Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

No último dia 21 de fevereiro, a Corte Constitucional da Colômbia decidiu pela descriminalização do aborto até as 24 semanas. Com isso o país passa a ter uma das legislações mais avançadas do mundo sobre o aborto. O Opinião conversou com María Paula Martínez, médica, ativista pelos direitos das mulheres e das pessoas sexualmente diversas e militante do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) da Colômbia, filiado à Liga Internacional dos Trabalhadores, que contou um pouco como se deu essa conquista.

Opinião – Há poucos dias, a Colômbia legalizou o aborto até 24 semanas, como era a legislação antes disso?

María Paula Martínez Faz mais de 15 anos que a Colômbia descriminalizou o aborto, sem limite de idade gestacional, em três situações: estupro, malformação incompatível com a vida e por motivos de saúde, incluindo saúde psicológica. Contudo, milhares de abortos que deveriam ser legais continuaram sendo clandestinos e inseguros devido às barreiras e à interpretação equivocada da lei, fazendo com que 70 mulheres morressem por ano por complicações de aborto inseguro, 130 mil fossem hospitalizadas e centenas processadas.

As organizações de defesa dos direitos das mulheres viram a necessidade de exigir a descriminalização total para evitar essas mortes e sequelas. Por 16 anos o Congresso se recusou a legislar, por isso recorremos novamente à Corte Constitucional, exigindo que o crime de aborto fosse eliminado do Código Penal, por ir contra o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade humana da mulher e constituir regra discriminatória por razões de gênero; a maternidade forçada pode ser entendida como uma forma de tortura.

E como se deu essa conquista?

Para conseguir a descriminalização total o movimento se organizou e entrou com uma petição de inconstitucionalidade, que durou mais de 500 dias sem ser analisada, já que os antidireitos fizeram diversas manobras de boicote, impugnando magistrados e tentando impedir a decisão. Fizemos várias manifestações e uma importante passeata no 28 de setembro do ano passado, com cerca de 6 mil mulheres.

Finalmente, em 21 de fevereiro, o plenário da Corte eliminou o crime de aborto até a 24a. semana, ou seja, na Colômbia o aborto é legal a pedido da mulher até a semana 24, e após isso segue valendo o modelo das três causas.

O que é o Movimento Causa Justa e qual seu papel nessa conquista?

Causa Justa é o movimento que apresentou a demanda, conformada inicialmente pela Mesa pela Vida e Saúde das Mulheres, o Centro de Direitos Reprodutivos, Women’s Link Worldwide, Católicas pelo Direito de Decidir e o Grupo Médico pelo Direito de Decidir do qual faço parte. Após a formação desse núcleo para a Causa Justa e sua petição, outras 94 organizações sociais e coletivas se juntaram, a maioria coletivos feministas, incluindo nosso partido, o PST. Além de apresentar a petição, Causa Justa continuou trabalhando em ações de mobilização e advocacia, bem como na pedagogia para alcançar a descriminalização social, ou seja, contra o estigma em relação às mulheres que abortam e aos profissionais que realizam o aborto.

O que essa decisão representa para as trabalhadoras colombianas e latino-americanas?

Essa vitória histórica das mulheres colombianas é também das mulheres latino-americanas e do mundo. Primeiro, porque não é um evento isolado, mas da maré verde que vai da Argentina ao México, e parte de nossa vitória devemos a esse processo de luta continental. Segundo, porque eleva a fagulha e marca um precedente ou ponto de referência para futuras lutas, pois sendo uma das legislações mais avançadas do mundo, pressionará para a descriminalização total e motivará as lutadoras e lutadores a não se contentarem com menos. Terceiro, e muito importante, porque o direito ao aborto na Colômbia, sendo um direito fundamental, se aplica a qualquer mulher que esteja na Colômbia, o que significa que as imigrantes podem acessá-lo mesmo sem documentos (na Colômbia temos mais de um milhão de imigrantes venezuelanos, por exemplo); mas eventualmente uma mulher do Brasil, Equador, Peru etc. poderá viajar para a Colômbia para fazer um aborto, o que pode ser um pouco mais viável.

