Américo Gomes, do Instituto José Luís e Rosa Sundermann
De acordo com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas, um conflito entre facções criminosas foi responsável por um motim que durou 17 horas e causou a morte de 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus.
Esta carnificina é uma cruel e trágica demonstração não somente da falência do sistema carcerário brasileiro, mas de uma política de Estado de encarceramento em massa.
Os dados da população carcerária do Complexo Penitenciário de Manaus são incertos (de 1200 a 1800 presos). De qualquer maneira, mais que o triplo da capacidade de 454 detentos. De acordo com o diagnóstico do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), feito ano passado, o complexo era “péssimo” e completamente desqualificado para qualquer tentativa de ressocialização, com presos sem assistência jurídica, educacional, social e de saúde.
Realidade de conjunto do sistema carcerário brasileiro. Segundo o Ministério da Saúde, um preso tem 28 mais chances de contrair tuberculose, mais propensão a ter HIV e uma taxa de mortalidade criminal três vezes superior à da população em geral.[1]
Para piorar, o presídio de Manaus é administrado pela Umanizzare, empresa privada de gestão prisional, em co-gestão, que simplesmente visa o lucro e superexplora os trabalhadores carcerários.
As vítimas da violência: jovens, negros e pobres
No Brasil, são assassinadas anualmente mais de 50 mil pessoas. Em 2016, chegamos ao recorde de 59.627 mortes. Se pegarmos uma década, morreram mais de 500 mil pessoas vítimas de homicídio, superior ao “número de mortes da maioria dos conflitos armados registrados no mundo” (Mapa da violência 2014).
Este número por si só demonstra a profunda decadência do Estado burguês e sua parceria com a criminalidade. É impossível chegar a tal grau de violência sem o envolvimento, ativo ou passivo, de uma parte dos aparatos encarregados da repressão.
Os homicídios vitimam majoritariamente negros. Considerando uma década (2002 – 2012), o número de assassinatos de brancos diminuiu, passando de 19.846, em 2002, para 14.928, em 2012, mas as vítimas negras aumentaram de 29.656 para 41.127, no mesmo período.
A violência generalizada do Estado tem “endereço, gênero, cor e idade”. Estamos falando de jovens negros do sexo masculino, com entre 15 e 24 anos, escolaridade baixa e morador da periferia.
Toda prisão tem muito de navio negreiro
Não é diferente no sistema carcerário. Cerca de 56% dos presos tem entre 18 e 29 anos; 62% são negros; 75,08% têm até o ensino fundamental completo.[2]
O Brasil tem muitos presídios e muitos presos. Tem a quarta maior população carcerária do mundo. Mas, além disso, tem a maior taxa de crescimento desta população. Em 2015, cerca de 6% a mais de penas privativas de liberdade começaram a ser cumpridas no país em comparação a 2014. A população carcerária brasileira cresceu 267% em 14 anos (2000 a 2014).[3] Neste mesmo período, o número de vagas triplicou, e mesmo assim o déficit mais do que dobrou.[4] Temos quase 2 presos por vaga.
Um trágico destaque é que, no período de 2000 a 2014, o aumento da população feminina foi de 567,4%. Em geral, jovens, com filhos, responsáveis do sustento familiar, com baixa escolaridade, negras e pobres. Em torno de 68% dos casos, a vinculação penal é por envolvimento com o tráfico de drogas “não relacionado às maiores redes de organizações criminosas”. [5]
Destes presos, mais de 40% estão em regime de prisão provisória, isso é, não foram julgados pelos crimes que são acusados, mas já estão presos. Deles, pelo menos 48 % são acusados por crimes onde não foi usada diretamente a violência, como: tráfico de drogas: 27%[6]; furto: 11%; porte de arma: 7%; receptação: 3%. No Complexo Penitenciário do Amazonas, 58% dos presos estavam em prisão provisória.
Existe por parte do Estado brasileiro, pelo menos nos últimos 10 anos, uma política de encarceramento em massa. Esta visão da classe dominante brasileira se expressa de maneira grotesca e horripilante na declaração do governador do Estado do Amazonas, José Melo (PROS), à rádio CBN “O que eu sei te dizer é que não tinha nenhum santo. Eram estupradores, eram matadores que estavam lá dentro do sistema penitenciário e pessoas ligadas a outra facção “.
