Imagem registrada pelo ambientalista e sua namorada
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Dirigido por Werner Herzog, que já fez outros filmes onde o embate do homem com a selva era o tema central, como Aguirre, a Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo, filmado na Amazônia, O Homem Urso, em cartaz em São Paulo, é mais uma mostra do poder do cinema do que propriamente uma história sobre homens e ursos.

O filósofo alemão Walter Benjamin dizia que a arte é uma provocação que o artista faz contra o mundo em que vive. Podemos ver este filme dessa maneira, uma provocação de Werner Herzog. Grande parte das imagens não são dele, mas de Timothy Treadwell, um jovem americano que durante 13 anos seguidos passou o verão isolado, numa região inóspita do Alasca, em meio a ursos pardos e raposas. Na sua derradeira expedição, Tim é morto, junto com a namorada, por um dos ursos. Nessas expedições, ele filmava tudo o que via e nos outros meses do ano militava pela defesa dos animais. Herzog recuperou as horas e horas de filme rodadas por Timothy e fez O Homem Urso. Assim, a impressão de realidade que vivemos é total. O que temos diante dos olhos é a realidade nua e crua, já que, como observou Christian Metz, o cinema tem o poder de desencadear no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo de participação.

Tudo nele é contraditório. As imagens, o personagem central e os demais, a selva, os ursos. E nós, espectadores, também. Herzog não se preocupa em resolver nada, mas mostrar as coisas de uma maneira dialética para que a reflexão sobre elas não seja formal.

A força das imagens em movimento

Cinema dentro do cinema, Herzog usa as imagens do próprio Timothy, muitas delas sem qualquer tipo de edição, trazendo para a tela o ponto de vista de Tim, e não dele, Herzog. O que foi filmado, o que está ali, é o que Tim queria mostrar, o seu ponto de vista sobre a selva, os ursos e as raposas com os quais tentava conviver. E nessas imagens nunca vimos as coisas duras e trágicas, apenas as idílicas, tudo idealizado por ele, até mesmo um momento em que dois enormes ursos se enfrentam numa luta cruel. Tim sempre aparece feliz nas imagens que fazia com câmera parada, sobre um tripé. E você fica se perguntando se estaria fingindo, mas não, era pura sinceridade, e então, como ele conseguia tal façanha naquele ambiente de ausência quase total de tudo o que signifique a mínima proteção para o ser humano?

A contradição aqui é evidente, porque ele tinha razão de estar feliz. De certa maneira, atingiu o seu objetivo. Conviveu meses a fio com os ursos, naquele lugar mais que tenebroso. Com as imagens feitas por Tim, Herzog parece querer mostrar isso, provar que Tim de certa forma venceu o desafio, ele estava lá, naquela imensidão desolada, totalmente desprotegido e indefeso diante daqueles ursos enormes e selvagens. E feliz, sempre rindo e conversando com eles tão de perto que chegavam a encostar o focinho na sua câmera.

Tim era apaixonado por cinema, e suas imagens deram a Herzog a chance de falar sobre o próprio cinema, de como só o cinema conseguiria atestar a vitória de Tim, ou mesmo dar-lhe essa vitória, que ao mesmo tempo e contraditoriamente foi a sua derrota. Tim poderia ter usado uma máquina fotográfica ao invés de uma filmadora. Mas as fotos, que também atestam aquilo que de fato ocorreu, não têm a impressão de realidade que dá força ao cinema, a impressão de que estamos vivenciando aquela situação, sentimento que advém sobretudo das imagens em movimento.

Junto com as imagens de Tim, Herzog usou as suas próprias imagens. Mas a tal ponto elas se fundem que ficamos em dúvida se aquilo tudo não é uma coisa só, tudo feito por Herzog, ou tudo feito por Tim. Nas suas imagens Herzog fala da morte de Tim, do que veio depois que ele se foi. Como se Herzog fosse a continuação de Tim, a câmera que ele deixou desligada no momento em que foi atacado pelo urso que o matou, e que por isso não conseguiu registrar justamente a única cena que de fato atestaria que Tim, na concepção de seus críticos, teria alcançado seu objetivo real: o suicídio.

Homem e urso, na mesma direção

De fato, Herzog desmente essa idéia, ao usar o tempo todo as cenas de Tim. A impressão de realidade do cinema atesta que ele buscava ali não a morte, o fim, mas o contrário, a vida, o início. Tim era um jovem pobre, filho de um operário americano, e nunca teve uma perspectiva clara na vida. Como a maioria dos jovens pobres, não tinha muito futuro, sentia-se rejeitado na civilização, e precisava desesperadamente encontrar um sentido para a vida. Foi em busca dessa vida que partiu para o Alasca, supostamente o lugar onde menos a vida humana teria algum sentido. Estava ficando alcóolatra, mas os ursos o ajudaram; largou a bebida porque não queria aparecer diante deles como um trapo humano.

E no seu afã de buscar “salvar” os ursos, ou a si mesmo, não sabemos, Tim fez algo que a lógica da natureza condena. Violou as suas regras. Em nome de sua preservação, invadiu uma área selvagem para domesticá-la, civilizá-la. Idealizou a natureza, tanto os animais quanto os homens. E mostrou aos ursos o lado bom dos homens, quando tanto homens, na sociedade de exploração, como ursos, na natureza selvagem, se matam entre si pela sobrevivência. De certa maneira, fez com que os ursos baixassem a guarda e se tornassem alvos mais fáceis para os caçadores.

Esse erro de Tim é ressaltado no filme de Herzog. Ele colhe vários depoimentos de especialistas que comprovam que o idealismo de Tim era um enorme equívoco. Mas Herzog não o condena. Mostra seu erro, mas respeita sua opção e mais, mostra como a sociedade capitalista muitas vezes coloca o homem, perdido, desesperado em meio de sua própria alienação, diante de opções extremas, de saídas individuais para problemas sociais.

No filme de Herzog, todos expressam sua opinião, uns condenam, outros respeitam, outros defendem. Herzog também expressa a sua, como narrador principal do filme. Em uma de suas últimas cenas, aproveita imagens feitas por Tim do rosto de um urso, olhar “sem foco”, e diz: “não vejo nesse olhar que exista um mundo dos ursos ao qual se referia Tim. Apenas um urso lutando pela sobrevivência”.
Se Herzog tivesse terminado o filme aí, talvez tivesse dado a sentença: Tim era um idealista incorrigível. Mas o filme não termina aí. A última palavra é do verdadeiro autor do filme, andando na beira do rio, seguido calmamente pelos ursos, como se ambos, homem e urso, caminhassem em direção ao mesmo fim.