Desigualdade e violência policial legitimada pelo racismo provocam extermínio da população negra e pobre
Domingo, 27 de outubro. Dois adolescentes caminham nas ruas pobres de Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo. Douglas, 17 anos, estudante do ensino médio, chapeiro em uma lanchonete, e seu irmão de 13 anos. Um carro de polícia se aproxima. Veio para investigar uma denúncia de “perturbação do sossego” pelo som alto de um carro.
Sem que fosse feita qualquer pergunta, o policial disparou no peito de Douglas. O garoto ainda perguntou antes de morrer: “Por que o senhor atirou em mim?”.
Nem Alckmin, nem Haddad e nem Dilma responderam a pergunta de Douglas. Isso por que não podem falar a verdade.
O policial atirou porque para a polícia, todos os negros são bandidos perigosos. É preciso ter a arma engatilhada ao se aproximar. Atirar a qualquer movimento “suspeito”. E se matar algum inocente? Não tem problema, porque a justiça vai encobrir.
O povo do bairro se revoltou. Fizeram barricadas, incendiaram ônibus e fecharam por horas a rodovia Fernão Dias. A Tropa de Choque reprimiu com violência os protestos. A imprensa cobriu a revolta como “vandalismo”, apoiando a repressão. Uma semana depois do assassinato, o policial assassino foi solto.
Violência no Brasil tem cor
Dados do Ministério da Saúde mostram que mais da metade (53,3%) dos mortos por homicídios em 2010 no Brasil eram jovens, dos quais 76,6% são negros. Existe um verdadeiro genocídio policial contra a juventude negra. Para os que duvidam do termo genocídio, é bom lembrar que, entre 2002 a 2010, foram registrados 272.422 assassinatos de negros. Mais do que em muitas guerras.
Não se trata só de violência policial. A violência tem cor. O número de negros mortos é 132,3% maior do que o de brancos. Durante os governos petistas, essa realidade só piorou. Entre 2002 a 2010, houve uma redução de 24,8% de homicídios brancos, mas houve 36% de aumento de homicídios entre os negros.
Brasil: Um país desigual e racista
Existem duas razões principais para essa realidade. A primeira é a profunda desigualdade econômica e de direitos sociais que vivem os trabalhadores. Em particular, os negros, os mais pobres. Em segundo lugar, a violência policial, legitimada pelo racismo disfarçado da justiça, da imprensa e dos governos.
O governo federal diz que nos últimos dez anos teria promovido o pleno emprego, melhorado a oferta de serviços públicos básicos, acabado com a miséria, através de projetos assistenciais como Bolsa Família, entre outros.
A realidade, no entanto, está bem distante desse conto de fadas. A população brasileira extremamente pobre, ou seja, aquela que sobrevive com menos de um dólar por dia, é estimada em 16 milhões de pessoas, das quais 71% são negras.
O crescimento econômico obtido no último período não reverteu a profunda concentração de riquezas. No Brasil do PT, os ricos ficaram muito mais ricos. Os pobres seguiram pobres. As cifras dos investimentos para os projetos assistenciais não passam de gotas no oceano dos recursos do governo destinados aos bancos que nunca lucraram tanto.
A miséria e a desigualdade social seguem sendo as fontes da violência. Não se pode acabar com a violência sem empregos para todos e salários decentes. O crime nasce da desigualdade econômica e social, da necessidade de sustentar uma família, de ter acesso a serviços básicos de educação, saúde e moradia. Também é alimentado pelo fetiche consumista que se propaga na sociedade. A diferença são os meios pelos quais cada um terá e suas oportunidades de acesso a esses bens.
Não se pode mudar o país sem educação, saúde e transporte públicos dignos. A receita é clara: pode-se ganhar a juventude para uma vida diferente, acabando com a violência, se houver emprego, salário, educação para todos. O problema é que isso afetaria o lucro das grandes empresas, e elas não aceitam. Por isso, a lógica da burguesia e dos governos (inclusive do PT) é a mesma: responder a violência com aumento da repressão policial. E os resultados estão aí: cada vez mais violência.
Além de pobres, somos negros!
