Henrique Canary, da Secretaria Nacional de Formação

 

A onda de greves que tomou conta do país surpreendeu a todos. Nem o governo, nem os patrões, nem a imprensa e nem os burocratas empedernidos de certos sindicatos souberam prever o poderoso movimento que arrastou milhares de trabalhadores em várias capitais e importantes centros urbanos. E muitas outras greves estão marcadas ou ainda podem acontecer. Como sempre, a imprensa tenta colocar os trabalhadores contra a população, mostrando os “prejuízos” provocados pelas greves e o “transtorno” causado à população. Até aí, nenhuma novidade. Mas quanto mais fazem isso, mais colocam eles mesmos em pauta questões de primeira magnitude: O que é exatamente uma greve? Qual o seu significado mais profundo? Por que elas acontecem? Quais seus limites e possibilidades? Se a própria imprensa coloca estas e outras questões, não seremos nós, os socialistas, a fugir do debate.

O que é uma greve?
À primeira vista, uma greve aparece como um conflito isolado entre os trabalhadores de uma empresa e seus patrões. Este é um aspecto inicial da questão, mas não a esgota. O capitalismo é um sistema econômico onde uma ínfima minoria da população detém quase toda a riqueza social. A outra parte, a imensa maioria, não possui nada, a não ser alguns bens pessoais, e por isso é obrigada a vender sua força de trabalho para poder sobreviver. Ao colocarem seu cérebro, nervos e músculos para funcionar, os trabalhadores movem a própria economia do país e produzem a riqueza nacional. Em troca das 8, 10 ou 12 horas por dia passadas na empresa, recebem um pequeno salário. A diferença entre o salário pago ao trabalhador e a enorme riqueza produzida pelo seu trabalho constitui o lucro do patrão. Por isso não há e nem pode haver “interesses comuns” entre trabalhadores e empresários. Os trabalhadores querem melhores salários; os patrões querem diminuir esses salários para aumentar os lucros. Eis o resumo de toda nossa sociedade, eis a essência desta relação dita “livre” e “democrática”, chamada trabalho assalariado. Assim, o próprio capitalismo, mesmo sem querer, empurra os trabalhadores ao conflito e à resistência. As greves são, portanto, um fato inevitável do sistema. Enquanto houver capitalismo, haverá greves.

Mas as greves não são, em geral, a primeira forma de luta dos trabalhadores. Antes de estourar uma greve em uma empresa, o que vemos são rumores de insatisfação e descontentamento, xingamentos escritos nas portas dos banheiros, desleixo e lentidão proposital na linha de produção e até mesmo a destruição de ferramentas, máquinas e mercadorias. Em sua luta pela sobrevivência, os trabalhadores agarram as primeiras armas que encontram, e essas armas são sempre individuais, e por isso ineficazes. Não se pode culpá-los por isso. É um primeiro movimento progressivo feito por uma classe que é explorada, oprimida e alienada, e nele há uma semente de consciência. Sob determinadas condições, essa semente germinará e dará frutos.

As greves ensinam
As greves, quando comparadas com as revoltas desordenadas ou com a resistência silenciosa individual, representam uma forma superior de luta. Elas são o despertar da consciência do operário. Em primeiro lugar, porque são ações coletivas. Da mesma forma que nenhum operário pode colocar uma fábrica para funcionar sem seus colegas, também nenhum operário pode parar uma fábrica sozinho. Para isso, é preciso a ação coordenada de todos os trabalhadores da empresa, ou pelo menos de uma parte importante. As greves revelam, então, o caráter necessariamente coletivo da ação operária. Além disso, mostram a possibilidade que os trabalhadores têm de controlar a produção, o poder potencial contido em suas mãos. Inversamente, as greves revelam como é frágil a situação do burguês, como seu domínio é baseado no engano e na ilusão, como seus assassinos fardados não passam de espantalhos decerebrados, como seus rugidos de leão são na verdade lamúrias de covardia e como ele próprio, embora se intitule “o grande mágico de Oz”, não passa de um homenzinho farsante e indefeso, controlando luzes e sombras atrás de uma cortina.

A burguesia pode reprimir uma greve. Mas o que ela não pode fazer é colocar a empresa para funcionar sem os trabalhadores. As tentativas feitas às vezes por chefes, encarregados ou até mesmo por policiais militares de substituir os trabalhadores grevistas em suas funções geram situações verdadeiramente ridículas, que são sempre lembradas pelos operários depois de cada greve ao som de enormes gargalhadas. Os braços dos trabalhadores parados podem ser quebrados, mas não podem ser ignorados. E nisso reside a força dos operários; nisso reside a fraqueza de seus inimigos.

