“Seguir em linha reta em direção a tudo o que amamos”. O verso recitado pelo ator Marco Ricca (Crime Delicado, 2006) traça com perfeição o espírito de A Via Láctea, filme de Lina Chamie (Tônica Dominante), lançado na Mostra Internacional de São Paulo e que, agora, chega ao circuito Rio-São Paulo. Movimento, caminho, direção e amor são alguns dos elementos centrais do longa, fundindo várias formas de expressão, como cinema, teatro, música e, sobretudo, a poesia.
A partir de um mote trivial, a diretora, que também assina o roteiro, desenvolve um longa complexo e profundo, que perscruta as intenções e motivações dos personagens numa cidade caótica, num exercício de autodescoberta. Marco Ricca é Heitor, escritor e professor universitário que namora a jovem Júlia, estudante de veterinária e ex-atriz, papel interpretado por Alice Braga (Cidade Baixa, 2005).
Uma discussão por telefone revela uma relação já desgastada. “Não sei se ainda te amo”, afirma Júlia, propondo o indefectível “dar um tempo”. Tais palavras se abatem duramente sobre um desprevenido Heitor. Quer saber se existe outra pessoa. Exibe um ciúme agravado pela beleza e juventude de Júlia. A discussão termina da pior maneira possível, com o namorado ciumento sugerindo que Júlia ligasse ao seu amigo, Tiago, fruto de todo seu ciúme. Consternado, Heitor pensa nas palavras precitadas e, de súbito, corre para o carro a fim de encontrar e se reconciliar com a namorada.
A partir de então, o filme se passa em meio ao tumultuado trânsito da capital paulista. Preso no rush do final de tarde ou perdido no labirinto sem fim das ruas paulistanas, Heitor mergulha nas entranhas da cidade, ao mesmo tempo em que redescobre seus próprios sentimentos. Interage com personagens urbanos que fornecem pistas sobre sua jornada. A música clássica intercalada com a popular reflete a metrópole de muitas faces. Cada capítulo de seu romance com Júlia aparece como flashback.
A narrativa não-linear, por vezes anárquica, fornece pouco a pouco os elementos da história, que o espectador constrói por si mesmo a cada cena, como um quebra-cabeça. A confusão e perplexidade de Heitor fundem-se à cacofonia da cidade e à própria narrativa do filme, constituindo uma totalidade caótica. É nas ruas, túneis e viadutos de São Paulo que o personagem, um escritor, imerso em sua jornada, encontra a poesia que fundamenta sua própria vida.
É desta forma que a diretora Chamie introduz Drummond, Manuel Bandeira, Rimbaud e o poeta Mário Chamie, seu pai. O longa é cheio de referências à literatura. Numa das cenas, Heitor, parado no trânsito, folheia Fragmentos de um Discurso Amoroso, do semiólogo francês Roland Barthes. Tal como o filme, o livro de Barthes trata sobre o amor, fragmentando o tema em verbetes. “O sujeito apaixonado é atravessado pela idéia de que ele está ou está ficando louco”, afirma o semiólogo, descrevendo uma situação que bem cabe ao personagem.
No entanto, ao contrário do que possa parecer, a profundidade do tema e os experimentalismos na linguagem não impedem que o longa tenha momentos de humor. A relação entre o amuado professor e a jovem estudante e atriz, contada em flashbacks, termina por conferir certa suavidade ao filme.
Em certos momentos, A Via Láctea pode lembrar o recente Não por Acaso, de Phillipe Barcinski, principalmente por relacionar o árido ambiente urbano às vidas de seus personagens. Porém, enquanto no longa de Barcinski a cidade determina os destinos de seus personagens que lutam por controlar seu próprio rumo, no filme de Chamie é o personagem que se lança à cidade, percorrendo uma jornada que se torna metáfora de sua própria autodescoberta.
Um filme difícil de classificar, mas que não deixa de ser uma história de amor.
FICHA TÉCNICA:
Título Original: A Via Láctea
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 88 minutos
Ano de Lançamento: 2007 (Brasil)
Direção: Lina Chamie
Roteiro: Aleksei Abib e Lina Chamie
Montagem: André Finotti
Produção: Lina Chamie
Fotografia: Kátia Coelho
Direção de Arte: Mara Abreu
Figurino: Marjorie Gueller e Joana Porto
Elenco: Marco Ricca (Heitor), Alice Braga (Júlia), Fernando Alves Pinto (Thiago)