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A luta das mulheres, com inícios já no século XIX, surge no Brasil a partir do momento em que, organizadas, começam a se voltar contra a opressão e lutar pelos direitos democráticos, como direito ao voto, ao divórcio, entre outros embates que vemos hoje como direitos universais básicos. É mais do que importante ressaltar que esse movimento começou não englobando todas as mulheres, separando de um lado as mulheres burguesas (protagonistas) e mulheres trabalhadoras (não entendidas como integrantes da luta de gênero).
 
Desde então, o movimento de mulheres cresceu, teve inúmeras vitórias e cada vez mais coloca as mulheres como atrizes principais das grandes mobilizações, a exemplo das jornadas de junho no Brasil onde elas ocupavam até 50% dos espaços, e em revoluções mundiais.
 
Inúmeros movimentos de esquerda desdenharam a necessidade da luta das mulheres trabalhadoras, entendendo que a luta pela revolução é a única bandeira necessária e que o problema da opressão será resolvido após a revolução. Sabemos que ainda há correntes de esquerda que tem essa posição, porém é evidente que essa postura demonstra uma fragilidade no entendimento sobre o que é a luta revolucionária e o papel de todos os setores oprimidos. Quando falamos em movimento Trans*, o problema se agrava ainda mais.
 
Ao nos remetermos a história percebemos que as travestis tiveram um papel importantíssimo, em especial no do final da década de 1960, quando já lideravam grandes movimentos populares LGBT contra as repressões policiais, como no caso da Revolta de Stonewall, nos Estados Unidos. Mesmo com esse histórico de muitos embates e heroica resistência, parte do movimento ainda vê empecilhos quando se trata de incluir tanto as pessoas quanto suas pautas no movimento feminista e geral. O principal problema está no sexo biológico. Nesse sentido, a esquerda como um todo precisa avançar pois aprendemos nas lutas cotidianas há muito tempo que o gênero é socialmente construído e essa soma de experiências e bandeiras só agrega na nossa luta.
 
A dupla e tripla opressão
Assim como as mulheres trabalhadoras sofrem a opressão duplamente, as mulheres Trans também sofrem, senão até mais, e isso deve ser reconhecido. O abismo entre classes obviamente também mostra todas suas desigualdades no mundo Trans nos momentos onde aquelas com poder aquisitivo conseguem fazer, sem maiores problemas, suas mudanças corporais tão importantes para sua identidade, como percebemos nos crescentes concursos de beleza Trans em todo o Brasil.
 
No outro lado, a grande maioria da população Trans sofre várias opressões que podemos caracterizar como violência, que vai desde a rejeição familiar e consequente expulsão de casa, falta de políticas públicas para o nome social e alteração do nome civil, a extrema dificuldade em concluir os estudos devido ao enorme preconceito que essas pessoas sofrem, até as enormes barreiras para a cirurgia de mudança de sexo no SUS. Tudo isso faz com que a essas pessoas sejam, em grande parte, levadas à prostituição compulsoriamente e a empregos precarizados, marginalizadas da sociedade e cada vez mais descoladas da luta de classes.
 
Durante toda sua história, a classe dominante utilizou as desigualdades que encontrou pelo caminho e criou outras novas, para aumentar assim seus lucros e privilégios. Devemos fazer o exercício de nos identificar principalmente enquanto classe e não nos subdividirmos em categorias que muitas vezes acabam nos distanciando na luta. Hoje as mulheres sentem na pele a opressão nos locais de trabalho quando o salário é até 30% menor do que os homens, quando devem cumprir a dupla jornada (além do trabalho assalariado, tem o trabalho doméstico não remunerado), nesse universo as mulheres negras são ainda mais prejudicadas. Com as Trans a situação é ainda pior, pois elas sofrem pela falta de recursos para mudanças corporais, o que aumenta a dificuldade de entrarem no mercado formal de trabalho e ficam, na maioria das vezes a margem do trabalho, ocupando subempregos e sujeitas à condições precárias de exploração.
 
A emancipação completa das mulheres e de todos os setores oprimidos se nossa luta não será completa se não for em conjunto. O princípio básico para poder existir é se reconhecer enquanto sujeitas atuantes no mundo, logo lutar para que qualquer pessoa Trans tenha o nome que escolheu respeitado e, acima de tudo, lutar pela troca desburocratizada nos documentos civis. No sistema capitalista em que vivemos o trabalho não passa de um meio para exploração do sujeito. Quando falamos de emprego e pessoas Trans essa desigualdade aumenta exponencialmente e, assim, o sistema cumpre o seu papel de desumanização. Queremos ainda, apesar de sabermos que as pautas do movimento Trans não são só essas, lutar por um sistema de saúde que realmente atenda as demandas do movimento Trans, sem que nenhuma pessoa precise ser patologizada para esse atendimento.
 
Numa época onde atingimos o auge do capitalismo, o imperialismo, em que a ideologia de nos dividir em grupos menores está cada vez mais forte não podemos ceder aos interesses dos poderosos. Alguns setores feministas insistem em segregar as lutas como se as nossas bandeiras não devessem ser levantadas juntas para a conquista de mais direitos para as mulheres trabalhadoras, sejam elas negras, brancas, estudantes, cis ou Trans.
 
Entretanto, sabemos reconhecer nossos privilégios enquanto maioria de mulheres cis e esta carta convocatória vem justamente pedir para que cada mulher Trans que queira lutar por uma sociedade sem misoginia e transfobia, nos ajude a construir um movimento de Mulheres que lute por todas e que justamente saiba reconhecer que não existe um único modelo de mulher – como por vários anos o movimento considerou – mas que todas existimos e temos o direito de ser reconhecidas como protagonistas na Luta por uma sociedade sem exploração e opressão. Não duvidamos o quão difícil deve ser poder ter voz quando o modelo social diz que nós mulheres devemos ficar no privado e que essa opressão só aumenta quando somada a transfobia.
 
O que nos une é a classe, o que nos une é a luta por direitos para toda a classe trabalhadora e muito mais do que isso, a luta por uma nova sociedade, onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres como já disse nossa companheira Rosa Luxemburgo.
 
Uma alternativa de luta
Uma alternativa clara que temos no movimento feminista hoje, para abarcar todos os setores é o Movimento Mulheres em Luta (MML), filiado à CSP-Conlutas, que já provou em seu primeiro encontro nesse ano, que não vai se abster do debate e da luta diária com toda sua diversidade, sempre com um recorte classista e combativo.
 
O PSTU quer que as mulheres Trans se incorporem às nossas fileiras, lutando não só no movimento LGBT, mas também no movimento de mulheres como o MML, e que nos ajudem na construção de um novo programa para a lutarmos hoje e também que consigamos elaborar e levar o debate feminista junto com o movimento Trans para a construção de uma nova sociedade, onde não haja nenhum tipo de exploração ou opressão.
 
 
*Trans: termo “guarda-chuva” que abarca as pessoas que não se identificam com o gênero designado-lhes ao nascer segundo uma “norma” social opressora entre órgão sexual/gênero. Cis é o termo que remete às pessoas que se identificam com o gênero socialmente designados a elas no nascimento, como, por exemplo, mulheres cis, homens cis, cisnormatividade. Misoginia é o ódio, desprezo ou repulsa ao gênero feminino e às características a ele associadas.