Militante do Panteras Negras, Angela Davis, que se declarou lésbica em 2007
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

 

Estamos no Novembro Negro, mês para resgatarmos e celebrarmos nossa História, nossos (as) ancestrais e suas lutas; reafirmamos nossa cultura e tradições e recarregarmos nossa negritude com a garra e o orgulho necessários pra que possamos seguir lutando contra o racismo nos próximos onze meses e quantos mais forem preciso até que consigamos a liberdade e a igualdade às quais temos direito.

Contudo, às vezes, ou com freqüência mais do que preocupante, em meio às celebrações e protestos, são muitos os que se “esquecem” de setores importantes da população negra que, além de marcados pela marginalização imposta pelo racismo, vivem sob o peso de umas tantas outras formas de opressão.

As mulheres negras sabem muito bem do que estamos falando. Sabem o quanto é difícil impor o reconhecimento da necessidade de que todos lutem contra os estragos provocados pela nefasta combinação entre racismo e machismo.

Contudo, há outro setor da população negra cujas dificuldades, marginalização e reivindicações, geralmente e de forma lamentável, sequer são consideradas quando discutimos a luta contra a opressão racial. Estamos falando de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis negros (as).

Milhões de LGBT´s cujas vidas são cercadas, ora pela invisibilidade ora pela violência; tanto pela discriminação racial quanto pelas humilhações e sofrimentos que correm soltos em um mundo em que a heterossexualidade é tida como a única forma “digna”, “respeitosa”, “aceitável” e “correta” de se viver.

Uma dura realidade que marcou a vida de lésbicas, gays, trans, bis e travestis como o performático Madame Satã, o escritor James Baldwin, o pintor Jean-Michel Basquiat, o poeta Langston Hughes, a ativista trans Marsha P. Johnson (que esteve na linha de frente da Rebelião de Stonewall), o escritor modernista Mário de Andrade, o impagável e genial Paulette (do Dzi Croquetes), a cantoras de jazz e blues ‘Ma’ Rainey (conhecida como a “Mãe do Blues”) e Bessie Smith e a travesti e passista da Beija-Flor Piu (brutalmente assassinada em setembro passado).

À margem dos marginalizados
Aqui não se trata de enveredar pelo infrutífero e perigoso descaminho do “quem é mais oprimido ou oprimida”. A questão é simplesmente constatar que há “diferentes entre os diferentes”, que a opressão tem distintas faces, todas elas medonhas. E quando elas se acumulam, não só a marginalização aumenta, como também, e mais importante para nós, é maior a necessidade da formulação de políticas e práticas específicas para atender as demandas destes setores.

Não há como negar, por exemplo, que ser travesti ou “trans” negra e pobre no mundo demente e doente em que vivemos é algo que leva a situações que beiram o insuportável, quando não descambam para a pura barbárie. Basta lembrar a violência inominável e a brutalidade indescritível que caracterizam os ataques e assassinatos dessas pessoas.

O fato é que ser LGBT e preto(a) – o que muitas vezes é praticamente sinônimo de ser pobre – é ter todos os direitos confiscados; é estar “emparedado” (como diria Cruz e Sousa) de uma forma sufocante. Uma situação para a qual, infelizmente, muitos negros (as), homens e mulheres brancos heterossexuais e, também, LGBT’s contribuem em muito, seja nas relações sociais cotidianas, seja no interior dos movimentos.

Um grave erro, particularmente entre nós, negros e negras, pois é inadmissível que os LGBT’s não sejam vistos como dignos herdeiros de Zumbi e Dandara; como sucessores de Luiza Mahin e João Cândido; como aqueles pelos quais Malcolm X e Solano Trindade também lutaram.

Onde classe, raça, gênero e orientação sexual se encontram
Em um artigo com o genial título “Gays ricos, bichas pobres”, publicado nos Cadernos AEL (Unicamp, em 18/19, 2003), Juan P. Pereira Marsiaj faz uma série de considerações sobre “desenvolvimento, desigualdade socioeconômica e homossexualidade no Brasil” que também pode servir como ponto de partida para discutirmos as terríveis conseqüências decorrentes da combinação do racismo com a LGBTfobia, dentro de uma perspectiva de classe.

