No último dia 14 de outubro, a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) foi renovada por mais um ano. Já são mais de dez anos de ocupação militar no país, liderada pelo Brasil, e toda sorte de violação aos Direitos Humanos. A Liga Internacional dos Trabalhadores, LIT, entrevistou Didier Dominique, dirigente da organização haitiana Batay Ouvriye (Batalha Operária), que falou sobre a situação no país e o significado dessa ocupação.
Qual o balanço dos dez anos da Minustah no Haiti?
Hoje, é imperativo fazer o balanço da presença da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) no Haiti, após tantas ações múltiplas e humilhantes contra o povo haitiano. De fato se, no princípio, a mistificação da “Missão Humanitária”, aliada às manobras como: a de trazer a seleção brasileira para jogar futebol, ou a dos capacetes azuis cortarem bondosamente o cabelo dos meninos dos bairros populares, etc., produziu algum efeito, agora as ações mostraram sua real face com violações sobre meninas e meninos, roubos, mentiras, dominação política, militar e física (os capacetes azuis apontam metralhadoras para as pessoas), humilhações permanentes e participação em todo ato de dominação global.
Sem falar da cólera, proveniente de um batalhão nepalês, que a cúpula da ONU não quer considerar nem, ao menos, reparar. Sem falar no seu papel nefasto de queimar e destruir os acampamentos que a população pobre construiu depois do terremoto de 2010: o valor da terra valeu mais que a dignidade humana.
Mas isso não é nada diante da repressão generalizada aos bairros populares. Ali, o controle militar se impôs, pouco a pouco, de forma ostensiva. Matando incondicionalmente, enganando, comprando mentes e ideologias a partir da pobreza e, para isto, a corrupção se generalizou. Em 2005, as matanças dos resistentes, em Cité Soleil, ficaram famosas. Os agentes da Minustah e, em particular do Brasil, dispararam abertamente contra casas fechadas, escolas, igrejas e hospitais, matando pessoas por onde passavam. Em 2008, durante as revoltas da fome, dispararam abertamente contra as pessoas mobilizadas nas ruas, matando e ferindo centenas.
A dominação e repressão da Minustah contra o povo haitiano são inqualificáveis. Em 2008 e 2009, começaram a reprimir diretamente os operários mobilizad os, tanto nas fábricas quanto nas lutas mais gerais como em 2009 contra o salário mínimo de miséria que os burgueses do setor têxtil e seu governo reacionário queriam impor (e impuseram). Assim, apoiaram a imposição imperialista deste ramo capitalista e seus agentes internacionais, como o é, desde então, o clã Clinton. Os operários no Haiti não custam mais que US $ 4.35 (quatro dólares e trinta e cinco centavos – ou nove reais) ao dia. No entanto, nem este valor, é pago hoje em dia nas fábricas! E em cada mobilização, em todos estes últimos anos, a Minustah jogou um papel chave de repressão e desmonte sistemáticos.
Por isto, Michel Martelly, presidente do Haiti, disse clara e abertamente que, para a aplicação sistemática de sua política capitalista neoliberal, pró-imperialista e entreguista, a Minustah é seu principal “apoio”.
Hoje, a principal tarefa da Minustah é: formação, armamento e treinamento da polícia nacional, PNH. Por isto não está tanto nas ruas, mas intervém sempre que necessário. A transição está em marcha, e as forças repressivas haitianas assumem, pouco a pouco, o papel de controle e dominação, sustentado pela Minustah em benefício do Capital.
Contudo, o povo haitiano está cada dia mais esclarecido quanto à situação de extrema pobreza e desintegração social que a dominação imperialista do capitalismo neoliberal lhe impõe, seja diretamente, através dos lacaios locais, seja pela Minustah e pelos nossos “amigos da América Latina”!
Considerando tudo isso, qual é a situação política do país hoje?
A situação política está totalmente paralisada. Em 2011, Hilary Clinton, diretamente, e por meio da OEA, colocou literalmente Michel Martelly na direção do Estado. O objetivo era ter nesta região um dos maiores aliados ao projeto neoliberal imperialista. E assim foi. De fato, Martelly e sua equipe, desde sua chegada ao poder do Estado, não fizeram nada mais do que executar o plano norte-americano de dominação política e militar, com vistas à penetração capitalista em zonas francas, agroindustriais e turismo de luxo. Como o indica claramente o “Plano Clinton”.
