Túlio Quintiliano, um trotskista no Chile

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Redação

Projeto Memória

Túlio exilou-se no Chile em 1970, após ter sido torturado no Brasil. Um dia após o golpe de Pinochet, foi denunciado por um vizinho e assassinado.

Túlio fez parte do Ponto de Partida, grupo de exilados que toma contato com o trotskismo através de Mário Pedrosa. Parte do grupo, após o golpe, viaja para a Argentina. Em 74, volta ao Brasil fundando a Liga Operária, seção da Quarta Internacional, que dá origem à Convergência Socialista, uma das correntes que formam o PSTU.

Leia abaixo a íntegra da entrevista do Projeto Memória com Nairza Saraiva Cardoso, mãe de Túlio Quintiliano, e Neusa das Neves, casada com o pai de Túlio, e a íntegra da última carta de Túlio aos familiares, escrita em agosto de 1973.

Quando Túlio nasceu?
Nairza: Em 6 de setembro de 1944, no Rio de Janeiro.

Ele se formou em engenharia civil?
Nairza: Ele se formou no Rio de Janeiro. Ele adorava o trabalho dele. Ele sempre gostou. Desde os cinco anos de idade ele fazia umas contas de cabeça. O pessoal dizia que ele iria ser engenheiro. Ele deve ter colocado aquilo na cabeça e ele sempre quis ser engenheiro. Ele se formou e estava trabalhando. Ele se formou na PUC do Rio, em 1969.

A senhora tem mais filhos?
Nairza: Tenho mais uma filha, mais velha que o Túlio. Ela se formou em filosofia pura. Em Paris, ela fez psicologia, na Sorbonne.

A senhora disse que não conhecia nada sobre a atividade política dele. Mas na universidade ele participava do movimento estudantil?
Nairza: Devia participar, mas eu não sabia.

Neusa: Ele participava sim.

Na marcha dos 100 mil ele participou?
Neusa: Participou.

A senhora sentia que ele era ativo, se interessava…
Nairza: Eu tenho comigo que ele foi influenciado…

Neusa: Não fala assim, Nairza… Ele participava das atividades políticas na universidade. E como eu disse a você as reuniões eram quase todas na minha casa. Ele só deixou de fazer reuniões lá, porque eu tive que alugar um quarto em casa. Como não poderia alugar diretamente, eu botei o telefone da minha tia. Essa pessoa ligou para ela e depois foi verificar o quarto. Essa pessoa era a Iara (companheira de Lamarca). Ela ficou morando na minha casa, sem eu saber que era ela e ela sem saber quem eu era. Mas quando ela viu a prisão do Túlio no jornal ela percebeu que estava num “lugar perigoso” e resolveu ir embora. Foi uma passagem curiosa. Morávamos num apartamento no Flamengo, no Rio de Janeiro.

Ele foi preso em 1969….
Neusa: Ele foi preso em 1969, ficou quatro meses e depois foi solto.

Nairza: Ele foi preso na minha casa, na hora do jantar.

A família entrou com advogado….
Nairza: Não havia advogado naquela época… a pessoa só saia quando eles quisessem soltar.. Levaram ele para Belo Horizonte em Minas Gerais.

Deusa: Nessa primeira prisão ele foi do Rio para Minas Gerais?

Nairza: Ele só teve uma prisão..Ele esteve em nove prisões. Ele foi preso e foi para a Polícia Federal, na Praça Quinze, ali ele foi torturado. Apanhou a noite toda de dois ou três bandidos. Dali, depois de dois ou três dias, ele foi levado para Belo Horizonte. Lá, ele ficou no Dops, depois foi para Neves. Sofreu tortura psicológica. Colocavam ele dentro de um quartinho só com um vaso sanitário, mais nada e acho que um colchão no chão. Levei uns quarenta dias sem saber onde ele andava. Depois me avisaram que ele estava em Neves, fui lá visitá-lo. Depois ele vinha para o Dops, ficava uns dias era interrogado e depois voltava. Ia para a Aeronáutica também para ser interrogado. Depois de não sei quanto tempo, mandaram para a Polícia Federal no Rio de Janeiro.

Deusa: Foi para a Polícia do Exército, na Vila Militar. Lá ele foi torturado com choques elétricos. Depois ele foi para o campo de Jerencinó (perto de Bangu) e depois para a Ilha das Flores. Ele foi mandado para Jerencinó para se recuperar. Quando o visitamos ele tremia demais.

Nairza: Ele ficou muito nervoso. Não conseguiram nada dele. Queriam que ele denunciasse os comunistas da PUC. Quando ele foi para a Ilha das Flores, nós perdemos o contato. Só tivemos notícias quando um rapaz, que tinha um irmão preso, foi visitá-lo. Túlio pediu a ele que me avisasse onde estava.