Referindo-se ao trabalho do historiador norte-americano John D´Emilio – particularmente “Capitalism and Gay Identity” (“Capitalismo e Identidade Gay”) –, Marsiaj lembra que a comunidade e a identidade LGBT foram moldadas pelo capitalismo durante as diferentes fases do sistema, refletindo os efeitos que estas transformações, principalmente nos modos de trabalho e produção, tiveram sobre os aspectos mais distintos da sociedade: da arte à cultura; dos meios de comunicação à Educação; das relações sociais às formas de organização familiar (um tema, em particular, sobre o qual o autor se detém para discutir as relações entre LGBTs e classe).

Como lembra Marsiaj, “a classe social afeta as possibilidades de estabelecimento das relações homoafetivas e de redes homossociais, que são de suma importância para o desenvolvimento de uma auto-identificação como gay ou lésbicas” (p. 139). Ou seja, como acontece também em relação aos héteros, as condições econômicas interferem, de forma indireta ou direta, no jeito como as pessoas namoram, se relacionam afetiva e amorosamente, nos tipos de grupos que participam etc.

E tudo isso cumpre um papel fundamental na possibilidade de um LGBT se assumir como tal e na forma como ele ou ela vai se colocar e se ver diante da sociedade. Algo particularmente difícil nas relações familiares. Não é uma regra, mas, geralmente, quanto mais pobre mais complicada a história pode ser, pois “para os setores populares no Brasil, a função econômica da família retém uma grande importância. A renda das classes mais baixas é irregular e pequena, tornando muito difícil a independência econômica de um indivíduo de sua família” (p. 139).

Quem vive na periferia, nasceu nos cortiços e favelas ou pertence aos setores mais pobres da classe operária (e, por tabela, na maioria dos casos, é negro ou negra) conhece muito bem esta história. Nessas famílias, até mesmo por uma questão de sobrevivência, todo mundo tem que “entrar com a grana” e, consequentemente, pais e mães contam, desde muito cedo, com o dinheiro dos filhos (as) e com a ideia de que eles vão permanecer em casa “até o casamento”.

Uma situação totalmente diferente dos LGBT’s de classe média e alta (brancos em sua enorme maioria) que, como lembra Marsiaj, podem “se dar ao luxo de manter um apartamento para [seus] encontros, ou têm meios para pagar um quarto de motel para tais fins”. (p. 140)

E isso, com certeza, faz toda diferença na hora de se assumir como LGBT. Levar o companheiro o companheira pra casa, fugir da cilada do casamento tradicional etc., é muito mais difícil. Não que seja impossível. Pelo contrário. Em alguns casos, a própria dependência econômica acaba “forçando” a aceitação por parte dos familiares. Afinal, não dá pra expulsar de casa alguém que é fundamental pra pagar as contas e esta “situação abre espaços de tolerância no âmbito familiar que permitem, sob certas condições, um alto nível de liberdade.” (p. 140)

Contudo, isto não é a regra. Para a infelicidade de todos envolvidos, na maioria dos casos, os LGBT’s continuam na casas dos pais, “enrustidos” (“dentro do armário”, como se diz) ou negando sua identidade e, pra satisfazer as expectativas, acabam mantendo relacionamentos com gente do sexo oposto e, até mesmo, casando. Uma situação que, nos dias de hoje, é ainda mais complicada, na medida em que LGBTfóbicas, racistas e machista igrejas fundamentalistas ganham mais e mais espaços na periferia, inclusive entre famílias negras.

Para negros e negras, não há “libertação pelo consumo”
Se assumir uma identidade LGBT na família já é complicado, viver plenamente como tal também não é nada fácil. A começar pelos espaços que existem para os LGBTs pobres e negros se encontrarem, se sociabilizarem e manterem relações amorosas e, obviamente, sexuais.

Para negros(as) e pobres, como também lembra Marsiaj, os encontros e o namoros geralmente se dão nos “espaços públicos”: os parques, as praças, os “banheirões” e os cantos escuros das ruas. Já para os que pertencem às classes médias e às elites, os pontos de encontro são os “espaços comerciais”: as saunas, os bares, os restaurantes e boates.

E qualquer LGBT negro ou negra que já tenha freqüentado qualquer um destes lugares sabe muito bem o quanto eles “são brancos” e o quanto a pele mais escura destoa dos padrões de beleza e, muitas vezes, é vista como sinal de que estão atrás de “favores financeiros”.

No mundo neoliberal em que vivemos que, dentre outros tantos estragos, colocou um sinal de igual entre o conceito de cidadania, “empoderamento” individual e o poder aquisitivo, essa situação é ainda mais grave, como já foi destacado no artigo “The Sexual Citizen: queer politics and beyond” (“O cidadão sexual: política queer e além” – um termo “pós-moderno” utilizado para LGBTs), publicado por David Bell e Jon Binnie.

