Georgi Dimitrov, que apresentou a política de frente popular no 7 Congresso da IC
Joana Salay, de Portugal

Joana Salay, desde Portugal

Alguns setores e ativistas de esquerda têm resgatado a obra “Anti-Dimitrov” de Francisco Martins Rodrigues (FMR), teórico e militante comunista português, que faz uma dura crítica à adesão da frente popular como estratégia na Internacional Comunista a partir do seu 7º Congresso.

O resgate da obra surge num contexto de ressurgimento de vários governos de colaboração de classes, principalmente na América Latina, e em que é bastante difundida a defesa da ampla unidade dos setores “progressistas” contra o ascenso de forças reacionárias. A obra de FMR ganha adesão num setor que começa a ver os limites da construção da frente ampla e busca respostas teóricas aos erros que identificam na atuação do stalinismo ao longo da história. Neste artigo queremos então debater o contexto da crítica que faz FMR à frente popular, a essência da política da frente popular no movimento stalinista e os limites que identificamos na crítica que faz FMR ao stalinismo e, com isso, debater qual o programa que devemos contrapor à estratégia da frente popular.

Origens da rutura de FMR com o PCP

Militante do PCP em meio à ditadura portuguesa, FMR começa a acumular críticas à linha do partido, pois acreditava que o combate ao “desvio oportunista” que a maioria do CC travava contra Fogaça, dirigente do partido que defendia a ideia de que Salazar (ditador Português) poderia ser tirado do poder pacificamente, estava incompleta, já que era preciso retirar das orientações do partido a busca por uma aliança estratégica com a burguesia liberal para a derrubada do fascismo, a concretização da tática da frente popular em Portugal.

Foi na URSS, numa reunião do CC do PCP em agosto de 1963, que FMR apresenta a sistematização das suas críticas à linha oficial do partido em Portugal. No texto “Luta Pacífica e Luta armada no Nosso Movimento” sistematiza a sua ruptura em 3 divergências centrais: a via para o levantamento nacional e a questão da luta armada; a direção proletária da revolução e a política de unidade nacional antifascista; e a linha do movimento comunista internacional e a luta contra o imperialismo e o revisionismo.

A partir de então, e tendo visitado a China e a Albânia em 1964, FMR vai ser o protagonista da construção do maoísmo em Portugal. Em 1983 FMR rompe com a UDP (União Democrática Popular), um dos grupos que fizeram parte da fundação do atual Bloco de Esquerda, pois considera que caíram nos mesmos desvios do PCP.

No seu percurso político, fundou diversos grupos identificados como de extrema esquerda no país, sendo que o último grupo que fundou foi o Política Operária em 1985, onde militou até a sua morte em 2008.

A sua crítica à estratégia da Frente Popular, escrita em 1985 no livro o “Anti-Dimitrov. 1935-1985, meio século de derrotas da revolução”, é a expressão teórica das conclusões que tirou da sua experiência com o stalinismo e o maoísmo.

O livro afirma que a estratégia de frente popular apresentada por Dimitrov, secretário-geral da Internacional Comunista entre 34 e 43, e aprovada em 1935 no 7º Congresso da IC, teria colocado os comunistas em defesa da democracia burguesa. FMR retoma vários momentos importantes da história do movimento operário internacional, como a Guerra Civil Espanhola, a Revolução Chinesa e a própria rRvolução Portuguesa, para demonstrar como a política de unidade com setores da burguesia levava à derrota dos revolucionários, principalmente por retirar protagonismo político da classe operária.

A teoria da frente popular

Em seu livro Os governos de Frente Popular na História, publicado no Brasil pela Editora Sundermann, Nahuel Moreno faz uma boa sistematização das bases materiais e teóricas do surgimento da teoria da frente popular e suas variantes. Retoma que é já com o menchevismo que surge a orientação de que, para acumular forças e vencer, o movimento operário deve buscar a unidade com setores burgueses, e principalmente, demonstra como foi duramente combatida por Lênin e Trotsky.

