europeus, que envolvia navios, hospedagens, agências, bancos etc., criada pela classe dominante brasileira e europeia.

Sem acesso à terra, preteridos em relação ao trabalhador europeu e estigmatizados pelo racismo, os negros e negras ocuparam as margens do nascente mercado de trabalho brasileiro, morando, também, nas margens das cidades. Os efeitos de quatro séculos de escravidão e de uma abolição sem reparações são sentidos ainda hoje.

Racismo

Números de uma tragédia racial e social

A expressão mais trágica do racismo é o assassinato. Segundo o Atlas da Violência de 2021, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios no país, perfazendo uma taxa de 29,2 por 100 mil habitantes, enquanto não negros apresentaram uma taxa de 11,2 para cada 100 mil habitantes. Isto é, um negro tem 2,6 vezes mais chances de ser assassinado do que uma pessoa não negra. E considerando os recortes de gênero e raça, 66% das mulheres assassinadas são negras.

Outro aspecto da violência racista reside no encarceramento: segundo dados do Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 67% dos presos no país são negros. Do total de presos, mais de ¼ está enquadrado por tráfico de drogas, em virtude da lei 6.368/1976 – criada durante a ditadura militar – e da lei antidrogas 11.343/2006 – assinada por Lula (PT). Uma lei que, dentre outras coisas, dá plenos poderes para o juiz definir se uma pessoa flagrada com drogas é usuária ou consumidora.

O parágrafo segundo do art. 28 da lei antidrogas diz que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Traduzindo esse “juridiquês” para a prática: se um jovem branco é flagrado com seis gramas de maconha, em frente ao seu condomínio no Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, ele é definido como usuário. Mas se for um jovem negro flagrado com os mesmos seis gramas de maconha, aos pés de uma favela ou no subúrbio do Rio de Janeiro, ele é definido como traficante. Mais racista e burguesa, impossível.

Por outro lado, vale apontar para um aumento da consciência contra o racismo no país. É o que mostra o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: em 2020, houve um crescimento de 29,8% nas denúncias de casos de racismo, em comparação a 2019. Sinais dessa mudança podem ser vistos na reação popular ocorrida, por exemplo, no metrô de São Paulo na semana passada, após uma passageira branca insinuar que os cabelos de uma passageira negra transmitiriam doenças. De forma espontânea, os trabalhadores e jovens reagiram e expulsaram a passageira racista do vagão e da estação do trem, numa impressionante demonstração de solidariedade e consciência de raça e classe.

Cortar o mal pela raiz

Basta de racismo e capitalismo!

O capitalismo se enriqueceu às custas da escravidão negra e, para justificá-la, criou o racismo nas suas mais variadas formas. A escravidão negra foi abolida, mas o racismo segue a todo vapor, pois, através dele, a burguesia consegue pagar menores salários para negros em virtude da nossa cor e da nossa raça; e destilando o racismo dentro da classe trabalhadora e do povo pobre, ela nos divide em campos hostis, nos impedindo de lutar de forma unificada contra ela.

E hoje estamos sob o governo de um genocida de ultradireita que usa as opressões para dividir os trabalhadores e criar bodes expiatórios para a crise econômica no país. Além disso, Bolsonaro não faz a menor questão de disfarçar seu ódio aos trabalhadores, negros, mulheres, indígenas, LGBTIs e pobres. Não à toa, aproveitou a pandemia para promover um verdadeiro genocídio no país, com mais de 650 mil mortos, cuja maioria é negra e pobre.

Organizar os negros e pobres da classe trabalhadora para tirar Bolsonaro do poder é a tarefa mais importante hoje. Mas para “cortar o mal pela raiz” e impedir que novos Bolsonaros possam surgir, é preciso construir uma alternativa socialista que conduza os negros da nossa classe e os pobres à tomada do poder e à construção de uma sociedade socialista, único caminho para abolir o racismo e toda forma de opressão do Brasil e do mundo.