Segundo os autores, essa “estratégia de liberação pelo consumo”, pode levar (e com certeza o faz) “à aceitação de um tipo de gay (branco, de classe média), visto como um modelo de cidadão-consumidor e uma maior marginalização de todos os outros ‘devassos’ que não se encaixam nessa forma”, ou como Marsiaj diz, referindo-se aos brasileiros: “corre-se o risco de aceitar o gay rico e marginalizar ainda mais a bicha pobre” (p. 142).

Algo que, diga-se de passagem, fica evidente na forma como os “gays ricos” e as “bichas pobres” vêm sendo retratados nos meios de comunicação; basta ver o abismo preconceituoso que separa os dois grupos nas novelas e nos programas de “humor” (termo inadequado para nojeiras como o “Zorra Total” e porcarias afins).

E, se tudo isto não bastasse, como já foi dito por Luis Mott (do Grupo Gay da Bahia, responsável por levantamentos anuais sobre os ataques e assassinatos) são os LGBT’s negros (as) que estão mais expostos a situações marcadas pela brutalidade e a violência.


Stonewall em 1968

A Rebelião de Stonewall e as lições dos Panteras Negras
As quase três décadas e as dificuldades que Angela Davis, dos Panteras Negras, enfrentou para se declarar lésbica (algo que fez em 1997, na revista “OUT”) tem muito a ver com LGBTfobia que também marca os movimentos negros. Contudo, é preciso concordar com ela quando, em uma entrevista em 2010, declarou que há um alto grau de racismo quando se afirma que negros(as) são “naturalmente” mais homofóbicos, lesbofóbicos ou transfóbicos do que a população branca.

Apesar de que vale uma ressalva, particularmente em um país como o nosso, que passou por quase 400 anos de escravidão e onde o patriarcalismo dos senhores de engenho infesta nossa sociedade até hoje. É verdade que ser negro ou negra não faz de ninguém mais LGBTfóbico; mas também é um fato que a ideologia racista (propagada pela elite branca), baseada no ideal de branquitude e na coisificação e animalização do nosso povo, tenta, permanentemente, nos transformar em pessoas “hipersexualizadas”.

Algo que, como toda ideologia, muitas vezes é assumido pelos próprios negros (as), basta lembrar mitos como o da “virilidade animal” dos homens negros e da “disposição sexual” de mulheres que descendem dos africanos escravizados.

No entanto, como lembra Davis, mais importante do que ficar discutindo quem é mais LGBTfóbico, nós temos que “considerar o quanto as estruturas ideológicas da homofobia, da transfobia e do patriarcado heterossexual estão encravadas em nossas instituições”. Todas elas. A começar pelas do Capitalimo, mas também nas formadas pelos movimentos sociais.

Por isso mesmo, nas palavras de Angela Davis, “temos que questionar o impacto do racismo nos movimentos de gays e lésbicos, temos de fazer perguntas sobre o impacto do racismo no movimento das mulheres, temos de fazer perguntas sobre o impacto do sexismo ou da misoginia nas comunidades negras e temos que fazer perguntas sobre a influência da homofobia na comunidade negras”.

Vale dizer que o próprio movimento no qual Angela Davis militou é um exemplo do quanto estes questionamentos são importantes. Basta citar dois exemplos dados por Sherry Wolf no livro “Sexuality and Socialism” (“Sexualidade e Socialismo”). Exemplo lamentável foi dado por um dos principais líderes dos Panteras Negras, Eldridge Cleaver, que incluiu uma ideia no mínino asquerosa no livro “Soul on ice” (Espírito no gelo), lançado em 1968: “homossexualidade é uma doença, tanto quanto o estupro de bebês ou querer se tornar um chefe na General Motors”.

Uma posição bastante sintonizada com a LGBTfobia que caracterizou as organização stalinistas e, em particular, o maoísmo que influenciou os Panteras e que, dentre outras barbaridades, pregava que “a homossexualidade é parte dos problemas presentes em uma sociedade decadente”.

Contudo, foi também entre os Panteras Negras que surgiu uma das mais belas e contundentes declarações anti-LGBTfóbicas já vistas em um movimento negro. No dia 21 de agosto de 1970, um ano depois da Rebelião de Stonewall e dois meses depois da primeira Parada LGBT nos Estados Unidos, Huey Newton, um dos mais destacados líderes dos Panteras, não só se tornou o primeiro dirigente de um movimento majoritariamente hétero a fazer uma declaração em defesa dos LGBT’s, como o fez com uma lição fundamental para todo e qualquer militante ou ativista.