Ele saiu quatro meses depois.
Neusa: O processo dele era um catatau. Mas, na verdade, ele foi preso e julgado porque era filho do Ailton, que era dirigente do PCB.

Nairza: Ele conhecia um estudante de medicina, chamado Angel, em Belo Horizonte. Ele ia nos finais de semana para lá porque a minha filha morou lá, depois de casada. E o nome desse estudante, que depois foi considerado terrorista, estava na agenda do Túlio. E por isso ele foi preso.

Nairza: Ele voltou para a Marinha para ser interrogado e eles disseram que não tinham nada contra ele e que poderia voltar para a casa. O processo dele sumiu. Nós achávamos que tinha sido arquivado. Mas um ano depois, ele estava trabalhando com fiscal de obras na estrada Belém-Brasília, a especialidade dele era em transporte, ele dizia que iria ficar rico montando uma firma de engenharia.

Ele foi condenado a um ano de prisão.
Nairza: Depois ele e um filho de brigadeiro foram para a terceira auditoria do Exército, que era mais branda. A acusação era que ele estava tentando reorganizar o Partido Comunista Brasileiro. Ele foi condenado a um ano de prisão. Eu fui a Goiás para avisá-lo. Ele disse que não passaria nem mais um dia na prisão no Brasil.

Ele morava em Anápolis e quando cheguei na lá, ele não estava, estava na estrada. Ele voltou três dias depois e quando me viu, disse: Mamãe, eu fui condenado!. Eu disse: – Foi, meu filho!. Ele perguntou a quanto tempo e disse que no Brasil não ficaria um dia na prisão e resolveu ir embora do país. Ele veio comigo para o Rio de Janeiro e pediu asilo na embaixada do Chile, que era em frente da minha casa. A embaixada pediu mil documentos para provar que ele não era terrorista, porque eles não davam asilo a terroristas. Ele recebeu o asilo e na embaixada também estava Mário Pedrosa…

Nessa época a polícia também importuno outras pessoas de sua família.
Nairza: Só o Túlio. Minha filha era jornalista e tinha uma porção de livros sobre a Rússia quando Túlio foi preso, mas não a levaram.

Neusa: Como eu era revisora de Jornal do Comércio, eu fui procurada pelo Dops. Queriam saber quem eram os amigos de meu marido..

Túlio saiu do Brasil em outubro de 1970. Ele conheceu a esposa aqui ou lá no Chile?
Nairza: Ele tinha aqui uma namorada que adorava ele. Eu não me lembro bem como foi, mas alguém me indicou um brasileiro na representação da ONU no Chile, que conseguia colocar alguns brasileiros exilados. Eu fiz uma carta do Túlio para que ele procurasse essa pessoa. O primo da Naná, viúva do Túlio, trabalhava na Cepal, e eles se conheceram na casa dele. Naná era muito bonita, instruída.

Ela também estava exilada?
Nairza: Ela saiu fugida daqui, com o nome trocado. Porque quando eu estive no Chile, um ano depois, ela estava retificando o nome dela. Ela tinha problemas sérios, porque a polícia sempre estava na porta da casa dela. Ela ficava escondida.

Túlio trabalhava como engenheiro no Chile?
Nairza: Ele fazia orçamento para casas populares. Era como se fosse um BNH, não era o que ele gostava, mas como ele tinha estagiado nessa área quando ele era estudante..

A senhora foi visitá-lo em Santiago do Chile em 1971, como ele estava?
Nairza: Ele estava muito bem, vivia numa avenida muito boa. Ele já estava casado.

Sua neta nasceu quando?
Nairza: Ela nasceu em 1972, ela se chama Flávia.

A senhora foi visitá-lo…
Nairza: Fiquei 26 dias, nunca mais fui lá…Depois eu sempre me comunicava com ele por cartas, tenho um monte delas. Eu mandava feijão, ele adora feijão preto e arroz. Lá eles dizem que feijão é para os porcos. Eu mandava daqui as coisas que ele gostava.

Como ele foi preso?
Neusa: O vizinho era do Exército, pelo menos foi o que a Nana me contou, e no dia do golpe estava dando uma festa para comemorar o golpe e convidou o Túlio para ir lá. Mas Túlio Roberto não quis ir, dizendo que estava esperando a mulher dele. Então o vizinho telefonou para o Exército na frente dele….

Nairza: Justamente, ele fazia reuniões até tarde da noite que incomodavam os vizinhos…

Neusa: O que incomodava os vizinhos não eram as reuniões, mas o conteúdo delas…

A senhora se comunicava por telefone…

Nairza: Túlio não tinha telefone.

Quando a senhora soube da morte dele?