A que você atribui essa importante vitória na Colômbia?

Sem dúvida à luta, ou seja, além da certeza dos argumentos da petição, a mobilização foi decisiva, não apenas as ações específicas ao aborto. O processo de lutas que a Colômbia vive desde 2019, com dois momentos semi-insurrecionais de revolta popular, com semiparalisação da economia, bloqueios, barricadas e confrontos entre a juventude e a polícia. A vanguarda desse processo têm sido as mulheres e os jovens. E é acompanhado por um importante avanço na consciência democrática e por uma rejeição majoritária da opressão sexista e racista. Então essa é a razão fundamental, é uma vitória desse processo ainda vivo.

Qual o papel do PST nesse processo?

O PST aderiu formalmente à demanda da Causa Justa e estivemos presentes em várias atividades, fizemos um programa especial de vídeo tratando dos principais mitos e tabus sobre o aborto. Nossa organização e nossa corrente sempre foram a favor do aborto legal, lembremos que Lênin e os bolcheviques o legalizaram na Rússia em 1920, sendo o primeiro país do mundo. Aderir à Causa Justa era o mínimo que podíamos fazer.

Você, como médica e militante, tem uma longa trajetória de ativismo na luta pela legalização do aborto. Como se sente diante dessa conquista?

Realmente, além de militante socialista, sou ginecologista-obstetra e integrante do Grupo Médico pelo Direito de Decidir. Fomos demandantes e além dos direitos das mulheres, defendemos que o crime de aborto também viola o direito de exercermos livremente nossa profissão, por isso fomos alvo de perseguição policial, estigmatização etc..

Como mulher, médica e socialista, estou feliz por essa grande vitória que dignifica a vida das mulheres e meninas colombianas, principalmente as da classe trabalhadora. Estamos felizes porque evitará milhares de hospitalizações desnecessárias e salvará vidas, pois Lorena Gelis (que fez um aborto clandestino em Barranquilla) morreu de hemorragia em janeiro. Poucas semanas antes dessa decisão, que poderia ter lhe salvado.

Era hora de remover essa criminalização, que só serviu para punir desproporcionalmente as mulheres pobres, menos escolarizadas, rurais, jovens, indígenas e negras, e que nunca serviu para impedir abortos ou salvar fetos.

Quais os desafios do movimento a partir de agora?

Primeiro, os setores anti-direitos (erroneamente chamados pró-vida) e reacionários da burguesia farão todo o possível para impedir o cumprimento da regra e gerar estigma sobre as mulheres que abortam e os médicos que realizam abortos.

Também devemos dizer que, sendo um passo muito importante, não é uma vitória completa, pois o aborto continuará sendo crime além de 24 semanas, exceto nos casos que já citei. A prestação do serviço dependerá do sistema de saúde nas mãos hoje das EPS criminosas [empresas semiprivadas que lucram e administram a saúde na Colômbia]. Teremos que estar vigilantes ainda porque uma onda de objeções de consciência virá, muitas delas ilegais, podendo ameaçar seriamente o acesso das mulheres ao aborto. É por isso que estamos chamando para celebrar, mas também para defender a vitória nas ruas.

Que lições as trabalhadoras brasileiras podem tirar do processo colombiano?

A lição mais importante é que a luta serve, luta organizada, unidade de ação com outras organizações que perseguem o mesmo propósito servem e são poderosas.

Outra é que não há lei ou norma eterna ou imutável, o aborto pode ser descriminalizado em todos os lugares, assim como pode retroceder também. Enquanto durar esse sistema capitalista de opressão e exploração, essas conquistas estarão ameaçadas, como estão agora nos Estados Unidos.

Outra coisa é que juntamente com a mobilização e as ações legais, trabalhe-se na pedagogia, na educação dos(as) trabalhadores(as), ajudando a entender as mentiras da burguesia reacionária, desmistificar o aborto e explicar porque é um problema de classe (as ricas não vão para a cadeia nem morrem por fazer aborto em nenhum país do mundo), a proibição só criminaliza e mata as pobres, as trabalhadoras, as camponesas e as meninas. Uma mudança importante começou a acontecer aqui, embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer.

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