A essência da política menchevique era a busca por formar “uma frente comum de colaboração política com o inimigo de classe”, que depois se concretizou numa visão da revolução por etapas, onde primeiro é preciso fazer a revolução burguesa e desenvolver o capitalismo para, só depois, fazer a revolução socialista. Em oposição a esta estratégia, e afirmando que a divisão fundamental da sociedade russa era entre a classe burguesa e o proletariado, Lênin e Trotsky, por caminhos diferentes, desenvolveram uma política que tinha como estratégia a conquista do poder pelo proletariado. É com essa visão estratégica que Lênin orienta a linha de nenhum apoio ao Governo de Kerensky, e de que a tarefa do partido bolchevique era explicar pacientemente às massas o carater burguês deste governo.

No entanto, foi com Stalin e Dimitrov que esta concepção dos “campos burgueses progressivos” foi elevada ao nível de uma teoria geral, de aplicação permanente pelos partidos operários em todos os países e circunstâncias, sistematizada na estratégia da frente popular.

No contexto de ascenso do fascismo na Europa, depois de aplicarem uma política ultraesquerdista e sectária na Alemanha, negando-se a fazer frente única com a Social-Democracia para derrotar o nazismo; foram para o extremo oposto, concluíram que era “necessária a mais sólida unidade de todas as forças ‘democráticas’ e ‘progressistas’, de todos os ‘amigos da paz’ para a defesa da União Soviética, por um lado, e da democracia ocidental, por outro”. [1] Entre as forças chamadas amigos da paz estavam o Governo de Blum na França, Largo Caballero e Negrín no Estado Espanhol e os imperialismos francês, britânico e norte-americano.

Mao-Tse-Tung elevou esta teoria a um princípio teórico filosófico com a teoria das contradições.  Relativizando a contradição principal da sociedade capitalista a depender dos conflitos do momento, Mao constrói uma justificação teórico-filosófica para a defesa da construção de um campo progressista da “nação”, dirigido pela burguesia nacional, contra o campo integrado pelo imperialismo e pelo “pequeno número de traidores” que o apoia.

Do “socialismo num só país” para a busca de campos burgueses progressivos

A teoria das frentes populares já teve diversas variantes, como nos países semicoloniais, onde os stalinistas procuravam formar “frentes antiimperialistas” com a chamada “burguesia nacional” ou “antimonopolista”. A essência é sempre a mesma: a conformação do campo burguês progressista.

No entanto, é importante compreender que as bases teóricas da teoria da frente popular não estão em 1935 com Dimitrov/Stalin, como faz pensar o livro de FMR, mas sim na teoria que consolidou o stalinismo como a força expressiva da burocratização da URSS, a teoria do “socialismo num só país”, formulada em 1924 no sexto congresso da IC pelo próprio Stalin. Assentada numa contradição real da revolução russa, que era o isolamento da URSS depois da derrota da revolução alemã, a teoria significava na prática o abandono da estratégia da revolução internacional e da classe operária como direção revolucionária em nome de um futuro “acúmulo de forças nacional” e concretizou o caminho para a restauração capitalista.

Como afirma Moreno, a teoria do “socialismo num só país” é a teoria dos campos burgueses progressivos em dois níveis, no nacional e no internacional. No campo nacional se expressa na colaboração com setores dos camponeses ricos e os homens da NEP, setores exploradores na cidade, e no campo internacional é a colaboração com o imperialismo expressa na coexistência pacífica. Neste sentido, compreender as bases da Teoria da Frente Popular de Dimitrov, passa por analisar o processo de burocratização da URSS que se inicia não em 1935, mas sim em 1924 e já demonstra a sua estratégia de colaboração de classes com a teoria reacionária de “socialismo num só país” e com a concepção etapista da revolução.

Se não é o Dimitrov, qual a orientação estratégica?

