O início do fim da ditadura argentinaNo dia 2 de abril, completaram-se 25 anos do início da guerra das Malvinas, travada entre a Inglaterra e a Argentina. Uma guerra que provocou uma profunda surpresa na opinião pública mundial. Ninguém esperava que um país governado pela ditadura mais pró-imperialista de toda história argentina enfrentasse alguma potência capitalista, muito menos a Inglaterra, um país imperialista que vivia à sombra do imperialismo norte-americano. Isso não impediu que as Forças Armadas argentinas invadissem as ilhas e iniciassem um enfrentamento com o imperialismo, não só inglês, mas também norte-americano.

Em primeiro lugar, lembremos um pouco o que são as Malvinas. Estas ilhas, localizadas a uns 480 km do território argentino, na região da Patagônia, no sul do país, foram ocupadas pela Inglaterra em 1833, expulsando o seu governador e sua pequena população. A partir desse ano, a Argentina sempre exigiu a devolução do território usurpado.

Esta exigência, levantada sempre por vias diplomáticas, nunca passou de uma mera formalidade. Em nenhum momento a questão das Malvinas se constituiu em obstáculo nas relações entre a burguesia argentina e o imperialismo.

As ações militares do dia 2 de abril, porém, causaram total surpresa, pois a ditadura não tinha tomado nenhum gesto anterior que denunciava suas intenções. Assim, a Junta Militar governante ocupa o arquipélago e derrota à insignificante guarnição inglesa, quase que sem resistência.

Mas, afinal, porque os militares argentinos tomaram essa decisão? Nesse momento, a ditadura militar estava numa profunda crise. Os militares, no governo desde 1976, desenvolveram uma repressão sangrenta, com assassinatos, desaparições e torturas generalizadas. Chegaram a fazer um verdadeiro genocídio, matando cerca de 30 mil pessoas e golpeando profundamente ao movimento operário e popular. Em 1982, entretanto, a situação estava mudando. O plano econômico pró-imperialista, inicialmente aplicado sem muitos problemas, tinha estourado e a inflação disparou. Começaram mobilizações populares, ainda que reprimidas, mas que mostravam que os trabalhadores estavam se recuperando dos golpes recebidos. Nesse contexto há uma desestabilização da ditadura.

Para retomar o controle da situação, os militares a tentam um golpe de efeito: tomar as ilhas Malvinas, velha reivindicação nacional, e assim recuperar o prestígio perante a população. Na realidade isso significou uma “fuga para frente”, já que tudo estava baseado em um cálculo político completamente errado: que o imperialismo norte-americano toleraria esta atitude e que os ingleses não estariam dispostos a iniciar uma guerra por umas ilhas que já não tinham a importância estratégica de outrora.

Essa avaliação baseava-se essencialmente na proximidade da ditadura com o governo dos EUA de Ronald Regan. Uma relação que se aprofundou muito depois do envio de militares argentinos (especialistas em “guerra suja”) para treinar aos ‘contras’ nicaragüenses.

No entanto, uma coisa era o imperialismo encorajar uma ditadura assassina em um país do Terceiro Mundo para reprimir o seu povo e aplicar um plano econômico a serviço de seus interesses, outra bem diferente é permitir que essa ditadura se levantasse contra a ordem imperial, usando a força contra um país imperialista como a Inglaterra, aliada histórica dos Estados Unidos.

Por um breve período Reagan tentou aparecer como mediador da crise, tentando convencer aos militares argentinos a retroceder. Não obtendo sucesso, o então presidente dos EUA passou a apoiar a Inglaterra, tanto militarmente, entregando armas, como política e diplomaticamente.

O ditador argentino, Galtieri, também subestimou a reação inglesa à invasão. A primeira ministra britânica, Margaret Teacher, enfrentava muitos problemas para aplicar os planos neoliberais no seu país contra a resistência operária. O ataque argentino foi um verdadeiro presente para ela, já que permitiu unificar a população inglesa ao seu governo apoiando-se no sentimento de honra nacional imperialista, muito forte na população. Assim, a Teacher fez o possível para evitar uma solução de compromisso e se dedicou com entusiasmo a preparar a guerra.

Mas, se todos os cálculos políticos feitos pelos ditadores se mostraram equivocados, porque então os militares argentinos não retrocederam e evitaram o conflito?

A resposta é simples. A manobra dos militares provocou a explosão de um sentimento popular antiimperialista muito profundo. A ditadura já não tinha condições de retroceder. Os aprendizes de feiticeiros não podiam controlar mais as forças que tinham desatado.