Nairza: A Naná avisou uma tia dela. Eu morava no Rio de Janeiro. Ela disse que procurava Túlio há quinze dias e não encontrava. Foi dado como desaparecido.

Neusa: Ela foi presa com ele. Mas na mesma noite ela foi solta. Ela saiu para pegar os documentos dele.

Nairza: Eles foram presos e interrogados. E ele estava sem a autorização de residência. Ele estava legalmente exilado, tinha que ter o documento. Ele mandou revalidar o documento, ele deveria pegar o documento três meses antes e não foi. Mas não é justificativa porque se não fosse o golpe e a atuação da polícia brasileira no Chile… E a polícia foi para lá fazer o que quisesse…. Aí soltaram Naná e ela foi procurar o documento. Quando ela levou o documento, ele estava desaparecido.

Neusa: Disseram que ele tinha sido levado para o Estádio Nacional.

Nairza: Ele foi para o regimento Tacna, os que foram para lá, quase ninguém sobreviveu.

Neusa: Tem um rapaz que foi preso com os dois e que também foi para lá e disse que viu o corpo do Túlio.

Nairza: Ele não me disse isso para não me chocar, quando eu fui a primeira vez para o Chile. Da segunda vez alguém se aproximou de mim, um familiar de um preso político disse que botaram ele e mais seis numa sala, quando foi três horas da manhã e mandaram alguns para o pátio do regimento e os colocaram em fileira. Depois entrou um caminhão e alguém dava dois tiros com silenciador em cada, e Túlio estava lá. E depois colocavam dentro do caminhão, cobriam com uma lona e levavam embora. Túlio foi dado como desaparecido até que saiu o Pinochet e foi criada uma Comissão de Inquérito (Comissão Nacional de Reparação) eu estive lá naquela ocasião. O Raul Rettig (responsável pela Comissão) que era amigo do cônsul chileno no Brasil, quando Túlio se exilou, já tinha dado depoimento sobre meu filho. Quando eu fui lá completei. O governo reconheceu por Decreto que os desaparecidos estavam mortos e instituiu um benção, vinte anos depois.

Como sua nora saiu de lá?
Nairza: Ela deveria ter combinado com Túlio, pois o Chico Witaker era funcionário da ONU, da Cepal -Túlio fez uma carta prevendo o golpe- deveria ter combinado para ir para algum lugar, mas eles se desencontraram durante o alvoroço e ele foi esperá-la em casa e foi preso. Ela que tinha grandes envolvimentos no Brasil foi solta.. Eu fiquei doida, fui à psiquiatra, a psicólogo, mas depois encontrei com Deus e conclui que era o destino dele….

Mas como ela saiu do Chile?
Nairza: Ela nem foi para a casa do Chico, nem foi para a embaixada, foi presa. Depois de solta, ela foi levada para a embaixada da Itália- o avó dela era italiano- e ela saiu como funcionária da embaixada . Em Roma, ela pediu exílio.

E sua neta?
Nairza: Eu tenho uma carta do Túlio em que ele estava prevendo tudo, o golpe, o balança mais não cai, foi o destino dele. Quando eu estive no Chile, a minha nora não trabalhava, nem estudava, depois soube que ela estava estudando arquitetura. Ela terminou o curso em Roma. Ela saía com o Túlio, quando ele ia trabalhar e deixava a menina com a empregada. Eles me deram um chave da casa e eu fui conhecer a cidade de Santiago sozinha. Quando voltei eu mandei uma carta para ele dizendo que jamais voltaria lá. Se ele quisesse se encontrar comigo algum dia que ele marcasse um encontro na Argentina. Depois eu fiquei amiga de minha nora. Mas minha neta Flávia, quando fez um ano, a mãe da Naná foi para o Chile, em agosto, mas como estava o balança-mas-não-cai, Túlio já sabia que ia ter o golpe, a mãe de minha nora trouxe a Flávia para o Recife. Para quando a situação melhorasse lá, a Flávia voltaria e a situação foi essa: Naná foi para Roma, Túlio morreu e Flávia ficou uns dois anos no Recife e eu fui visitá-la. Depois Naná mandou buscá-la e a avó a levou para a Europa. Não deu muito certo em Roma e foi morar em Paris, Naná não podia voltar para o Brasil. E elas permanecem até hoje em Paris, Flávia hoje é professora.

Depois da morte do Túlio a senhora foi três vezes para o Chile…
Nairza: Eu nunca fui incomodada nem pelo governo brasileiro, nem pelo governo chileno. Eu fui para lá para arranjar advogado, mas como já havia o processo de apuração. Porque antes não adiantava fazer nada, como aqui. Quando mudou o governo fizeram a apuração e os familiares começaram a receber uma pensão mínima, não uma indenização. O governo assumiu a morte, uma reparação.