Maio de 2012. Durante a noite, um helicóptero da PM, perseguindo um traficante, metralhou nove quarteirões do bairro de Senador Camará, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um cenário de guerra foi criado em um trecho de um quilômetro. Uma cena impossível em qualquer bairro rico e branco da cidade. Ninguém foi punido. Afinal, os mortos eram pobres e pretos.
Além de sermos pobres, somos negros e negras. Existe um racismo institucionalizado desde os tempos da escravidão. A localização dos negros entre os mais pobres só pode ser justificada pela inclusão marginal do negro na sociedade capitalista após o período abolicionista e que persiste até os dias de hoje.
A suposta ideia de um país livre de racismo, o “paraíso da democracia racial”, nos faz crer que o problema da violência ao negro se sustente apenas como parte das dificuldades da classe trabalhadora e da falta de oportunidades que trabalhadores e trabalhadoras enfrentam em geral. Assim, a violência policial seria apenas uma triste coincidência de atingir os pobres e, consequentemente, muitos negros.
No entanto, o raciocínio é o inverso. Existe no Brasil uma criminalização da pobreza. A repressão cada vez maior da polícia sobre os bairros pobres é a resposta dos governos ao aumento da polarização social e política.
O racismo, como ideologia de poder político e econômico de dominação burguesia capitalista, em sua grande maioria branca, se faz presente desde que o primeiro negro livre africano pisou em solo brasileiro. E, até hoje, é utilizado para transformar negros e negras livres em escravos do capital.
A violência à população negra, quilombola e indígena, é consciente e proposital. O racismo serve ao capitalismo exatamente de modo a extrair mais lucros e dividir a nossa classe.
A farsa do programa “Juventude Viva”
Os índices da violência contra juventude negra expressam um verdadeiro extermínio, podendo apenas ser classificados como uma epidemia próxima a parâmetros mundiais de intensas catástrofes.
Em geral se considera uma epidemia com 10 mortes para 100 mil habitantes. As taxas de homicídio de jovens negros, em nenhum dos 100 municípios com mais de 50 mil habitantes, apresenta um índice menor a 100 assassinatos a cada 100 mil, nível de violência considerado alarmante. Como qualificar, então, os municípios que tem acima de 200, 300 ou 400 jovens negros mortos para cada 100 mil?
A violência contra juventude negra e pobre foge do controle e tende a crescer e se espalhar rapidamente. Afinal, as contradições das desigualdades econômicas, a falta de acesso a serviços públicos básicos e a influência do racismo institucionalizado são mais agudas e determinantes nessa fase da vida frente, a necessidade de oportunidades aos jovens.
A resposta que o governo federal apresenta para essa situação é o “Plano de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra” (Juventude Viva) que visa reduzir os homicídios da juventude negra a partir de ações preventivas de reeducação pedagógica.
Apesar de suas aparências, o plano não propõe nenhuma iniciativa no que diz respeito à atuação da polícia, principal agente na prática do racismo institucionalizado.
Hoje, nas periferias, as iniciativas do projeto podem se assemelhar com o trabalho de diversas ONGs que supostamente organizam o suporte cultural, esportivo e social para a juventude negra. A ideia da reeducação pedagógica feita por ONGs, em substituição ao Estado, já provou não ser capaz de resolver o problema do extermínio da juventude negra. A polícia que matou Douglas, sem nem ao menos perguntar nada, certamente não iria checar sua matrícula nesses programas culturais, de lazer e etc. Além disso, os recursos do projeto são ínfimos e extremamente insuficientes.
A juventude negra necessita sim de políticas públicas, mas daquelas que de fato invistam dinheiro diretamente nos serviços públicos básicos e de uma política econômica a serviço dos trabalhadores. É também necessário o enfrentamento contra o racismo institucionalizado da polícia. Só assim poderemos combater o processo de extermínio da juventude negra.
A necessidade da desmilitarização!
Recentemente, uma pesquisa divulgada na imprensa mostrou que 70% dos brasileiros não confiam na polícia. Sem dúvida, a falta de confiança se explica pela atual prática dessa instituição. A cada dia, fica mais evidente que a polícia serve e protege os interesses de uma elite e dos poderosos, e não o interesse dos trabalhadores e do povo negro e pobre.
Segundo o estudo, todo dia pelo menos cinco pessoas morrem no Brasil vítimas de confrontos com policiais civis ou militares, uma média que se mantém quase a mesma desde o ano 2000.
