Ao ver as terríveis e cada vez mais frequentes cenas que mostram cadáveres de homens, mulheres e crianças boiando no mar ou navios abarrotados de gente com as faces desfiguradas pelo medo, a dor, o desespero e a fome é impossível não lembrar as “barcas do inferno”, os tumbeiros, os navios negreiros utilizados no sequestro de nossos ancestrais africanos.

Imagens separadas por centenas de anos, mas que têm umas tantas coisas em comum a começar pelo fato de que os embarcados são na sua quase totalidade não-brancos (negros e árabes), cujas mortes são, a cada viagem, contadas às centenas. É verdade que, hoje, os motivos que forçam a saída da África são outros: a fuga de ditaduras sanguinárias, guerras e processos contrarrevolucionários, a fome, as epidemias e a miséria. Contudo, por trás dos tumbeiros ou dos barcos de refugiados estavam e estão também a mesma classe e as mesmas causas e interesses: a burguesia, o imperialismo, o racismo, a ganância sem fim e os métodos desumanos a serviço do lucro e alicerçados em toda forma violência e opressão.

Foram estas as verdadeiras causas do mais recente e pior naufrágio, na passagem de 19 para 20 de abril. Os números são incertos, mas calcula-se que cerca de 950 pessoas estavam na embarcação (dentre elas cerca de 50 menores e 200 mulheres). Apenas 28 sobreviveram e 24 corpos foram resgatados.

Todas estas vidas foram interrompidas por um mesmo obstáculo maior e mais profundo do que as águas turbulentas do Mar Mediterrâneo: as políticas racistas e xenófobas dos países da União Europeia (EU) que estão se aproveitando da tragédia para tentar implementar medidas ainda piores. E suas mortes não foram um acidente ou uma fatalidade. Foram mais um crime cometido pelo Capital.

Holocausto em alto mar
Apesar de que nada possa ser comparado à diáspora forçada africana motivada pela escravidão, o verdadeiro genocídio que tem resultado na fuga em massa de africanos e árabes também é, inegavelmente, um crime contra a humanidade.

A maioria dos imigrantes que tenta desesperadamente chegar ao continente europeu é negra e árabe do continente africano (de países como Senegal, Mali, Eritreia, Serra Leoa, República do Congo e Somália) e populações do Oriente Médio, principalmente da Síria. E o número de mortos está crescendo de forma aterradora, mesmo considerando-se que qualquer número que citemos estará sempre muito longe da realidade, dada toda “ilegalidade” que cerca o tráfico.

Desde o início do ano, cerca de 1800 imigrantes já morreram e sete mil foram resgatados (muitos dos quais deportados na sequência). Este número é 30 vezes maior do que o de mortes no mesmo período do ano passado e a tendência é que ele se multiplique aos milhares. Em 2014, cerca de 3.300 imigrantes afogaram-se ou morreram sufocados nos barcos (e 3700 foram resgatadas). Contudo, no ritmo em que as mortes estão acontecendo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) calcula que até o fim do ano nada menos do que 30 mil imigrantes irão perder suas vidas.

Esses números absurdos, no entanto, são apenas a ponta de um iceberg macabro feito de corpos negros na sua maioria. Semanalmente, milhares tentam fazer a travessia e centenas morrem principalmente nas costas da Itália, da Espanha e da Grécia. Em 2014, foi batido um recorde, com 283.000 estrangeiros que desembarcaram no continente europeu. Mas, para se ter uma ideia da crise atual, no primeiro trimestre de 2015, quase 57.3000 imigrantes  ingressaram na Europa . E somente na última semana, 10.000 pessoas chegaram às costas da Itália.

E tem mais: somente na região de Trípoli, na Líbia, 200 mil pessoas estão à espera de uma vaga nos tumbeiros modernos e desde 2013, segundo a OIM, 45 mil tentaram entrar apenas na Itália e em Malta.

São números que deveriam sensibilizar qualquer um. Mas este não é o caso dos empresários, banqueiros, latifundiários europeus que, depois de construírem suas fortunas explorando os trabalhadores em geral, mas os imigrantes de forma ainda mais cruel. Tudo isto sempre acobertado pela elite política dos países da região. E também neste sentido, os barcos que estão naufragando no Mediterrâneo têm muito a ver com aqueles que cruzaram o Atlântico durante séculos.

Os principais responsáveis pelo que está acontecendo com os imigrantes são herdeiros diretos daqueles que estiveram à frente do tráfico negreiro, de quem também herdaram sua desumanidade e desprezo pelo povo pobre e sofrido.