Na “Carta de Huey Newton para os irmãos e irmãs revolucionários sobre os Movimentos de Liberação de mulheres e gays”, ele defendeu: “Ninguém da sociedade dá aos homossexuais o direito à liberdade. Talvez, eles sejam as pessoas mais oprimidas da sociedade (…). Os termos “faggots” [a forma mais ofensiva de se xingar um gay, que remete à Idade Média, quando LGBTs eram usados, literalmente, como lenha nas fogueiras da Inquisição]  e “punk” [no caso, “arruaceiro”] deveriam ser deletados de nosso vocabulário e, particularmente, nós não deveríamos vincular nomes geralmente utilizados para tratar homossexuais a homens que são inimigos de nosso povo”. Uma declaração que em muito contribuiu para que o GLF tenha se engajado firmemente na luta pela libertação de Huey, quando ele foi preso no início dos anos 1970.

Uma lição que deveria ser assimilada por todos e todas ativistas dos movimentos sociais, que não se cansam de chamar burgueses, pelegos e representantes de governos opressores de “viados”, “bichas”, “boiolas” entre outras tantas ofensas.

Como também, está mais do que na hora dos movimentos LGBT’s brasileiros tomarem alguma providência para se distanciar do caráter branco, masculino e elitista (o que sempre significa meio caminho andado para o racismo)

Unidos somos mais fortes e a libertação pela Revolução
A política de “dividir para conquistar” é tão velha quanto a burguesia e precisa ser combatida em todos os movimentos. Algo particularmente importante naqueles que têm uma perspectiva classista e revolucionária.

Uma coisa que também nos foi deixada pela “Frente de Libertação Gay”, cujo caráter revolucionário fica evidente no Manifesto de lançamento do grupo em 1969, ainda no calor da Rebelião de Stonewall: “Nós somos um grupo revolucionário de homens e mulheres homossexuais, formado com a compreensão de que a completa liberdade sexual, para todas as pessoas, não pode ser conquistada até que as atuais instituições sociais sejam abolidas. Nós rejeitamos a tentativa da sociedade de nos impor papéis sexuais e definições sobre nossa natureza. Nós caímos fora destes papéis demarcados e mitos simplistas. Nós iremos ser quem nós somos. Ao mesmo tempo, nós estamos criando novas formas e relações sociais; isto é, relações de irmandade, cooperação, amor humano e sexualidade desinibida. Babylon [o Capital] nos forçou a nos comprometermos com uma coisa… a revolução”

Pouco depois, em um panfleto escrito pela seção do grupo na cidade de Chicago, em setembro de 1970, destacou a necessidade da unidade de todos os oprimidos e explorados:

“Em função da crescente repressão que nós vemos – de negros, dos povos do Terceiro Mundo, das mulheres, dos trabalhadores – em adição à nossa própria; devido aos valores corruptos, por causa da injustiça, nós não queremos mais ‘fazer a Amerika’ (se “dar bem” na sociedade norte-americana).

(…) Nossa luta em particular é pela autodeterminação sexual, a abolição dos papéis sexuais e estereótipos e o direito humano de usarmos nossos próprios corpos, sem a interferência das instituições legais e sociais do Estado. Muitos de nós entendem que nossa luta não pode ser bem sucedida sem uma mudança fundamental na sociedade, que ponha as fontes do poder (os meios de produção) nas mãos do povo que, no presente, não tem nada.

(…) Mas, na medida em que nossa luta avança, ficará cada vez mais claro, pelas mudanças das condições objetivas, que nossa libertação está intrinsecamente ligada à libertação de todos os povos oprimidos”.

Essa é perspectiva que norteia o PSTU e suas secretarias LGBT, de Negros e Negras e de Mulheres. Uma tarefa nada fácil e cheia de contradições, temos que admitir. Uma luta, contudo, que, no dia a dia, é travada não só pelo partido, mas também nas entidades que ajudamos a construir no movimento, particularmente no interior da CSP-Conlutas, como o Quilombo Raça e Classe, o Movimentos Mulheres em Luta e o Setorial LGBT da entidade.

Uma batalha difícil, até mesmo pelas muitas vezes lamentáveis tradições da esquerda brasileira. Mas que, temos certeza, é fundamental para construirmos a sociedade socialista que queremos e necessitamos. Um mundo onde a plena igualdade econômica e política seja também palco para a total diversidade e liberdade.