Stokely Carmichael em foto de 1966
Redação

 Leia o 3º artigo do Especial Panteras Negras 50 anos

As histórias do principal símbolo e da mais conhecida palavra-de-ordem dos Panteras Negras merecem ser conhecidas. Apesar de serem anteriores ao surgimento do grupo, ambas têm a ver com Stokely Carmichael (1941-98) que, anos depois, também se tornaria um dos principais nomes associados aos Panteras.

Conhecido no final de sua vida como Kwame Ture, Carmichael teve enorme influência sobre as políticas e táticas dos Panteras apesar de ter militado no grupo pouco mais que um ano, entre 1968 e 1969, quando rompeu com Seale e Huey centralmente em torno de questões relativas à unidade de raça e classe (o que, evidentemente, incluiria brancos) e ao debate de como e com quem construir uma política de Black Power (Poder Negro).

Sua trajetória também é exemplar das mudanças que estavam ocorrendo na época e como elas repercutiam nos movimentos negros às vésperas da fundação dos Panteras. Nascido em Trinidad e Tobago (ilhas no Mar do Caribe), Carmichael migrou para os EUA aos 11 anos. No início dos 1960, já como um estudante universitário, tornou-se ativista pelos direitos civis, tendo participado ativamente das campanhas de registro eleitoral de negros (as) e, em 1966, foi eleito presidente do Comitê Coordenador dos Estudantes Não-Violentos (SNCC).

Ao abordamos as origens do símbolo do movimento (neste artigo) e a ideia do “Black Power” (no próximo), nosso objetivo é ver, também, como eles se vinculam a temas fundamentais na trajetória dos Panteras, como a autodefesa, a violência e as distintas concepções de “poder negro” que se embaralhavam na época.

Garras à mostra! Chega de ficar acuado!
Em agosto de 1965, Stokely estava entre os fundadores da Organização pela Liberdade do Distrito de Lowndes (LCFO), no Mississippi, cuja principal atividade era o registro de eleitores negros (as). Lowndes era exemplar do racismo na época: 80% da população era negra, mas 86 famílias brancas tinham controle político absoluto, sendo donas de 90% das terras. Os índices de violência eram tão bizarros que a cidade era conhecida como “Sangrenta Lowndes”.

Foi exatamente pra simbolizar que negros e negras não ficariam mais acuados diante desta situação que o LCFO adotou uma pantera negra como símbolo, como Carmichel explicou numa palestra feita na Universidade de Berkeley (California), em 1966: “(…) Um lindo animal preto que simboliza a força e a dignidade do povo negro. Um animal que só parte para o ataque quando é colocado contra a parede. E quando isto acontece, ele não pode fazer outra coisa senão saltar pra fora da toca. E, sim, quando ela dá o pulo, nada a pode deter.”

Seguindo a dinâmica dos movimentos na época, rapidamente o foco do grupo se voltou contra a violência racista e o LCFO montou uma organização de autodefesa armada para se proteger da nefasta Ku Klux Klan, o sanguinário grupo de supremacia branca (também conhecido como KKK, ou simplesmente “o Klan”), formado por volta de 1865, como resposta à derrota do Sul na Guerra Civil e à abolição da escravidão.

O principal líder do LCFO era John Hulett, que nos 1960 havia fundado e dirigido o Movimento Cristão de Lowndes County para os Direitos Humanos. No entanto, diante da ineficácia das táticas propostas por Luther King, Hulett acabou ficando conhecido por declarações que, anos mais tarde, também iriam repercutir no programa e nas ações dos Panteras: “estamos aqui para tomar o poder legalmente, mas se formos impedidos pelo governo de fazê-lo legalmente, vamos fazê-lo da forma que todos os outros o fizeram, incluindo a forma como os americanos fizeram a Revolução Americana”. Ou seja, organizados como um exército e com armas nas mãos.

E esta era uma ideia que pairava mais e mais sobre as cabeças de jovens negros diante da persistente e crescente violência racista, como Hulett também lembrou em uma entrevista concedida em 1988: “(…) Nós não éramos pessoas violentas. Mas nós éramos apenas pessoas se protegendo no caso de sermos atacados por indivíduos (…) nós estávamos dispostos a fazer o que precisasse ser feito para sobrevivermos”.

Cercados pela ferocidade do racismo, muitos jovens estavam chegando à conclusão de que, assim como uma pantera, deveriam reagir. Para muitos, isto significava exercer o inquestionável direito de autodefesa. Mas, para um número crescente, a luta armada também começava a ser vista como uma opção.

Uma conclusão que, como veremos num próximo artigo, também refletia as muitas rebeliões e revoluções que varriam o mundo – de Cuba ao Vietnã, da África a América Latina – e as polêmicas em torno das concepções e perspectivas das principais correntes político-ideológicas da época (stalisnimo, maoísmo, castrismo, panafricanismo,  terceiromundismo etc.). O que levou a métodos de organização, táticas de ação e perspectivas políticas que apesar de terem garantido importantes conquistas e deixado valiosos exemplos e legado, também fizeram que toda uma heróica geração de militantes pagasse um altíssimo preço.

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1º Artigo: Panteras Negras: um rugido que ainda ecoa contra o racismo
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Carmichael, autodefesa e Black Power
Independentemente dos debates em torno do tema e de que Carmichael estivesse longe de ser o primeiro a defender o uso da violência na luta por direitos e liberdade, a legitimidade das políticas de autodefesa da comunidade negra ou da violência revolucionária para enfrentar o sistema e derrubar a opressão (basta lembrar o exemplo de Malcolm X), o grande impacto que estas ideias tiveram sobre os Panteras tem a ver tanto com o contexto histórico, em meados dos anos 1960, quanto a situação nos EUA, onde se aprofundava o desgaste com as direções mais “moderadas” do movimento e se intensificava a polarização racial.

