Foto: Romerito Pontes / CC
Emilia Tolosa

Élcio Queiroz, ex-policial militar, preso desde março de 2019, acusado de ser o motorista do carro usado na execução de Marielle, assinou um acordo de delação premiada em que admite os crimes e avança em revelações sobre detalhes tanto do planejamento como da execução do assassinato e indica pelo menos outros dois nomes envolvidos no caso: Edimilson Oliveira da Silva, o Macalé, sargento reformado da PMERJ, e o ex-sargento do Corpo de Bombeiros, Maxwell Simões Correa, o Suel.

O que relatou Élcio Queiroz

1- O Planejamento do assassinato de Marielle começou vários meses antes

Para além de confessar as acusações pelas quais ele e Lessa estão detidos, Élcio confirmou que os preparativos para a execução de Marielle começaram vários meses antes. Em agosto de 2017, Lessa já preparava o Cobalt prata roubado para o momento do crime. Lembremos que as investigações dirigidas por Simone Sibilio e Letícia Petriz, promotoras do MPRJ, já tinham revelado que, em abril de 2017, Lessa iniciou as buscas de internet sobre o PSOL e figuras relacionadas ao movimento negro e de periferia.

Élcio também relatou que, no final de 2017, Ronnie Lessa, Suel e Macalé teriam tentado executar Marielle, também no Estácio, mas teriam falhado porque Suel não teria conseguido emparelhar o carro.

2 – O envolvimento de Maxwell Simões Correa, o Suel, e Edimilson Oliveira da Silva, o Macalé

Suel era sargento do Corpo de Bombeiros até ser detido pela primeira vez, em junho de 2020, acusado de obstrução de justiça no caso; nomeadamente, por “ceder o veículo utilizado para guardar o vasto arsenal bélico pertencente a Ronnie, entre os dias 13 e 14 de março de 2019, para que o armamento fosse, posteriormente, descartado em alto-mar”.

Suel era amigo de longa data de Ronnie Lessa, desde a época em que ambos serviam como agentes de segurança em Rocha Miranda. Eram também parceiros de negócios ilícitos, os dois comandavam um esquema de “gatonet” na região. Esse e outros negócios renderam a Suel um vasto patrimônio, pelo menos uma mansão num condomínio de luxo avaliada em R$ 1,9 milhão e uma BMW X6 de pelo menos R$ 170 mil.

Élcio confirmou a participação de Suel no planejamento do assassinato de Marielle, na realização de campanas de vigia para conhecer a sua rotina, na tentativa de assassinato no final de 2017 e também na destruição do carro e de outras provas materiais do crime nos dias seguintes.

Edimilson Oliveira da Silva, conhecido como Macalé, era sargento reformado da Polícia Militar e foi executado em novembro de 2021, aos 54 anos. À época da sua execução, já era conhecida a sua relação com Ronnie Lessa, era também conhecido por, tal como Lessa, atuar no jogo do bicho. Segundo Élcio, foi Macalé que intermediou o contrato de Lessa com o mandante do assassinato de Marielle. Também teria participado das campanas de vigia da vereadora e da tentativa frustrada de assassinato no final de 2017.

A delação de Élcio revela que as investigações já poderiam ter avançado muito mais

O desencadeamento da operação baseada na delação de Élcio é sem dúvida importante, mas é também uma demonstração de que já se poderia ter avançado muito mais nas investigações e muito provavelmente ter chegado ao mandante do crime.

A delação mais confirma e detalha fatos já conhecidos ou suspeitados pela investigação do que avança com dados novos. A maior novidade é provavelmente a confirmação do envolvimento de Macalé no assassinato, algo que já se suspeitava à data da sua execução em novembro de 2021. Ou seja, pelo que se sabe até agora, o único elo que Élcio revelou com o mandante do crime está convenientemente morto.