O Estado brasileiro nem mesmo cumpre as mínimas medidas da Lei de Execução Penal, legislada em 1984, que teria o objetivo de ressocializar os presos.
Encher nossos presídios com pequenos traficantes ou pequenos assaltantes não resolve a criminalidade e nem a violência, e é a base para tragédias como esta. A lei de redução da maioridade penal vai aumentar esta barbárie.
O Estado coloca réus primários e criminosos não-violentos para conviverem com presos violentos, assassinos, estupradores, e facções criminosas. Carne fresca indo para o matadouro. Assim, não é possível nenhuma ressocialização e os detentos voltam para a sociedade com mais ódio e mais violência.
Para acabar com a criminalidade
A verdade é que a atual sociedade capitalista não tem o menor interesse em acabar com a criminalidade. Em primeiro lugar, porque o crime cresce em virtude da crise social, que tem uma dinâmica ascendente em nosso país e no mundo, fruto da corrupção e de lucros vultosos que querem ganhar os grandes empresários. Além disso, a violência geral é um instrumento imediato para atemorizar a maioria da população pobre e reprimi-la.
Uma das primeiras medidas a serem tomadas é a legalização das drogas. A nova lei de drogas (Lei n. 11.343/06), sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, regulamentou que usuários e dependentes de drogas passassem a receber tratamento diferenciado do que seria dado aos traficantes, mas ao mesmo tempo aumentou a pena mínima de trafico para cinco anos de reclusão (como o máximo de quinze), com o objetivo de impedir a aplicação das penas alternativas, somente tendo direito à liberdade condicional com dois terços da pena cumprida, desde que não fosse reincidente específico.[7]
É fundamental a legalização do consumo de drogas, que inclui a legalização e estatização de todo o processo, da produção e comércio, com fiscalização do consumo feito pelo Estado, como um problema de saúde pública e não criminal.
Assim como desenvolver um programa de reeducação correcional. Um estudo de 2014 da RAND Corporation[8] aponta: “Os reclusos que participaram de programas de educação correcional tiveram ‘probabilidades 43% menores de reincidir do que os presos que não o fizeram’; ‘Cada dólar gasto em educação na prisão poderia economizar até cinco dólares em custos de três anos de reinserção’”.
Poderíamos começar a desenvolver medidas como penas alternativas para crimes não violentos, acompanhadas de monitoramento pelo Estado.
Construir nas comunidades conselhos populares onde a própria população de uma região avaliasse a melhor maneira de combater a criminalidade em sua região, partindo de uma intervenção interpessoal, que não dependesse de policiamento ou prisão, para os pequenos infratores.
Assim como estabelecer tribunais comunitários especiais que julgassem os pequenos delitos dentro mesmo da própria comunidade, com juízes eleitos por ela, sem privilégios e sem poderes especiais.
Seria, além de tudo, uma solução mais econômica para resolver o problema da segurança pública.
Afinal, os danos que o regime prisional acarreta não são apenas para as pessoas encarceradas, mas também para suas famílias. Principalmente as mulheres, mães e irmãs. Majoritariamente famílias operarias e de poucos recursos.
Américo Gomes, do Instituto José Luís e Rosa Sundermann
[1] Dados de 2014
[2] Relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen),
[3] Conselho Nacional de Justiça, http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83669-estatisticas-revelam-aumento-das-condenacoes-de-encarceramento
[4] “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen – Junho de 2014” p.23. Disponível em: http://bit.ly/1RhTu31
[5] Levantamento Nacional de Informações Penitenciarias Infopen/ mulheres 2014, https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf
[6] Segundo o próprio Depen em 2006 tínhamos 47 mil presos por crimes de drogas (14% do total). Em 2013 passaram a 138 mil (1 em cada 4 presos)
[7] “A Nova Lei Antidrogas e o aumento da pena do delito de tráfico de entorpecentes” Por Luciana Boiteux Mestre/UERJ, Doutora/USP Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ. http://www.neip.info/upd_blob/0000/192.pdf
[8] “Qual é a eficácia Correctional Education, e onde vamos a partir daqui?”