George Bezerra, de Fortaleza (CE)
Para quem enxerga a história pelas lentes da luta de classes, não cabem conclusões ambíguas acerca do papel desse indivíduo na história
Ariel Sharon morreu. Os principais veículos de comunicação estão tratando de fabricar a imagem, que ficará na História escrita pelos de cima, do ex-líder sionista. Dizem quase que em uníssono: “Morreu Sharon, uma figura controversa. Odiado pelos palestinos e amado pelas vítimas do holocausto.” Ou então: “Responsável pelo massacre nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila em 1982. Porém lembrado por ordenar a retirada do exército de Israel da faixa de Gaza em 2005”. Neste sentido, a declaração do secretário-geral das Nações Unidas, é categórica. “Sharon foi um herói do seu povo. Será lembrado por sua política e determinação para tomar a dolorosa decisão de retirar colonos e tropas israelenses da Faixa de Gaza”, disse Ban Ki-monn.
Diferente da maioria dos chefes de Estados e da grande imprensa, não compartilhamos dessa caracterização dúbia que estão construindo sobre Sharon. O manto da neutralidade pode até ser confortável, mas muito perigoso. Para quem enxerga a história pelas lentes da luta de classes, do combate entre explorados e oprimidos de um lado e exploradores e opressores do outro, não cabem conclusões ambíguas acerca do papel desse indivíduo na história.
Não derramamos nenhuma gota de lágrima por sua morte. Pelo contrário, nossas lágrimas são de outra natureza. Somam-se às das mulheres sobreviventes de Sabra e Shatila, indignadas pelo fato de Sharon não ter sido condenado, por nenhuma corte internacional, pelo racismo, terrorismo e tantos crimes de guerra praticados contra o povo palestino.
Sharon, expropriação e a limpeza étnica dos palestinos
Marcos Uchoa, jornalista da Rede Globo de Televisão, disse numa reportagem: “Sharon se confunde com a história de Israel”. É verdade. No entanto, falamos o mesmo, só que com outras palavras, porque a maneira como as coisas são ditas expressam conteúdos profundamente distintos. Confundir-se com história de Israel, significa apoiar a história de expropriação do povo palestino.
Durante as décadas de 1920 e 30 até o final dos anos 40, a migração judia para a Palestina aumentou substancialmente. Concomitante a esse processo, ocorria o assalto das terras da população nativa num contexto demográfico em que a presença árabe era muito superior do que a dos colonos.
É neste período que Sharon, aos 14 anos de idade, adentrava as fileiras da Haganah, a milícia sionista que, junto com as tropas britânicas, enfrentou a resistência árabe contra a colonização da Palestina. Num contexto de uma minoria judia rodeada por uma maioria árabe, o papel da Haganah foi decisivo para a instalação do Estado de Israel. Seus métodos de terror e guerra civil contra uma população indefesa deu início ao que Edward Said caracterizou de “refúgio, dispersão, exílio e privação de direitos civis do povo palestino”.
Já no exército, a habilidade militar de Sharon, somada à compreensão de que os objetivos do sionismo só poderiam se concretizar a partir da limpeza étnica do povo nativo, levou-o a uma rápida ascensão. Os quadros do sionismo tinham de expressar a natureza colonial, racista e pró-imperialista do seu programa. E foram nas guerras de rapina de 1948, 1967e 1973 que Sharon se consolidou como umas das expressões mais bem acabadas do projeto sionista.
Em 1948, Sharon comandava uma companhia de infantaria na guerra contra os palestinos a serviço de expandir os territórios de Israel para além das fronteiras estabelecidas pelo famigerado plano de partilha da ONU. Cinco anos mais tarde (1953), fundou, dentro do exército colonial, uma unidade de elite destacada para reprimir com métodos brutais os levantes árabes. Isso se dava numa conjuntura de resistência à demolição de centenas de aldeias e cidades palestinas.
Sharon conseguiu um papel destacado nas guerras de 1967 e 1973, que teve como resultados a ocupação de Gaza, o avanço da colonização na Cisjordânia, a conquista das Colinas de Golã e da Península do Sinai. Tais guerras mostraram que as pretensões do sionismo iam bem além da Palestina histórica. Ao mesmo tempo, ficava nítida a caracterização de Israel como um enclave do imperialismo no Oriente Médio. Quer dizer, um Estado que promove guerras contra os povos árabes para salvaguardar os interesses das potências capitalistas, em especial dos Estados Unidos, numa região estratégica para a economia mundial.
