Otávio Luiz Pinheiro Aranha, de Salvador (BA)
Adaptação foi disponibilizada no Netflix
O filme que reconta a história do menino lobo, publicada originalmente como um dos contos de O Livro da Selva (The Jungle Book), publicada em 1894 pelo nobel de literatura, Rudyard Kipling, produzida pela Warner e disponível pela Netflix neste mês de dezembro, é uma jóia rara neste serviço de streaming.
O pequeno ator, Rohan Chand, o protagonista com apenas 14 anos de idade, cumpriu um nível de exigência físico-corporal e de descarga emocional sem tamanho nesta obra-prima. O mirrado Rohan corre, salta, quadrupedeia e até uiva como um lobo, contudo, o que ele vai conseguir arrancar mesmo de você, é choro. Nós nos angustiamos junto com Mowgli, torcemos com ele e é impossível não se emocionar e chorar junto com o menino, durante vinte segundos de silêncio, contados a partir de 1:21:00 da película.
Os efeitos de computação gráfica que deram vida e fala aos animais, não deixam a desejar aos trabalhos anteriores do diretor Andy Serkis, conhecido pela atuação de seu ambíguo personagem Gollun, em Senhor dos Anéis, e pela desenvoltura realista do chimpanzé Cézar, da última saga de Planeta dos Macacos. Uma particularidade dos animais de Serkis nesta nova leitura de Mowgli é que eles são mais sombrios, cheio de marcas, cicatrizes e histórias particulares (como a pantera Bagheera) que lhes dão singularidades, ainda que eles, de forma proposital, aparentam serem artificiais em seus desenhos, um completo oposto à imagem limpa e perfeita de um animal selvagem tal como traduzida nas leituras anteriores da Disney.
Neste quesito, um ponto fraco da película é o retrato e o papel místico da Píton, que assume um caráter praticamente divino (onipresença e onisciência) e os macaquinhos, que aparentam um aspecto meio demoníaco. Contudo, isto não desmerece a estética visual do conjunto do filme e o próprio trato com a selva, concebida com a complexidade de suas relações, que envolvem leis, códigos, disputas e até bullying.
Com o pressuposto fantasioso que os animais educam, o que não é possível pelos limites evolutivos dos demais animais com os seres humanos, a violência física e simbólica manifestada na forma desta agressão chamada bullying pode ser interpretada perigosamente como inerente à idade juvenil de qualquer espécie, portanto, equivocadamente como algo natural; quando se trata, na verdade, de um fenômeno estritamente humano e da modernidade, acentuado com o individualismo exarcebado e as ideologias da opressão e discriminação próprias do mundo capitalista contemporâneo.
Para além dos limites físicos impostos pela natureza a Mowgli, identificados sarcasticamente pelos seus irmãos lobos (ele não consegue correr velozmente como os demais lobos da sua alcateia), o bebê humano que teve os seus pais mortos pelo tigre-de-bengala chamado Shere Khan e foi jurado de morte por este, e que passou a viver entre os lobos que o adotaram, cada vez mais se pergunta porque seus irmãos o chamam de “anormal”? Por que ele é tão diferente dos outros?
A narrativa não tem nada de infantil e nos coloca a pergunta sobre quem nós somos. Somos o que somos porque nascemos de uma forma e esta forma nos define? Ou somos o que fazemos e o que fazemos, como agimos, como concebemos o mundo é o que nos define? A dúvida de Mowgli não perpassa apenas em sua cabeça de formato humano, mas atinge e questiona as ações até do mais sábios e antigos da alcateia.
Mowgli se vê então dividido entre dois mundos diferentes. Ele se encontra e encontra felicidade nos dois, assim como dor e frustração. Mowgli é um fenômeno inédito na floresta e quando pisa entre os seres humanos, também é visto desta forma entre a sua espécie. Qual é o lugar de Mowgli? Nenhum? Ou ambos?
Podemos nós mesmos nos fazer esta pergunta, só não podemos ser coniventes com a crueldade e a barbárie humana, a mesma que mata outras espécies por puro prazer, diversão e ostentação.
No mundo real, não podemos negar a nossa própria espécie e passar a viver na selva com os animais, mas podemos, e esta é uma tarefa que somente cabe a nós como seres humanos, impedir a extinção não-natural de outras espécies. Contudo, esta não é uma tarefa individual ou de um grupo de estudantes “iluminados”. Enquanto houver comércio e lucros gerados com a venda de marfim ou cabeças de lobos e ursos, essa tarefa cabe à única classe explorada sob o modo de produção capitalista que pode dar um freio ao lucro e a exploração predatória da natureza.
Mas para que a classe trabalhadora assuma tal compromisso é dever do partido revolucionário que almeja superar a divisão social do trabalho, assumir a bandeira da defesa do meio ambiente e da natureza, convencendo e educando a vanguarda operária sobre a importância deste tema. Somente a classe operária em aliança com os demais trabalhadores da cidade e do campo pode libertar a humanidade do julgo da exploração e opressão e, por conseguinte, permitir ao ser humano fazer as pazes não só entre si, como também com os animais e demais seres vivos, reconectando-se com a Natureza.
Superar a dicotomia entre o Homem e a Natureza, a partir da concepção da existência do ser humano como um elemento e parte integrante da Natureza, desde a sua estrutura material e orgânica é uma das consequências do socialismo científico, como afirmou o próprio Engels em Anti-Dühring. Neste sentido, o dilema de Mowgli já não teria sentido, pois sem exploração animal ou humana, o mundo é um só e tem lugar para todos nele!