Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

Medida do futuro governo é um ataque, mas o programa Mais Médicos está longe de resolver os problemas da saúde no país

No dia 14 de novembro o governo de Cuba anunciou que retirará os 8332 médicos cubanos que estão trabalhando no Brasil através do programa Mais Médicos. Este anúncio gerou uma grande discussão no país, reaquecendo a polarização manifestada durante a campanha eleitoral. Tem ocorrido uma pesada troca de acusações entre os defensores e detratores do programa, além de uma nova onda de fake news sobre este tema.

Segundo o governo cubano, seus médicos serão retirados até 25 de dezembro, ou seja, antes do início oficial do governo Bolsonaro. O futuro presidente não fez nenhum apelo para que os cubanos permaneçam por mais tempo, declarando que rapidamente irá repor estas vagas. O mesmo não pensam os secretários municipais e estaduais de saúde e a frente nacional de prefeitos, assustados com o buraco causado pela saída abrupta dos cubanos.

O comportamento de Bolsonaro é de uma arrogância e irresponsabilidade poucas vezes vista. Conseguir cobrir estas vagas de médicos, muitas delas em cidades pequenas, aldeias indígenas ou mesmo na periferia das grandes cidades é uma tarefa complexa, ainda mais tendo em conta a política de ajuste fiscal e as limitações financeiras do Estado brasileiro. O risco que se corre é deixar uma parcela extremamente carente da população brasileira sem nenhum atendimento médico, por um prazo que pode ser bastante longo. Bolsonaro, em nome de “defender os direitos humanos dos médicos cubanos” como ele gosta de dizer, joga na lata do lixo o direito à saúde de milhões de brasileiros.

Os argumentos do futuro presidente são que os médicos cubanos estariam trabalhando no Brasil na situação de semiescravos, pois o governo cubano fica com 70 % do salário deles; os médicos cubanos são forçados a dar a parte do leão de seus salários porque seus familiares em Cuba podem ser prejudicados pelo regime castrista e não podem vir morar no Brasil porque o governo cubano não permitiria; os médicos cubanos são fracos tecnicamente e não prestam o exame para revalidar seus diplomas no Brasil.

Para entender melhor este debate, é interessante retomar algumas noções sobre o programa Mais Médicos. Ele foi lançado em 2013 pela então presidente Dilma como uma resposta do governo às enormes manifestações de massas de junho, que entre outras demandas exigiam melhores serviços públicos. Os defensores do programa dizem que ele é anterior às mobilizações, o que não muda nada, pois objetivamente foi o carro chefe da resposta de Dilma ao movimento que a encurralava. Na época, o governo falava em trazer médicos de Portugal e Espanha, mas na prática sobressaiu de longe o convênio com os cubanos, mediado pela OPAS (Organização Pan Americana de Saúde). Para se ter uma ideia, o programa tem 18240 vagas, das quais 8332 (mais de 45%) são ocupadas por médicos cubanos. Outras 451 vagas são preenchidas por médicos de outros países e o restante por brasileiros, formados no Brasil ou no exterior.

O programa tem como característica não conceder direitos trabalhistas básicos aos participantes. É uma bolsa, embora sejam responsáveis pelo atendimento de 29 milhões de pessoas. Trata-se de uma evidente precarização de direitos trabalhistas, em consonância com a reforma trabalhista que foi votada dois anos depois. No caso dos cubanos, o dinheiro dos salários é repassado à OPAS (braço da Organização Mundial de Saúde) que o transfere para o governo cubano. Em relação a este aspecto econômico, é muito importante frisar que, independentemente dos médicos cubanos serem bons ou ruins, hoje a exportação de mão-de-obra médica por Cuba é uma importante fonte de renda para o regime cubano. Estima-se que só o convênio com o Brasil arrecade 332 milhões de dólares anuais para Cuba, mais do que a exportação dos famosos charutos cubanos, que rendem 259 milhões de dólares anuais. Aliás, Cuba tem convênio de exportação de mão-de-obra médica com dezenas de países, que rende 11 bilhões de dólares anuais (não incluímos aí as meritórias missões humanitárias em países pobres que sim merecem elogios). Este fato joga no lixo o argumento de que os médicos Cubanos seriam fracos. Se assim fosse, não haveria dezenas de países usando sua mão-de-obra. Mas também não deixa de ser verdade que o Estado cubano virou uma grande agência de terceirização de mão-de-obra médica.

Desde a implantação do Mais Médicos, boa parte da esquerda o defendeu de maneira acrítica. Deixaram de lado o aspecto da terceirização e precarização das relações de trabalho inerente ao programa, o que é sumamente grave tendo em conta que a reforma trabalhista era um dos objetivos centrais da burguesia brasileira e que foi alcançado pelo governo Temer. Esquecem também que a bolsa dos participantes é paga pela EBSERH, ponta de lança da privatização da saúde no Brasil.

Outro elemento desprezado foi o de que não basta colocar médico para melhorar a saúde da população. O atendimento tem que ser feito de forma multiprofissional, incluindo outros profissionais, por exemplo enfermeiros, dentistas, psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e assistentes sociais. Esta é a visão mais abrangente na saúde e que foi convenientemente esquecida pelo governo mas também por parte da oposição.

A retirada dos cubanos traz também na ordem do dia uma outra debilidade do programa. Saúde é um serviço de longo prazo, então para ser corretamente estruturado tem que fixar os profissionais de maneira sólida em seus locais de trabalho. Isso só pode ser atingido de uma forma: com a implantação de um plano nacional de cargos, carreira e salários do SUS. Este plano exige uma inversão de prioridades do estado brasileiro, que gasta muito pouco com saúde, pois só o Governo Federal tem mais de 40% do seu orçamento drenado para o pagamento da dívida pública.

O governo Bolsonaro já “inaugura” na saúde pública com uma ação desastrada antes mesmo de tomar posse. Demonstra uma total insensibilidade com a população mais pobre do Brasil, que ajudou a elegê-lo. Mesmo que quisesse fazer mudanças no modelo do Mais Médico, teria de fazer de forma planejada a médio prazo, pois dificilmente vai conseguir repor os 8332 profissionais que estão saindo a toque de caixa. Trata-se de um grave ataque às condições de vida da classe trabalhadora e da população pobre, pois mesmo hoje, antes da saída dos cubanos, há duas mil vagas no Mais Médicos não preenchidas.

O movimento dos trabalhadores e suas organizações podem e devem protestar contra esse descalabro. O que não podem fazer é uma defesa sem crítica do programa Mais Médicos, como temos visto por parte de alguns setores. É errado ficar glorificando Cuba como se eles não tivessem interesses econômicos no programa e, principalmente, é errado deixar passar em branco que o “Mais Médicos” é um programa paliativo e não estruturante do SUS. Nunca se deve perder de vista o nosso objetivo estratégico, que é a defesa de um verdadeiro Sistema Único de Saúde 100% público, estatal, gratuito e controlado pelos trabalhadores e com orçamento para garantir o melhor atendimento à população do Brasil, incluindo aí os variados avanços tecnológicos a que apenas uma pequena parcela privilegiada da população tem acesso hoje.