Entre as classes dominantes, fica, no entanto, uma contradição importante: a de continuar com a acumulação primária no Estado e demais instituições paraestatais, e a chamada “boa governabilidade”, ou seja, o Estado como retaguarda e, se necessário, organizador da exploração capitalista. Daí a “resistência” de parlamentares e outros tecnocratas que não acumularam o suficiente ou que a evolução da luta de classes tenha descartado do poder governamental, criticam e exigem mais “democracia”, etc.
O outro lado, o “Plano Clinton” de dominação imperialista neoliberal já vigente a todo vapor, é sumamente antagônico. Não só na dominação militar, como também no aumento da dominação política, econômica e ideológica imposta pela equipe “Clinton-Martelly”, provoca o empobrecimento cruel do povo e, particularmente, a proletarização acelerada dos trabalhadores autônomos. Sem falar no aumento da “ditadura” governamental, simples expressão da necessidade capitalista-imperialista de mais e melhor controle de qualquer resistência diante de seu projeto criminoso e dantesco.
Não é casualidade que grande parte da equipe governamental esteja constituída por “duvalieristas” ou filhos daqueles sangrentos dinossauros.
A propósito, Jean-Claude Duvalier acaba de falecer. Qual foi a reação da população?
A “população”, no sentido “povo”, não teve nenhuma reação. Duvalier, apesar dos alvoroços feitos pelos diferentes setores das classes dominantes, já não é, em si, um tema de preocupação para o povo. Felizmente.
O que mais importa é ver que o desaparecimento do “ex-presidente vitalício” Jean-Claude Duvalier evidenciou a polarização que existe no seio das classes dominantes haitianas. De fato, a pergunta sobre “funeral nacional” ou não, dividiu fortemente as opiniões. E, finalmente, na cerimônia “íntima”, que teve que se “submeter” a família do morto, não se viram mais que duvalieristas da velha guarda do pai François Duvalier. Todos os que estão agora no timão do Estado ou chegaram lá graças à “reconciliação” no final do regime duvalierista, brilharam por sua ausência.
A impossibilidade de julgar o tirano que, junto com seus amigos e aliados de todo tipo, permitia funcionar a máquina infernal de repressão, demonstra não só os limites do famoso “Estado de direito” tão mal nomeado, mas também a mistificação da dita “democracia burguesa” que os ideólogos desta classe tratam de nos fazer engolir por todos os meios.
É, pois, na combinação contraditória destes dois momentos, funeral nacional abortado e julgamento bloqueado, que é possível compreender a evolução da situação haitiana. Julgar Duvalier teria sido colocar em questão todo o aparelho duvalierista. E, apesar de passado uma geração, é justamente este que está no poder.
Além disso, uma vez obtido a “reconciliação” com as “grandes famílias” (leia-se a burguesia comerciante do século XIX que Duvalier reprimiu fortemente para impor a presença dos latifundiários no marco da penetração capitalista, mas com a qual se “reconciliou” ao final para melhor dominar, explorar), deveriam ser denunciadas esta mesma burguesia pelo papel que cumpriram neste macabro banquete. Como, de fato, continuam até hoje.
Julgar Duvalier, talvez quisesse dizer, também, apontar o papel imperialista no ocorrido. Naquele tempo e… hoje!
Entende-se melhor, então, a impossibilidade de decisão que tiveram as classes dominantes sobre este tema. E se entende, também, as posições ambivalentes que tiveram tanto os representantes da Minustah como os diplomatas das diferentes embaixadas imperialistas.
As vítimas do campo popular, se quiserem algum dia resolver os sofrimentos a que foram submetidos sob aquela criminosa expressão das classes dominantes, deverão tornar-se independentes das alianças que não represente seus interesses ou sua real emancipação e que as levarão, como sempre, diretamente ao matadouro.
Tradução: Suely Corvacho