As greves acarretam enormes sacrifícios para os trabalhadores: corte de ponto, demissões, multas, repressão, perseguições e assédio. Mas elas fortalecem os trabalhadores muito mais do que enfraquecem: ensinam os trabalhadores a controlar a contabilidade da empresa, a enfrentar a repressão; desenvolvem seu instinto de solidariedade para com seus companheiros; estruturam suas organizações; revelam os fura-greves e os traidores, mas também abrem o caminho para os líderes mais honestos e capazes. As greves também mostram a verdadeira face dos dirigentes sindicais, que muitas vezes são burocratas irrecuperáveis e bandidos declarados, e que acabam atropelados pelos trabalhadores em verdadeiras rebeliões de base, que podem ou não retomar o sindicato para o caminho da luta.

Os trabalhadores podem perder ou ganhar uma greve, mas este nunca será o resultado principal. O resultado principal será sempre o fortalecimento da união entre os operários e o avanço de sua consciência. Nenhum trabalhador que tenha lutado de peito aberto em uma greve sai dela do mesmo jeito que entrou.

Greves e luta política
A ampliação ou unificação das greves leva a que o conflito inicial, isolado, se transforme em um conflito mais amplo: agora não é apenas uma fábrica, mas uma categoria inteira que se enfrenta não mais com um único patrão, mas com todo um cartel organizado de empresas. E mais importante ainda é quando as greves se nacionalizam e abarcam distintas categorias. Neste caso, se revela a unidade de todos os patrões contra todos os trabalhadores e a luta adquire cada vez mais as características de um enfrentamento de uma classe inteira contra outra classe inteira. Ou seja, uma luta política.

Quando as greves se ampliam e se unificam, entra em cena o governo, que começa defendendo o diálogo e o bom senso, mas depois, diante da negativa dos operários em render-se, oferece aos patrões toda a ajuda do mundo para reprimir a greve. Assim, o aprofundamento do conflito coloca também para os trabalhadores o problema do Estado, da justiça, da impensa, da polícia e das leis. Aquilo que para o operário parecia natural, justo e eterno, deixa de sê-lo. O trabalhador muda de opinião sobre a polícia, o prefeito e os deputados; começa a duvidar que as leis contenham alguma gota de justiça; se torna ainda mais próximo de alguns colegas com os quais lutou ombro a ombro, ao mesmo tempo em que despreza e ri daqueles que entraram para trabalhar pela porta dos fundos da empresa, como se fossem ratos entrando por um bueiro, quando a maioria estava no portão de entrada tomando café, escutando as músicas da greve e lendo o boletim do sindicato. Sua consciência corporativa, meramente sindical, começa a avançar para uma consciência política, de classe.

A greve geral
Mas acima de todas as greves está a greve geral. A greve geral se eleva sobre todos os conflitos – isolados ou unificados, econômicos ou políticos – como uma gigantesca montanha se eleva sobre a planície. A greve geral não é apenas o resultado da unificação das lutas. É muito mais do que isso. A greve geral significa que os trabalhadores dos mais diversos ramos da produção passaram por cima de seus interesses corporativos e chegaram a uma reivindicação única, que eles tentarão impor por meio da ação direta nacional. Ao paralisar o país, a greve geral coloca – queira ela ou não – o seguinte problema: Quem governa a nação? Ou seja, questiona o poder da burguesia. A greve geral é a greve política por excelência. Justamente por isso ela se dirige, em geral, diretamente ao governo e às instituições do Estado, e não mais aos empresários isolados.

A greve geral é a expressão de um acirramento gravíssimo das contradições sociais. Porém, diferente das greves econômicas, ela não ocorre espontaneamente. Em uma greve econômica, a ideia de paralisação pode surgir pela manhã, os operários podem se organizar rapidamente, no intervalo do almoço ou na troca de turno, e paralisar a produção já no início da tarde. Muitas vezes, nesse tipo de greve, os trabalhadores primeiro páram, e só depois avisam o sindicato, que chega apenas para dar apoio e ajudar na continuidade da luta (ou deveria, pelo menos). Já a greve geral é completamente diferente. Nela, é necessário um alto grau de organização da classe trabalhadora. O elemento espontâneo desempenha aqui um papel secundário. O que predomina é a preparação, a capacidade de análise e previsão, a centralização da ação operária, os serviços de autodefesa e inteligência das organizações de luta. Uma greve geral exige um nível de organização em âmbito nacional que nenhum sindicato isolado, por mais poderoso que seja, está em condições de garantir. A greve geral, para ter sucesso, exige uma central sindical nacional, de preferência com uma forte influência sobre outros movimentos sociais, como o estudantil, o popular, os movimentos de luta contra a opressão, a intelectualidade etc. Na greve geral, todos os oprimidos e explorados do país se erguem sob a direção da classe trabalhadora. A greve geral é o primeiro ensaio da futura insurreição revolucionária.