Os traficantes modernos e o racismo de sempre
Há cerca de 500 anos, os primeiros grandes mercadores capitalistas, os traficantes de escravos, contribuíram de forma decisiva para que a nova classe social que estava surgindo naquele momento, a burguesia, acumulasse o Capital que lhes permitiria chegar, séculos depois, ao poder. Ou seja, o nascimento e o desenvolvimento da burguesia e do capitalismo têm suas raízes no sequestro de mulheres, homens e crianças africanos e nos barcos imundos em que eles foram jogados sob condições que ultrapassam qualquer nível possível do que possa ser chamado de desumano.

Como Marx destacou em “O Capital”, a expropriação dos recursos naturais da África, das Américas e da Ásia, a escravidão, e particularmente “a conversão da África em uma reserva para a caça comercial de negros foram fatos que caracterizaram o amanhecer da produção capitalista. Estes procedimentos são os carros chefes da acumulação capitalista” e a “escravidão direta é um elemento tão central na industrialização atual quanto as máquinas, o crédito etc. Sem escravidão não haveria algodão, sem algodão não haveria a indústria moderna”.

Um processo que tem tudo a ver com a atual situação dos imigrantes na medida em que as “barcas do inferno” só existem, em grande medida, devido ideologias racistas e xenófobas, as mesmas que, desde sempre, têm sido utilizadas para oprimir e superexplorar negros e imigrantes e, hoje, se levantam como um muro construído nas fronteiras da Europa.

Como lembra o historiador marxista Eric Willimas, em “Escravidão e capitalismo”, todos os estereótipos que cercam os “não-brancos” nos quais estão embasados o racismo e a xenofobia (rejeição e ódio aos imigrantes) surgiram como ideologias criadas sob medida para transformar homens e mulheres em “moeda”, “peças” e “mercadorias”, roubando-lhes a própria humanidade algo que, no mundo em que vivemos, fica lamentavelmente explícito no descaso e desprezo com que a morte de centenas é tratada, semana após semana.

Uma criação ideológica que teve como um de seus pilares os tumbeiros, como lembra Ahmed Shawki, em “Black Líber  ation and Socialism” (“Liberação negra e socialismo”), “o racismo e a opressão racial emergiram na Europa durante a transição do Feudalismo para o Capitalismo. (…) Especificamente, o racismo emergiu na Europa Ocidental como uma consequência do tráfico negreiro, como uma justificativa ideológica para a escravidão”.

Uma “justificativa” que sempre se revestiu da mesma hipocrisia que tem marcado a história da burguesia e, como veremos abaixo, também caracteriza a posição dos dirigentes europeus diante dos naufrágios. Para que se tenha uma ideia do que estamos falando, basta citar o caso do filósofo e escritor Voltaire (1694 – 1778), bastante conhecido como um dos principais nomes do Iluminismo e, consequentemente, da Revolução Francesa, mas cuja biografia geralmente omite o fato ter sido um próspero traficante de escravo. E do pior tipo: aquele que justificava seus crimes como se estivesse fazendo um favor para “selvagens” que se aproximavam mais de animais do que seres humanos e poderiam finalmente ser “civilizados” nos países em que seriam escravizados.

O “humanista” e ardoroso defensor da “liberdade, igualdade e fraternidade” deixou sua hipocrisia registrada em uma carta que escreveu para um dos seus sócios: “Congratulo-me convosco pelo êxito do navio – o Congo – ter chegado oportunamente à costa da África para livrar da morte tantos infelizes. Sei que os que vão embarcados em vossos navios são tratados com muita doçura e humanidade, e por isso felicito-me de ter feito um bom negócio, praticando, ao mesmo tempo, uma boa ação”.

Este tipo de cinismo tem caracterizado a história da burguesia. Quando precisou acumular capital às custas do tráfico de gente, as elites europeias legalizaram a escravidão afirmando estar fazendo um “favor” para os incivilizados povos “não-brancos”. Quando precisou braços para mover as máquinas sobre as quais eles construíram suas fortunas, incentivou a entrada de imigrantes.

Hoje, quando a crise varre os países da UE, os descendentes daqueles que mais se beneficiaram com tudo isto ao mesmo tempo em que mantém milhões de imigrantes como mão de obra barata no continente, dizem que impedir a entrada de mais pessoas é uma forma de defendê-los eprotegê-los, como se insinua no plano que está sendo elaborado pela UE.

E mais: os mesmo países que, durante séculos, têm saqueado a África, incentivado guerras, promovido a fome e alavancado ditadores ao poder tornando a vida das populações locais em um inferno, convivem sem nenhuma culpa com a morte de milhares e milhares que tentam fugir desta situação.

Novas e feitorias e senzalas
A perversidade deste círculo vicioso, é importante lembrar, não se limita àqueles que morrem na travessia. Assim como na época do tráfico negreiro, o martírio no mar é “apenas” a estação final da verdadeira “via crucis” enfrentada pelos imigrantes. E mesmo quando conseguem sobreviver e entrar no continente, sabemos que seus destinos são marcados pela clandestinidade, o subemprego, moradias pra lá de precárias, falta de acesso aos serviços públicos ou ataques xenófobos e racistas de grupos fascistas.