Depois do Anti-Dimitrov, FMR acelera um curso de elaborações e críticas e acaba por concluir que a URSS nunca foi um Estado Operário, mas sim um capitalismo de Estado, fundamentalmente pelo fato do proletariado não estar no poder. Por outro lado, iguala o trotskismo e o stalinismo, afirmando que ambos seriam parte de um projeto burocrático e de colaboração de classes, uma vez que o trotskismo continuou a defender a URSS como um Estado Operário e a identificar os partidos stalinistas como parte do movimento operário. Infelizmente, não poderemos neste artigo desenvolver esta parte da polémica com FMR, no entanto acreditamos ser importante demonstrar brevemente o percurso do trotskismo e o programa que apresentou como saída aos impasses criados pela degeneração soviética.

O trotskismo se afirma como corrente no combate sistemático à degeneração da URSS e às suas expressões teóricas, a começar pelo “socialismo num só país”.  Os únicos a combater a estratégia da Frente Popular em geral, no período da sua aprovação no sétimo congresso, e em particular, na França nos anos de 34 e 35, foram Trotsky e a Oposição de Esquerda.

Trotsky funda a IV internacional em 1938, após muitos anos de duro combate com o stalinismo que levou a uma perseguição sistemática do aparato soviético contra a oposição de esquerda.

A IV Internacional é fundada para reafirmar a estratégia revolucionária leninista e por isso reivindica os 4 primeiros congressos da IC como patrimônio político teórico. No entanto, frente ao processo de degeneração stalinista, compreende que era preciso uma leitura completa do processo.

É por isso que Trostky constrói um programa que, compreendendo a degeneração stalinista como fruto da burocratização e do isolamento da revolução e vendo o processo de revisionismo desde 1924, é sustentado em alguns pilares: a defesa da revolução permanente, que defende o proletariado como sujeito dos processos revolucionários e afirma a independência de classe e a estratégia internacionalista a revolução ocorre na esfera nacional e internacional; a necessidade da defesa da democracia operária como método e estratégia; e também a defesa da própria URSS, que apesar da burocratização, expressava ainda as bases sociais operárias conquistadas pela Revolução de Outubro, e era ameaçada não apenas pela contrarrevolução imperialista, mas também pela própria contrarrevolução burocrática, e por isso era necessária uma revolução política. Em oposição à colaboração de classe do stalinismo, o trotskismo construiu um programa de independência de classe e internacionalista.

O que levou à construção da estratégia da frente popular no seio do movimento operário?

Por isso, acreditamos que, sendo fundamental a crítica à Frente Popular de Dimitrov, é preciso encontrar a origem da mesma, que nasce como expressão do processo que já estava contido na ascensão do stalinismo e na teoria do “socialismo num só país”. O risco de separar os dois processos e de não compreender as bases materiais e políticas da degeneração soviética pode levar a dois caminhos: deitar fora o bebê com a água suja, como fez FMR ao concluir que a URSS era um capitalismo de Estado, ou o de fazer uma crítica incompleta ao stalinismo e não romper com as bases teóricas que levaram a uma estratégia de colaboração de classes, que é o caminho que percorre parte importante dos “ex-stalinistas”. Sendo que ambos acabam por não apresentar uma alternativa revolucionária, bolchevique. FMR por exemplo, apesar de ter fundado diversos grupos em Portugal, nunca se dedicou a construir uma internacional.

Rupturas parciais com o stalinismo acabaram por manter pilares importantes do seu conteúdo contrarrevolucionário, ou da defesa da revolução por etapas, da conciliação de classes ou o socialismo num só país. Até mesmo grupos guerrilheiros radicalizaram para a luta armada, mas na estratégia construíram uma saída reformista, capitalista. No Brasil, o próprio Caio Prado Júnior que rompe com a elaboração de que o Brasil tinha uma economia feudal, segue não enxergando o país como parte de uma totalidade mundial capitalista e defendendo uma revolução por etapas quando elabora uma etapa prévia à revolução socialista com a necessidade da eliminação dos traços coloniais. Não compreende que estes traços só serão eliminados pela revolução socialista. Assim, ao romper parcialmente com as elaborações stalinistas e não irem às origens da degeneração, acabam por ficar no meio do caminho e não conseguem retomar ou construir um caminho realmente revolucionário.