Este é o centro da análise do livro “Black Power: a política de libertação nos EUA”, escrito por Carmichael e Charles V. Hamilton, em 1967, e que teve enorme impacto nos movimentos da época: “Cada vez que as pessoas negras nessas cidades viam o Dr. Martin Luther King levar um tapa, ficavam com raiva. Quando viram as meninas negras bombardeadas até a morte em uma igreja e ativistas de direitos civis emboscados e assassinados, eles ficavam mais irritados. E quando nada aconteceu, eles ficaram loucos. Nós não tínhamos nada a oferecer que eles pudessem ver, a não ser sair e apanhar novamente. Nós ajudamos a construir a sua frustração (…)

A frase-chave em nossos dias é não-violência. Durante anos pensou-se que os negros não iriam literalmente lutar por suas vidas. (…) A noção aparentemente deriva dos anos de marchas e manifestações em que os negros não revidaram e a violência sempre veio dos policiais brancos. Há muitos que ainda acreditam sinceramente nessa abordagem. Do nosso ponto de vista, policias brancos furiosos e cavaleiros da noite brancos [o Klan] devem entender que seus dias de liberdade, agressões e chicoteamento acabaram. Os negros deveriam e devem revidar”.

Expressando o que se passava pela cabeça de milhares de jovens negros, Carmichael achava que estava na hora de mandar um recado inequívoco para os racistas: “OK, tolo, faça a sua jogada, e corra o mesmo risco que eu corro: de morrer.”

Panfleto da LCFO, que passou a adotar a pantera negra como um símbolo em 1965
Panfleto da LCFO, que passou a adotar a pantera negra como um símbolo em 1965

As ideias sintetizadas no livro de Carmichael também em muito contribuíram para moldar o conceito de Black Power que marcou a trajetória dos Panteras: “Aqueles de nós que defendem o Black Power tem bastante claro em nossas mentes que uma abordagem “não-violenta” dos direitos civis é uma abordagem pela qual os negros não podem pagar e um luxo que as pessoas brancas não merecem. Está evidente para nós – e deve tornar-se assim também para a sociedade branca – que não pode haver ordem social sem justiça social. As pessoas brancas devem entender que eles devem parar de mexer com as pessoas negras, ou os negros vão revidar!

Ainda relevante no que se refere à história dos Panteras, Carmichael estava dentre os que subordinavam as táticas e políticas do movimento a uma postura radicalmente racialista, traduzida na sua oposição, em amplos aspectos, aquilo que, na época, era conhecido como “integracionalismo”. Um debate que, inclusive, esteve no centro de sua ruptura com os Panteras Negras, em 1969.

Ele considerava que qualquer tentativa de “integração” com ou na sociedade branca era uma ilusão “desprezível” porque era, na verdade, “um subterfúgio para a manutenção da supremacia branca”. Nas relações cotidianas e no dia-a-dia da sociedade, Carmichael era contra os casamentos e até mesmo as relações pessoais interraciais. No campo político, seu racialismo o levou a defender, em 1966, a expulsão dos (as) brancos(as) que militavam no Comitê Coordenador dos Estudantes Não-Violentos (SNCC).

Apesar de defender a aliança circunstancial com organizações “brancas” – principalmente em torno da campanha contra o alistamento obrigatório na Guerra do Vietnã –, Carmichael foi um dos maiores entusiastas da ideia de Black Power associada à formação de um Partido Negro. Segundo ele, “Black Power significa unir o povo negro para formar uma força política que possa eleger seus representantes ou forçar os eleitos a falarem sobre suas necessidades [ao invés de depender dos partidos estabelecidos]”

Como mencionado, a rápida passagem e a ruptura de Carmichael com os Panteras Negras foram marcadas pelos debates em torno destes temas. Vale dizer que, conseqüente com suas ideias, depois de ter deixado o movimento, e em meio a uma furiosa perseguição por parte do governo norte-americana, Carmichael transferiu-se para a África onde passou a viver ao lado de sua companheira Miriam Makeba (cantora sul-africana, símbolo da luta contra o apartheid).

Na Guiné, Stokely se tornou assessor do presidente Ahmed Sékou Touré, um dos dirigentes da luta pela independência e que governou o país de 1958 até sua morte, em 1984. A relação do líder negro norte-americano com o presidente fica evidente na mudança de seu nome: Kwame Ture é uma homenagem ao presidente e ao então de Gana e um dos fundadores do Pan-Africanismo, Kwame Nkrumah.

Os últimos trinta anos da vida de Carmichael foram dedicados à construção do Partido Revolucionário de Todos os Povos Africanos (A-APRP), expressão das ideias de Nkrumah. Mas, esta é uma outra história. Enquanto isto, do lado de cá do Atlântico, o debate sobre como e com que construir um projeto de Black Power agitava os movimentos negros norte-americanos. Este é o tema de nosso próximo artigo.

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação e  Américo Gomes da Direção Nacional do PSTU

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1º Artigo: Panteras Negras: um rugido que ainda ecoa contra o racismo
2º Artigo: Os legados de Luther King, Malcolm X e a crise do pacifismo e do racialismo