Todos esses fatos já falam muito sobre a figura em questão. Sharon faz parte daquilo que chamamos de direita conservadora sionista. É um setor, cuja base social são os colonos raivosos dos assentamentos que necessitam de mais segurança, ou seja, aqueles localizados dentro ou próximos dos territórios ocupados e que são base político-eleitoral do Likud.
Se persistia alguma espécie de dúvida sobre a localização política de Sharon dentro do movimento sionista e sua consequência para o povo palestino, é na guerra civil do Líbano de 1982 que as mesmas foram dirimidas.
Ariel Sharon, então ministro da Defesa, deu aval para que, no dia 16 de setembro 1982, destacamentos da milícia falange cristã entrassem nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila. Foram três dias de torturas, estupros e matança indiscriminada, sob o conhecimento de Sharon, que chocaram o mundo pela quantidade de vítimas e pelo grau de barbaridade.
Estima-se que o massacre tenha produzido cerca de quatro 4.000 mortos, cuja maioria era de idosos, crianças e mulheres. Embora um tribunal israelense tenha responsabilizado Sharon pelo massacre, isso não significou algum tipo de pena para Sharon. Israel não pune aqueles que prestam serviços inestimáveis para o projeto sionista. A prova disso é que o velório de Sharon serviu para fortalecer sua imagem e a do próprio Estado de Israel. O mais grave, entretanto, é o fato de Sharon não ter sido jugado e condenado por nenhuma corte internacional, o que mostra quão forte é o lobby de Israel e como os interesses das potências internacionais não se chocam com as brutalidades desse Estado.
O Sharon primeiro-ministro
Foi esse Sharon, que descrevemos até agora, o primeiro-ministro eleito pelos israelenses em 2001 em meio à segunda intifada. O novo levante que unificou Gaza e Cisjordânia contra os nefastos resultados dos acordos de Oslo de 1993 para os palestinos. O velho e conhecido Sharon representava o discurso do fortalecimento do discurso da segurança nacional. Reprimiu brutalmente o levante palestino, promovendo uma nova invasão à Cisjordânia, o massacre do campo de refugiados de Jenin e coordenando a prisão e o assassinato de milhares de palestinos. Foi o homem da expansão dos assentamentos, da fragmentação dos territórios palestinos, da repressão à segunda intifada e o aliado de Bush na guerra preventiva contra o terror.
Apesar do malabarismo dos analistas internacionais em mostrar um Sharon benevolente ao retirar parcialmente as forças de ocupação e 8.000 colonos da Faixa de Gaza, os cinco anos de seu governo foram acompanhados por um incremento de 388.000 a 461.000 colonos, sendo uma parte considerável deles nos territórios ocupados da Cisjordânia. Um balanço final que não deixa dúvidas acerca do avanço da colonização.
Outro aspecto importante do seu mandato foi a política de fragmentação dos territórios ocupados pós-1967, levada a cabo, principalmente, na Cisjordânia com a conivência da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Em 2002, iniciou-se a construção do muro que separa Israel dos palestinos, passando por dentro de territórios palestinos. O objetivo declarado de Sharon era resolver o conflito adotando o modelo de bantustões do regime do apartheid sul-africano (pequenos estados sem continuidade territorial). Ele inaugurou esta política que se mantém até hoje e faz parte da proposta de Israel, no que diz respeito à criação de um futuro Estado palestino, no atual processo de “negociações pela paz”.
Não podemos esquecer que Sharon foi um dos principais aliados de George W. Bush e sua doutrina da guerra preventiva contra o terror, que mudou a geopolítica mundial. A ocupação do Afeganistão, em 2001, e a invasão do Iraque, em 2003, necessitavam um forte apoio político-militar na região do Oriente Médio. Contudo, não contava Sharon com a luta dos povos árabes contra as guerras de recolonização, perpetradas pelos Estados Unidos, que iria colocar o sentimento anti-imperialista na região num outro patamar, contribuindo para a causa palestina.
É por tudo isso que entendemos e concordamos com o sentimento de Mohamed Srur, sobrevivente do massacre de Sabra e Chatila, quando diz: “É triste que Sharon tenha morrido assim. Deveria ter morrido pelas mãos de crianças e mulheres palestinas.” É mais do que justo que os oprimidos acertem suas contas com seus opressores. Sharon se foi tarde. Não fará falta para qualquer ser humano que luta por um mundo justo, solidário e sem guerras. No entanto, seu legado continua vivo. É por isso que a luta do povo palestino segue mais viva do que nunca.
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