A grande expansão de patrimônio de Lessa, segundo Élcio, deu-se exatamente depois do assassinato de Marielle. Comprou um SUV da Range Rover, uma picape blindada, uma lancha nova (que custou R$261.449,95) e um terreno de quase 3.500 metros quadrados num condomínio de luxo em Angra, avaliado em R$1,2 milhão. Todo esse patrimônio ficou público na época da prisão de Ronnie Lessa e é muito improvável que os investigadores não soubessem que foram adquiridos após o assassinato de Marielle, confirmando que havia um mandante e que elevadas somas de dinheiro (e provavelmente em espécie) estiveram envolvidas no operativo.

Por que é que as investigações avançaram tão pouco em mais de 5 anos?

Como já foi dito em outro artigo, “a principal causa desta demora reside no fato de que as forças que deveriam elucidar o caso estão, em parte, também envolvidas na autoria do crime”.

Ronnie Lessa foi policial militar e, apesar de não ter conseguido entrar no BOPE, participou de várias operações dessa força policial, aposentou-se da PMERJ após um atentado à bomba que tinha como alvo Rogério de Andrade, para quem prestava serviço de segurança. Essa relação lhe permitiu se tornar dono de um bingo clandestino na Barra da Tijuca, entre outros negócios ligados a contravenção. Também estava com tráfico de armas e era conhecido pelos seus serviços de matador. Além disso, Lessa é suspeito de estar associado aos negócios do ex-vereador do Rio Cristiano Girão, preso em decorrência da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das milícias no bairro Gardênia Azul (vizinho de Rio das Pedras).

Essa biografia não é muito diferente da de Élcio Queiroz, Suel e Macalé, todos eles eram da Polícia Militar e tinham relações com milícias e bicheiros, como foi descrito acima.

As milícias não são compostas apenas por agentes de segurança pública, estão infiltradas em todos os poderes, no Judiciário, no Legislativo e no Executivo. Atuam em nível municipal, estadual e federal. Ou seja, a investigação em curso se defronta ou é executada contra as próprias instâncias do Estado. Nas palavras da promotora Simone Sibilio, transcritas no livro República das Milícias: “(…) o fato de os envolvidos estarem ligados à polícia e conhecerem por dentro os atalhos para atrapalhar ou despistar uma apuração. Além de evitarem celulares, imagens de vídeo, testemunhas, as quadrilhas trabalhavam com contrainformação, plantando pistas falsas para implicar rivais”. Para saber mais sobre as milícias, clique aqui.

O tolhimento das investigações não foi só estadual, foi também federal

Se bem os assassinatos de Marielle e Anderson são a demonstração cabal da degenaração das forças de segurança do estado do Rio e da falência das suas instituições para investigar e punir os criminosos das suas fileiras, não foi só a nível estadual que houve resistência ao avanço das investigações.

Não podemos esquecer que esse crime brutal se deu em plena intervenção federal no Rio, bem debaixo das barbas do interventor Braga Netto (que mais tarde se tornaria ministro da defesa de Bolsonaro). E não só a intervenção não impediu o crime, como os interventores não moveram um dedo para garantir o seu esclarecimento. Restam as especulações sobre o porquê de tamanho desinteresse.

As investigações só avançaram após a Procuradoria Geral de Justiça do Rio, ainda em 2018, garantir a troca da equipe que investigava o caso, colocando as promotoras Sibilio e Petriz juntamente com o Gaeco (Grupo de Combate ao Crime Organizado).

Os resultados das investigações ficaram patentes poucos meses depois da subida ao poder de Bolsonaro, em Março de 2019, quando Ronnie Lessa e Elcio Queiroz foram presos. As investigações prosseguem com alguns resultados durante 2019 e início de 2020.

É em 2020 que é tornado público o vídeo da reunião ministerial em que Bolsonaro vinculou a mudança do superintendente da Polícia Federal do Rio Janeiro à proteção de sua família. A família Bolsonaro não só tinha relações próximas com Lessa (inclusive de vizinhança), como com Adriano da Nóbrega, ex-chefe das milícias de Rio das Pedras, que se tornou fugitivo após a deflagração da Operação Intocáveis,  acabando por ser executado em operação policial na Bahia. Essa investigação foi também fruto do trabalho das promotoras Sibilio e Petriz e estava associada às investigações da morte de Marielle.