Existem muitos exemplos deste sentimento popular. Por exemplo, o governo formou um “Fundo Patriótico”, que arrecadava doações voluntárias para os soldados. Milhares de pessoas foram voluntariamente contribuir para tal fundo. Um exemplo disso foram as mulheres idosas que entregaram seu único patrimônio: anéis de casamento ou pequenas jóias de sua juventude. Milhares de jovens se apresentaram como voluntários para lutar contra os ingleses. Iniciativas de solidariedade aos soldados mobilizaram milhões de pessoas.

Entretanto, esse sentimento não nasceu só na Argentina. Em muitos países de América Latina se sucederam manifestações de massas em apoio do país irmão. Um caso especialmente expressivo foi Peru, onde se deram enormes mobilizações e o governo enviou armas em apoio.

Tudo isso não foi casual. A crise da dívida externa, que explodiu esse ano provocou uma reação de ódio antiimperialista em todo continente.

Neste contexto, os militares argentinos não encontravam nenhuma saída. Envolvidos numa guerra que não queriam e que tomou caminhos bem diferentes das suas intenções iniciais, ficaram totalmente incapazes de organizar o combate. Seu servilismo e respeito ao imperialismo chegou a extremos inacreditáveis. Por exemplo, o banco inglês, Banco de Londres, teve graves problemas, já que a maioria dos correntistas retirou seu dinheiro de lá. O banco não tinha condições de enfrentar esta “corrida”, pois isso significaria sua falência. Ainda que pareça impossível, o governo argentino, em meio da guerra auxilia ao banco inglês com vultosos créditos para evitar sua bancarrota. Isso mostra que nenhuma medida contra as propriedades inglesas no país foi tomada.

Tampouco se fez o menor esforço em golpear o capital imperialista onde mais podia doer: no pagamento da dívida externa. Tentou-se conscientemente manter o conflito estritamente localizado nas Malvinas e como um enfrentamento militar convencional, um terreno que obviamente era desfavorável.

Mas do ponto de vista estritamente militar tampouco se fez algum esforço para lutar seriamente. Por exemplo, não se tentou ampliar a pista de pouso que existia nas ilhas, algo que poderia permitir a Força Aérea manter a frota inglesa afastada. Também foram enviadas apenas uma pequena parte das tropas existentes, além de deixaram no continente as armas mais modernas e eficazes (artilharia e tanques). A escandalosa sabotagem chegou a ponto de deixarem os soldados argentinos passaram frio e fome, porque não foram garantidos víveres e roupa de abrigo para os soldados.

É obvio que pelo seu passado genocida, seus compromissos com a burguesia e o imperialismo e sua ideologia reacionária, os militares argentinos eram absolutamente incapazes de dirigir um enfrentamento contra o imperialismo. Mas poderia ter surgido alguma direção alternativa?

Claro que não era fácil. O controle ditatorial que existia no país decaiu bastante ao explodir o conflito, mas ainda era bastante considerável. Por outro lado, a maioria dos ativistas que lutaram nesses anos contra a ditadura fez uma leitura errada. Foi convencida pela propaganda imperialista de que era preferível a derrota argentina para arrebentar com o regime dos militares. Não entenderam que, por um lado, o triunfo inglês era um triunfo de Teacher e o fortalecimento de sua política de reformas neoliberais. A vitória inglesa seria um fortalecimento do imperialismo no geral. Isso num momento que, pela crise da dívida, era possível criar um forte movimento antiimperialista na América Latina. Por outro lado, um triunfo contra o imperialismo fortaleceria o movimento de massas na Argentina, o que isso significaria que a ditadura militar ficaria com os dias contados.

A guerra terminou 74 dias depois de seu início com a rendição das tropas argentinas nas Malvinas e com a explosão de um sentimento de fúria na população do país, marco do início do fim da ditadura militar.

Tal fúria nasceu após a população conhecer os detalhes e a verdade sobre o que ocorreu. A trama de mentiras foi quebrada depois que a população descobriu que os soldados (recrutas de 18 anos) passavam fome e frio e eram submetidos a tratos vexatórios pelos oficiais. Ou ainda, quando se descobriu que os milhões de dólares do “Fundo Patriótico” sumiram e ninguém sabia onde foram parar.

Tem uma pequena anedota ilustra por completo o que significou a direção militar dessa guerra. Pouco depois da rendição, uma pessoa compra um chocolate numa quitanda. Logo ela se surpreende ao achar dentro do embrulho uma carta de uma criança “aos soldados que estão defendendo a pátria nas Malvinas”. Era uma das tantas doações feitas pelo povo para ajudar aos soldados e roubadas como todas as outras.

Não é de estranhar que ao aparecer centenas de estes exemplos a fúria contra os militares genocidas fosse infinita.