A atualidade da polémica

Retomamos todas estas polêmicas históricas por que acreditamos que são parte da resposta revolucionária para os desafios atuais. Vemos um ressurgimento de governos “progressistas” e, perante a estes governos, algumas forças de esquerda acabam por defender a aliança com os “que defendem a democracia” contra as forças reacionárias. É, sem dúvida, uma nova variante da teoria dos campos burgueses progressivos que leva ao adormecimento da classe trabalhadora e à sua submissão política a setores da burguesia.

Frente a esta tendência, como devem se afirmar os revolucionários?

Queremos aqui localizar uma discussão com o PCB. Primeiro, apesar de alguns setores do partido afirmarem publicamente a necessidade de romper com o dimitrovismo, tendo a crítica (incompleta) de FMR como base, Jones Manoel relativiza o tema, afirma que Dimitrov foi mal interpretado e mal aplicado e que a sua teoria de Frente Popular não seria um erro estratégico, uma vez que a “Frente Ampla é uma tática como qualquer outra”. Ou seja, não existe uma ruptura completa sequer com a teoria da Frente Popular de Dimitrov. Vejamos, no entanto, como se concretiza a política atual do PCB frente ao Governo Lula.

Em artigo publicado no site do PCB no dia 8 de março, Gabriel Landi, aparentemente polemizando pela esquerda com a ideia de que o Governo Lula estaria em disputa (no que concordamos). Da leitura atenta do artigo de Landi não conseguimos retirar qual seria então a linha frente ao Governo de Frente Ampla do Lula. Temos de confiar no governo? Disputar à esquerda? Landi acaba por afirmar que “dentro de certos limites, todo governo capitalista está “em disputa” e que “a disputa pelos rumos da política burguesa se realiza muito mais contra o Estado do que em seu interior.”

Ou seja, é preciso, por fora dos aparatos do Estado, pressionar a política burguesa por melhoras para a condição de vida da classe trabalhadora. Esta então deve ser a linha dos revolucionários frente ao governo do PT? Evidentemente não queremos aqui negar a necessidade da luta por reformas e em defesa das conquistas democráticas, essas são parte do processo da luta de classes, e principalmente, são parte da luta para que o proletariado se afirme como sujeito da revolução. No entanto, o objetivo dessa luta não é a “disputa dos rumos da política burguesa”, mas sim a mobilização independente da classe trabalhadora e dos seus setores aliados.

Os camaradas do PCB não seguem as lições que nos deixou Lênin atuando contra o governo de Frente Popular de Kerensky: nenhum apoio ao governo e explicar pacientemente às massas o seu caráter. Repetem um erro similar ao da organização francesa OCI frente ao governo de frente popular de Miterrand (1981-1985), uma vez que não concretizam nenhuma política em relação ao Governo Lula, acabando por se traduzir numa capitulação em relação às medidas do Governo e das expectativas das massas com o mesmo.  Não à toa, Jones Manoel defendeu recentemente em Pernambuco a colaboração com João Paulo do PT “rumo ao socialismo”. Por trás de uma roupagem socialista de esquerda, constrói uma nova forma de colaboração de classes.

As propostas dos revolucionários devem seguir no sentido oposto. Toda batalha, dentro e fora do parlamento, deve servir ao fortalecimento da luta e organização independente da classe trabalhadora contra o capitalismo e pela tomada do poder via uma revolução socialista, tudo que sirva à construção dessa consciência revolucionária são as táticas válidas para o nosso movimento. Tudo que caminhe para criar ilusões na “disputa da política burguesa” ou dos seus governos capitalistas, acaba por colocar água no moinho da conciliação de classes e da frente popular. Neste sentido, os revolucionários devem colocar abertamente o caráter burguês do Governo Lula e explicar pacientemente para as massas este caráter, esse é o desafio colocado para o nosso movimento no Brasil.

 

 

[1] Trotsky, El congreso de liquidación de la Comintern, em Escritos, t. VII, vol. 1, p. 133 e 135-6