A criminalização da pobreza, em particular contra os negros pobres, com repressão indiscriminada nos bairros populares, se une com a criminalização dos movimentos sociais. A repressão às lideranças, sindicatos e entidades do movimento popular e estudantil à frente das mobilizações é parte também da resposta do Estado contra a população. O uso da Lei de Segurança Nacional nas mobilizações do Rio de Janeiro, combinadas com o caráter político dos inquéritos policiais abertos contra integrantes do bloco de lutas do Rio Grande do Sul, reafirmam as práticas ditatoriais, em uma tentativa de reprimir e criminalizar os movimentos sociais.
Herança da ditadura
A proximidade com a Copa do Mundo e o receio de que ocorram protestos que impactem a imagem do pais tem sido uma das principais razões para que o governo federal, em conjunto com as polícias do Rio de e São Paulo, tenham sentado junto a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) para traçar um plano de mapeamento e prisão de manifestantes.
Existem vários instrumentos dessa repressão institucional, que vão desde a ABIN, Serviços de Informação, Polícia Federal, até os batalhões de choque da Polícia Militar. Não houve nenhuma mudança significativa na estrutura repressiva montada na ditadura militar. A democracia dos ricos herdou as instituições e os utiliza hoje aberta e sistematicamente. Os torturadores da ditadura seguem soltos e até mesmo parte de suas leis. A utilização da Lei de Segurança Nacional é uma mostra disso.
A atual política de segurança pública já se mostrou completamente incapaz de resolver o problema da violência. A situação de insegurança que sente a população e a morte de inocentes segue como a regra. Amarildo, Douglas, Jean e Severinos, homens, pobres e negros são reflexo desse “confronto”.
As PMs são estruturadas como forças de reserva do Exército e organizadas como um modelo semelhante, de disciplina rígida e verticalizada. São partes da herança da ditadura. As forças de segurança nacional refletem em seu treinamento, em especial a PM e grupos como a Rota, Tropa de Choque, BOPE e UPPs, a mesma concepção utilizada pelas forças armadas, que têm como finalidade dentro do Estado burguês a proteção do país contra inimigos externos.
Estão organizadas na lógica da guerra, tendo os pobres como inimigos a serem presos e mortos. Segundo o Instituto Sou da Paz, 93% dos mortos em supostos tiroteios com a PM de São Paulo, entre 2001 e 2010, moravam nos bairros pobres da cidade. E o racismo legitima essa violência sobre a maioria negra nos bairros pobres.
Por dentro da PM
Os crimes da PM são julgados pela Justiça Militar. A impunidade é assegurada. Os assassinatos são julgados como “resistência seguida de morte”. Os mortos são sempre os culpados.
As polícias impõem um funcionamento hierarquizado rigidamente, sem qualquer direito democrático interno. Os salários baixos facilitam a corrupção generalizada. Existem esquemas de corrupção ligando os quartéis da PM com traficantes da região, a partir dos comandantes, como já foi inúmeras vezes denunciado. Muitas vezes existem poucas diferenças entre os bandidos e os policiais. A população pobre nos bairros de periferia das grandes cidades tem de conviver com bandos de traficantes de um lado, e bandos de policiais fardados, de outro.
Outra política de segurança pública
É preciso avançar para a discussão de outra política de segurança pública. Temos hoje a terceira maior população carcerária do mundo e umas das polícias mais violentas. A polícia militar no Brasil, criada no período ditatorial, não herdou apenas esse passado como origem, mas vêm dando exemplos reais de que também aplica os mesmos métodos dos ditadores, como as bárbaras citações da sessão de tortura as quais o pedreiro Amarildo foi submetido.
É inadiável a discussão sobre a desmilitarização da PM. Para o PSTU, a desmilitarização é muito mais do que simplesmente a retirada da farda e o desarmamento da PM. É necessário acabar com as polícias atuais violentas, racistas e elitistas. É necessário criar uma polícia civil unificada, que defenda os interesses dos pobres e dos bairros da periferia, controlada pelas comunidades. Uma estrutura interna democrática, com eleição dos seus delegados pela população local. É necessário também que seus integrantes tenham direito à sindicalização, greve e salários dignos.
*Originalmente publicado no Opinião Socialista n° 472