O pai de Túlio foi um ativista político?
Neusa: Foi, ele dirigente do Partido Comunista. Se chama Ailton Quintiniano.

Nesse período ele foi preso?
Neusa: Não, ele já era falecido. Morreu num acidente de carro.

A carta que ele escreveu que o golpe viria já é uma análise que o pequeno grupo (Ponto de Partida) fazia da realidade chilena
Nairza: Quando Naná avisou sobre o desaparecimento dele, eu fiquei 50 dias no Chile, fui em outubro e voltei em dezembro, procurando ele em todo o canto. Eu disse para o cônsul brasileiro que tinha vergonha de ser brasileira. Eu disse que a polícia brasileira tinha andado no consulado. Fiquei doida. Não sei como não me mataram também. Eu dizia que se me matassem a ONU e todo o mundo iria saber. Eu fui para lá com um endereço fornecido pela CNBB. Fiquei na casa de religiosas. E uma delas disse que uma amiga dela, que era enfermeira, foi torturada por policiais brasileiros, foi toda queimada com choque elétricos. Eles estavam com capuzes, mas falavam o português. Eu corri muito risco. Depois fui mais duas vezes.

A senhora tinha contato com ele?
Neusa: Só escrevia. As cartas eram mais dirigidas aos irmãos.

Leia abaixo a última carta de Túlio à família

Santiago, Chile. Agosto de 73

Mamãe, mamãe Marieta, Seniro e demais, como vai você? Aqui nós vamos vivendo como podemos. A situação vem se tornando cada vez mais difícil. Há uma crise econômica bastante séria, com uma inflação cada vez maior. O Chile está sendo boicotado tanto externamente como internamente. Esta situação, patrocinada pela direita, vem se desenvolvendo e com perspectivas de gerar uma crise política. Alguns setores já estão se articulando para tentarem uma saída através de um golpe militar. Bem, se juntarmos a tudo isto a falta de alimentos e a dificuldade de consegui-los, faz com que não possamos ter segurança total para os próximos meses. Guerra civil é uma perspectiva que se comenta em cada esquina, em cada diário, em cada boca de chileno. Para aumentar nossos problemas, acabamos por perder nossa empregada e o difícil agora é conseguir uma com a mesma confiança que tínhamos na que perdemos.

Tive que pedir alguns dias de folga no trabalho para superar as dificuldades. Tomando em conta que Naná está em época de provas na universidade e que não pode perder o semestre, para não atrasar ainda mais sua formatura, e que não pretendemos que ela abandone os estudos, decidimos discutir bastante e resolver algumas coisas. Uma delas foi a de mandar provisoriamente Flavinha para o Brasil. Ela irá com a mãe de Naná que veio passar alguns dias aqui e vai aproveitar a viagem para fazer um exame num mianjioma (não sei se é o nome é este mesmo) que tem na cara. Vai ser examinada por médicos em S. Paulo e que são autoridades no assunto.

O tempo de permanência de Flavinha no Brasil será determinado pelo tratamento e pela melhora da situação aqui no Chile. Nós não queremos nos afastar dela, já conseguimos superar uma fase difícil, que foi criá-la até um ano, e se vamos nos separar nesta fase é porque racionalmente vimos e pesamos as dificuldades que ela poderia passar, tanto materiais, como assistenciais.

Mamãe Marieta e Tania se ofereceram para cuidá-la. Vou discutir com Naná e ver o que podemos fazer. No momento atual vai ficar com a mãe de Naná, o que vai ser facilitado inclusive pela estada dela no Chile e irá levá-la pessoalmente para o Brasil.

No mais, Flavinha está bem, um pouco resfriada, mas bastante esperta, embora não esteja andando ainda, muito mais por culpa nossa que não conseguimos um sapatinho apropriado para ela, já que possui bastante equilíbrio e poderia estar andando. Fala bastante, embora numa língua que ninguém compreende. Fala papá, mamá, tchau, e outras besteiras. Papá e mamá ela fala mas parece que não compreende totalmente o significado.

Com respeito ao envio de coisas, pode parar de enviar fósforo e cigarro. O principal é mandar arroz e pasta de dente e como passaremos a comer a maior parte das vezes fora de casa, não necessitaremos mais de outras coisas. Qualquer necessidade mandaremos dizer. Eu vou telefonar para casa de mamãe Marieta no dia 6 de setembro, como combinei com ela. Aguardem.

Tania me telefonou e foi para mim uma grande alegria já que não ouvia sua voz há muito tempo. Parece que está bem e já me deu seu endereço em S. Paulo.

Mamãe, soube que você fez uma plástica. Como está passando? Ficou bem.

Mamãe Marieta, como vai a clínica e S. Conrado?

Seniro, como vai o Flamengo e as peladas?

Um beijo,
do Tulio.