Contudo, os sofrimentos começam mesmo antes do embarque. Revivendo novamente a época do tráfico negreiro, europeus e seus agentes na África fizeram renascer as “feitorias” (ou “campos de concentração”, como dizem os imigrantes) nas quais negros e negras são “estocados” na costa do continente. Algumas delas, como a de Misrata, na costa da Líbia, funciona como campo de detenção que viu o número de prisioneiros dobrar somente na última semana, tendo, hoje, mais de mil pessoas em suas precárias instalações.

Em outro deles, 500 pessoas dividem um único banheiro. Em todos há relatos de violência sem limites. No ano passado, depois de um naufrágio em Lampedusa, na costa italiana, um sobrevivente contou que dezenas haviam sido violentados e torturados na Líbia antes do início da viagem. Relato repetido por outro sobrevivente ao jornal “La Repubblica”: “Levaram todos os nossos objetos pessoais, sobretudo, os móveis. Nos deixaram em pé o dia todo e nos obrigaram a assistir às torturas dos nossos companheiros com fios elétricos”. E, da mesma forma que ocorria na época escravidão, os novos traficantes são impiedosos com os que se rebelam: “eram amarrados com uma corda no pescoço, e corriam o risco de se estrangular a qualquer movimento”.

Como sempre, lamentavelmente, o machismo acrescenta mais violência a esta barbárie. Segundo os depoimentos de oito sobreviventes de outro naufrágio cerca de 130 refugiados, entre eles 20 mulheres, foram vítimas de terríveis abusos sexuais, antes de embarcar para a Europa.

Se tudo isto não bastasse, os que tentam imigrar gastam tudo o que tem. Sabe-se, por exemplo, que uma viagem partindo do “campo de concentração” de Sebha, no deserto entre Sudão e Líbia, custa cerca de 3.500 dólares (R$ 10.700).

Algo que, novamente, expõe as mulheres a mais violência, como contou uma jovem sobrevivente: “As mulheres que não tinham dinheiro para pagar eram violentadas (…) Uma noite, um somali e outros dois homens me obrigaram a sair do recinto onde eu estava, me jogaram no chão, prenderam meus braços e jogaram gasolina na minha cabeça, o que deixou queimaduras terríveis no rosto”. Esta atrocidade está longe de ser um caso isolado. A barbárie é tamanha que o procurador italiano Maurizio Scalia chegou a declarar que “todas as mulheres do campo foram violadas por somalis e líbios. Lembra momentos trágicos da história da humanidade”.

A fúria de Tritão e Poseidon
Como lembrou o presidente do PSTU, Zé Maria, em uma postagem no Facebook, os planos da União Europeia para enfrentar esta crise humanitária só tendem a agravá-la: “Os países da UE lavam as mãos e tratam os refugiados como um problema militar e de segurança, como se não tivessem nada que ver com a miséria dos países da África e Oriente Médio. A realidade, porém, é outra. O imperialismo europeu é responsável pela penúria que atinge a região. A Líbia, por exemplo, se tornou, sob a ditadura Kadafi, no paraíso das grandes empreiteiras e multinacionais do petróleo, convertendo-se em uma semicolônia das potências europeias, principalmente da Itália”.

Diante do fluxo migratório e, também, da crise econômica e social europeia, a UE pretende transformar uma situação já lamentável em um pesadelo ainda maior, mais uma vez revestido de “boas intenções” e “ajuda humanitária”. Diga-se de passagem, até mesmo os nomes dados ao plano – Tritão (para a costa da Itália e Poseidon, para a da Grécia – são pérolas da hipocrisia que revelam as verdadeiros propósitos da Frontex (a agência de controle das fronteiras da UE).

Tritão, o Rei dos Mares na mitologia grega e filho de Poseidon, é responsável tanto por apaziguar as águas, abrindo passagem para seu furioso pai, quanto por atormentar a vida dos navegantes. A operação que já está em curso na Europa tem muito a ver com isto. Na atualidade e no mundo real, “acalmar” o Mediterrâneo é impedir que os imigrantes naveguem por ele. E é para isto que a EU está afiando seu tridente.

O objetivo declarado da operação é o controle da entrada no continente e não salvar vidas. Uma política criminosa defendida com um descaramento impressionante por parte dos governantes europeus. Fernández Dias, Ministro do Interior da Espanha, por exemplo, declarou se opor veementemente a que a operação Tritão seja utilizada em missões de salvamento: “Frontex é uma agência que tem por missão proteger as fronteiras e não se converter em uma agência de salvamento e resgate”.