Coincidentemente, ou não, em julho do ano seguinte, essas promotoras solicitam o afastamento das investigações após a aprovação de uma delação premiada da viúva de Adriano da Nóbrega (que, segundo elas, tinha muitas inconsistências) e relatam receio e insatisfação com “interferências externas”. Para saber mais sobre as relações de Bolsonaro com Adriano da Nóbrega e Lessa, veja este artigo.

Garantir a punição dos mandantes e assassinos de Marielle e medidas efetivas de combate às milícias e ao crime organizado!

Foto: Luiz Fernando Nabuco/Aduff SSind

O governo Lula tem todas as condições para levar até o fim as investigações e garantir a revelação dos mandantes da execução de Marielle Franco e a sua consequente punição exemplar. Mas não pode ficar só por aí.

Em primeiro lugar, é preciso também elucidar por que esse crime está há tanto tempo sem resolução. Quais as forças que atuaram na obstrução das investigações e porquê?

Urge também que a revelação e punição dos mandantes do assassinato de Marielle e Anderson seja um primeiro passo para um sério combate às milícias no Rio e a todos os setores criminosos a ela associados, assim como das suas ramificações nas forças de segurança pública e nos poderes Legislativo e Executivo.

Mas, mais além disso, é preciso tomar medidas para acabar com as condições materiais que garantem a existência das milícias. Lembremos da CPI das milícias no Rio, que garantiu o desenvolvimento de investigações que levaram à condenação e prisão de importantes chefes milicianos como Jerominho, Natalino, Beto Bomba, Cristiano Girão, entre outros.

Essas condenações e prisões, tendo sendo muito importantes, não acabaram com as milícias no Rio e também não impediram a sua expansão. Nos últimos 16 anos, as milícias aumentaram seus territórios em 387,3% e são hoje o maior grupo criminoso do Rio de Janeiro. Não se vai erradicar as milícias sem garantir transporte digno, habitação digna e distribuição de água, gás, eletricidade e internet gratuitos às populações da periferia, de modo a impedir a milícia de explorar esses negócios.

É também necessário legalizar a produção e comercialização de drogas sob controle dos trabalhadores, garantindo que os lucros sejam estatais e direcionados para o investimento em serviços públicos que sirvam às comunidades mais carenciadas. No mesmo sentido, há que legalizar e colocar sob controle do Estado e da classe trabalhadora o jogo do bicho, os cassinos, os bingos e afins, acabando com as máfias de bicheiros e seus capangas matadores, como Lessa e Adriano da Nóbrega.

Mas as milícias e os bicheiros não se movem só por questões materiais, têm relações históricas e profundas com a extrema direita, foi assim na Ditadura Militar e segue sendo agora com o bolsonarismo e a direita golpista. E, para combater consequentemente o bolsonarismo, é fundamental a ação consciente da classe trabalhadora. O primeiro passo dessa ação é a independência de classe e, mesmo nos raros momentos em que seja necessária alguma ação comum com setores burgueses (como a unidade de ação contra um golpe, por exemplo), ter nítido que a classe trabalhadora não pode e não deve se misturar, nem política nem organizativamente, com a burguesia. Nesse sentido, o governo Lula atua contra as necessidades da classe trabalhadora ao compor um governo com setores burgueses e inclusive tendo nomeado uma ministra, Daniela do Waguinho, com conhecidas relações com grupos milicianos da Baixada Fluminense.

Devemos ir mais longe porque, especialmente no estado do Rio, é literalmente a nossa vida que está em jogo. A nossa luta e organização pode e deve garantir nossa autodefesa. Os trabalhadores devem se organizar para resistir aos ataques do Estado, da Polícia Militar, do tráfico e da milícia. Especialmente os trabalhadores, as mulheres, negros e negras e as pessoas LGBTIs devem confiar nas suas próprias forças, contra os racistas, machistas e LGBTIfóbicos e contra as mazelas do capitalismo.