Greve e alienação: o problema dos “transtornos”
Uma greve não é importante apenas para aquela categoria que realiza a paralisação ou para o empresário. Toda greve, se é bem sucedida, provoca maiores ou menores efeitos sobre uma parcela da população que utiliza aquele serviço que deixou de ser prestado, compra aquela mercadoria que deixou de ser produzida, passa por aquela via bloqueada etc. A imprensa chama isso de “transtorno”. O marxismo chama isso de ruptura da alienação.

A sociedade capitalista se caracteriza pelo seguinte fato: ela separa e divide os trabalhadores; destrói a sua unidade, transforma a classe trabalhadora em um amontoado de indivíduos isolados que levam vidas individuais, pensam em seus interesses individuais, agem individualmente etc. Ao contrário do que se pensa, o egoísmo e o individualismo não são um traço “natural” do ser humano, mas sim fruto desta alienação, desta separação do trabalhador em relação aos seus irmãos de classe.

Assim, na sociedade capitalista, cada pessoa é mais ou menos “visível” para mim de acordo com a vantagem que eu posso tirar dela para minha existência individual. Por isso, eu vejo meus colegas de trabalho, dou-lhes “bom dia”, tenho relações amistosas com eles. Mas a servente de limpeza é para mim invisível. Eu não a vejo, não sei seu nome, não lhe dou “bom dia”, pois não obtenho nada diretamente dela. O mesmo acontece em relação aos motoristas de ônibus, aos funcionários públicos, aos garis e a todos aqueles trabalhadores que são por mim considerados “os outros”.

O que fazem as greves, então? Elas tornam os trabalhadores visíveis uns para os outros. Os comérciários percebem que dependem dos motoristas e cobradores; os operários veem que precisam dos bancários; os professores notam que sem os funcionários da escola sua vida é um inferno. Esse “abrir de olhos” ocorre, no início, sob a forma de um conflito: eu amaldiçoo e condeno os garis ou os motoristas porque sua greve me impede de realizar minha atividade individual. Mas com o crescimento e o fortalecimento da greve, a luta entre o gari e a prefeitura comove toda a sociedade. Com isso, avança não apenas a consciência do gari, mas também minha própria consciência: “E se eles estão lutando por uma vida digna, não deveríamos nós lutar também?” As greves são, portanto, um momento de ruptura da alienação; elas alimentam a intuição dos trabalhadores sobre sua própria unidade e seus interesses comuns. Aqueles que eram invisíveis se tornam visíveis. Os trabalhadores olham uns para os outros e enxergam a si mesmos.

Os limites das greves e o socialismo
Mas tudo o que dissemos até agora são possibilidades e não necessariamente as coisas acontecem assim. A luta grevista é a luta do trabalhador para vender sua força de trabalho mais caro. Ou seja, é uma luta dentro dos limites do capitalismo. Encerrados dentro dessa luta, os operários não poderão jamais chegar a uma consciência verdadeiramente socialista. A consciência socialista é a consciência dos interesses não apenas da classe operária, mas de todos os explorados e oprimidos, é a consciência da razão e do progresso humano. O socialismo não é o resultado “inevitável” da luta da classe trabalhadora. É uma proposta política e social, elaborada a partir de uma análise científica de toda a história, de todas as classes, de todos os países. Como qualquer proposta, o socialismo pode ser aceito ou não; os trabalhadores podem agir para implementá-lo ou não. Mas se o fizerem, certamente não será por algum “instinto” ou por sorte, e sim porque alguém os convenceu disso, alguém lutou por esta proposta.

E aqui entram os socialistas: eles não são jamais meros auxiliares do movimento operário ou sindical, embora ajudem e façam de tudo por este movimento. Mas são muito mais do que isso: são eles que unem, através de um partido político revolucionário, os operários com os outros oprimidos e explorados; mostram os caminhos que já foram percorridos, as experiências históricas; estabelecem alianças com os operários de outros países; educam os trabalhadores no espírito da desconfiança e do combate para com a burguesia; revelam as manobras do inimigo, seus interesses mais escusos; ajudam os operários a tirarem as lições de cada luta e propõem novos objetivos; fortalecem nos trabalhadores a confiança em suas próprias forças; mostram para os operários as conclusões lógicas de sua própria ação: a necessidade da derrubada do capitalismo, da luta pelo poder e pela libertação revolucionária de todo o povo, ou seja, o socialismo.