No início dos anos 1980, quando o PT surgiu, a imensa maioria dos ativistas do movimento negro viu o partido como a possibilidade de construção de um “novo quilombo”; um espaço e um instrumento para fazer avançar o processo de reorganização da luta anti-racista que, na esteira da derrubada da ditadura, havia dado importantes passos, particularmente com a fundação, em julho de 1978, do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR).
Passados 10 anos desde que o partido chegou ao poder, apesar das enormes expectativas ainda hoje alimentadas pela maioria da população negra, esta perspectiva foi completamente soterrada pelas marcas registradas do “modo petista de governar”, a começar pelas alianças com os setores mais conservadores (e racistas) da sociedade e pela submissão de toda e qualquer política à lógica do mercado neoliberal.
 
A inclusão marginal da população negra
Ainda no primeiro mandato de Lula, a única medida concretamente voltada para a população negra é um dos exemplos mais lamentáveis desta historia: o Programa Universidade para Todos (ProUni).
Em um momento em que nem 2% da população negra estava nas universidades, o governo petista criou um projeto de “inclusão” que, na prática, apostava na perpetuação na marginalização dos negros e negras.
Como se sabe, ao invés de garantir as cotas e ampliar as vagas na educação pública (como havia prometido durante a campanha), Lula criou um programa que, além de jogar a população negra em escolas privadas de baixa qualidade, ajudou a encher ainda mais os cofres dos tubarões de ensino através da destinação de milhões de reais em isenções fiscais e do pagamento de mensalidades.
Se essa foi a marca do primeiro mandato, o resto da década não foi nada diferente. Enquanto realizava conferências, cujas resoluções e promessas, nunca saíram do papel, o governo petista – primeiro com Lula e, depois, de forma ainda mais intensa, com Dilma – foi abandonando ou distorcendo, uma a uma, as principais bandeiras do movimento negro.
Os exemplos dariam para preencher páginas deste jornal, mas dois deles bastam para ilustrar o que estamos falando. Em 2003, uma reivindicação histórica do movimento, o ensino de história e cultura afrobrasileira (lei 10.639/03), foi aprovada com um único veto do presidente: o corte do artigo que previa a destinação de verbas para a formação de professores. Um “detalhe” que, na prática, faz com que, até hoje, a lei só saia do papel através do esforço e dedicação dos próprios educadores.
Mais escandaloso, ainda, foi uma das últimas medidas sancionadas por Lula, em 2010: o Estatuto da Igualdade Racial, cujo texto original, construído pelo movimento negro, foi completamente mutilado em função de um acordo espúrio entre o senador Paulo Paim (PT-RS), a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), criada no início do governo Lula, sem verbas e função definidas. O acordo também incluía os representantes do agronegócio, representados pelo corrupto Demóstenes Torres (DEM-GO).
O resultado foi um texto absurdo, do qual foram retiradas bandeiras históricas como as cotas, a regulamentação e titulação das terras quilombolas e até mesmo qualquer menção aos termos raça, escravidão e identidade negra.
 
Cotas: 30 anos de luta e uma vitória parcial
Apesar de tudo isto, a população negra e, particularmente a enorme maioria do movimento negro, ainda vê no governo um aliado no combate ao racismo. Parte desta percepção, hoje, se deve à recente aprovação das cotas raciais e sociais nas universidades federais.
Arrancado depois de décadas de lutas e anos de engavetamento nos gabinetes do governo, o projeto, contudo, também está longe do que era reivindicado. Primeiro, porque parte de uma sub-representação da população negra; segundo, porque não prevê medidas que garantam a permanência (como bolsas de alimentação, moradia e transporte).
 
Crescimento desigual e manutenção do abismo racial
Contudo, não são apenas as manobras nem as pífias concessões do petismo que revelam seu verdadeiro caráter no que se refere ao combate ao racismo. Mais importante é entender que, assim como acontece em relação à endividada “nova classe média”, a ilusão de “ascensão social” e conquista de direitos não resiste a uma análise mais profunda da realidade.
Exemplo disto pode ser dado pelos dados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).  Um ano antes do PT chegar ao poder, enquanto o “Brasil Branco” ocupava a 47ª posição entre as nações mais desenvolvidas; o “Brasil Negro” estava na 107ª posição do ranking. Dez anos depois, esse abismo continua praticamente o mesmo, como revelou a pesquisa feita em 2009: as condições de moradia, saúde, educação e saneamento básico da população branca a colocaram no 40ª lugar no ranking, enquanto os negros permaneciam na 104ª posição.
Outros índices que demonstram o descaso e ineficácia das políticas raciais do petismo são ainda mais trágicos. Segundo dados do Seppir, vivemos em um país onde a cada 25 minutos um jovem negro, de 15 a 24 anos, morre de forma violenta.
O número é absurdo por si só, mas a cumplicidade dos governos petistas em relação a este genocídio é ainda mais grave. Em 2002, morriam 45,8% mais negros que brancos nesta faixa etária. Em 2010, a proporção já havia saltado para 139%. Praticamente no mesmo período (entre 2002 a 2008), enquanto o número de vítimas brancas caiu em 22,3%; entre negros o índice subiu em 20,2%.
Par além da violência física, a cumplicidade dos governos petistas com a manutenção do abismo racial se revela particularmente nas condições de vida da população negra. Segundo o Ipea, em 2010, 63% de negros e negras viviam abaixo da linha de pobreza, uma situação explicada pelo fato de que, ao optar por governar com a burguesia, os governos petistas mantiveram a essência do racismo: a combinação entre opressão racial e exploração capitalista.
Uma realidade que pode ser constata com um único dato: em 2010, enquanto a média salarial dos brancos chegava a R$ 1.538, a de um negro não passava de R$ 834 e de uma mulher negra era pouco maior que a metade disto.
 
Precisamos de um quilombo de raça e classe

Essa combinação perversa repercute em todos os outros aspectos da vida da população negra. Ainda em 2010, o analfabetismo, por exemplo, entre brancos, com mais de 15 anos, era 5,9%; entre negros, 14,4%. Dados todos eles ainda mais graves se consideramos a situação das mulheres negras, ainda mais expostas à violência, à precarização e às piores condições de vida.
Uma situação que, com Dilma, só tende a piorar como ficou claro todo o episódio em torno do deputado Marco Feliciano. É por todos esses motivos que o movimento negro deve retomar a luta independente e sem patrões contra a opressão e a exploração.

Post author Hertz Dias, da Secretaria de Negros e Negras do PSTU
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