Já o primeiro ministro italiano Matteo Renzi propôs centrar a operação no combate aos traficantes, o que, mesmo que seja implementado (o que é difícil acreditar), evidentemente, não vai impedir que as tentativas de refúgio e as consequentes mortes continuem. Pra não falar da eterna cumplicidade entre os traficantes e as elites dos dois continentes, a exemplo do que ocorria até 2011, na Líbia, quando o então ditador Kadafi controlava pessoalmente o fluxo de migrantes para a Europa, através de acordos que mantinha com lideranças políticas e empresários do bloco europeu.

Traçando outro paralelo com os tempos dos tumbeiros, o resultado das operações Tritão e Poseidon também já tem um precedente histórico. Em 1845, a Inglaterra, motivada pela necessidade de criar uma nova mão de obra e consumidores sintonizados com a Revolução Industrial, aprovou a Bill de Aberdeen que autorizava os navios britânicos a reprimir o tráfico, perseguindo e confiscando os navios negreiros.

O resultado foi que o tráfico não só continuou como foi ampliado. No Brasil, ele perdurou até às vésperas do país ser o último a abolir a escravidão, em 1888. E pior: após a imposição da lei não só o tráfico aumentou como também o “valor” dos escravos. Isto pra não falar na corrupção e todo tipo de maracutaia que foram utilizadas pra manter os tumbeiros no mar.

Mas, a essência do plano é pura e violenta repressão. Pra começar, agentes da inteligência estão enviados para as regiões de crise. Eles darão suporte para medidas ainda mais xenófobas, como a coleta das impressões digitais dos imigrantes e a aceleração do processo de repatriação e deportação.

Ao mesmo tempo, a UE pretende aproveitar a crise para intervir militarmente nos países da região, a começar pela Líbia. Quase todos os países membros apoiam uma missão militar na Líbia, o que incluiria o controle da segurança interna do país, o reforço das fronteiras e uma missão naval que vigie as costas líbias.

Que caiam os muros! Ninguém é ilegal!
Todas as medidas proposta significarão o fortalecimento e ampliação dos muros xenófobos que estão sendo erguidos na Europa. Às vezes literalmente, como no caso da Bulgária, onde se pretende erguer um muro de mais de 150 quilômetros de extensão para conter a imigração procedente da Turquia.

Como foi dito, os problemas e sofrimentos dos imigrantes estão longe de terminar quando eles completam a travessia. Além das políticas oficiais que alimentam a xenofobia e o racismo, há de se considerar o crescimento de partidos ultraconservadores ou fascistas que dedicam boa parte de seu tempo na perseguição aos imigrantes.

Isto tudo, contudo, não é uma situação que se resume a Europa e à atual crise. Segundo a agência da ONU que trata dos refugiados, somente durante 2013, 8,2 milhões de pessoas tiveram que deixar suas casas, 1,6 milhão a mais do que em 2012, com uma fuga concentrada em 43% na Síria.

Já de acordo com o Observatório de Deslocamento Interno (IDMC) da Noruega, também em 2013, um total de 63% de pessoas deslocadas de seus países foram motivadas pela violência, intimidação aos oprimidos (por racismo, machismo ou homofobia) e conflitos, como na Síria, Colômbia, Nigéria, República Democrática do Congo e Sudão.

E se não há nenhuma intenção em salvar os náufragos, muito menos pretende-se abrigá-los no continente. Em 2014, somente 7.500 pessoas tiveram seus pedidos de asilo aprovados. Número que está a anos-luz dos cerca de 270.000 que migraram para algum país do continente no ano passado.

Essa é uma situação que só tende a se agravar no mesmo ritmo e velocidade da crise. E, como sabemos, já extrapolou as fronteiras da Europa, basta lembrar da situação de haitianos, africanos e latino-americanos no Brasil.Diante disto, a defesa dos imigrantes, a começar de suas vidas, é uma tarefa de todos e todas nós. Ao invés da repressão e perseguições das mais variadas formas, exigimos condições dignas de traslado para aqueles que precisem deixar seus países e a legalização plena, com acesso a todos os serviços públicos, de todos refugiados.

Essas são as medidas mínimas para combater a atual crise. No entanto, temos certeza que para por um fim definitivo às mortes, aos sofrimentos, à exploração e à opressão racista e xenófoba é preciso muito mais. É preciso criar as condições para que as pessoas possam viver dignamente em seus países, livres de governos corruptos e ditatoriais e de uma elite sanguessuga. Mas, também, é preciso derrubar os muros xenófobos, por abaixo as fronteiras. E, pra tudo isso, só há um caminho: a construção de um mundo socialista no qual ninguém seja “ilegal” muito menos tenha que morrer em busca da liberdade e de condições decentes de vida.