O artigo abaixo foi enviado como uma crítica texto de Alexandra Kollontai, publicado no Opinião Socialista 158, na ocasião do falecimento de Haroldo de Campos.
O artigo de Alexandra pode ser lido, clicando aqui.
Sorrisonhos risonhos de Haroldo de Campos
Sérgio Darwich,
de Campinas (SP)
O artigo de A. Kollontai, A poesia concreta de Haroldo de Campos (Opinião Socialista, 158), é sectário e pouco generoso, por abordar obra e morte de H. de Campos perifericamente; e, por não compreender seu ofício (Borges), traz leis da política para explicar poesia. Trotsky já alertara para o problema, diante das perseguições de poetas russos por Stálin, e o próprio H. de Campos, frente à prisão do poeta Ezra Pound pela democracia burguesa americana.
A poesia Concreta reflete o mundo urbano e, como poesia, é linguagem, logo, tem raiz social. Porém, não se propõe a tratar do mundo real concreto, à maneira de Kollontai, pois isso seria transferir os fatos sociais diretamente para a arte, quando, no máximo, esta os reconstrói, em outras bases.
O social (o real) é só ponto de partida. A reconstrução o transforma e, assim, acrescenta novos significados, antes inexistentes no social. Com isto, muitos artistas, cientistas e lutadores políticos entram em conflito com a ordem estabelecida ao trazerem novo sentido à vida. O poeta cria, com sua obra, a realidade junto com ela. Assim, recupera o sentido original de concreto: do latim con crescere – significa crescer junto.
A afirmação de Kollontai de que a poesia concreta trata do real concreto pode levar a conclusões errôneas: que o Concretismo oponha-se à arte abstrata e dê mais ênfase ao conteúdo (sociológico). Mas não: a arte, por mais abstrata, sempre terá raiz no social, além de ser parte dele. E o Concretismo, como toda arte, é uma abstração. Logo, fazem a mesma coisa de formas diferentes. Por fim, o Concretismo, como toda arte, dá ênfase à forma – enquanto a ciência e a religião, ao conteúdo. Por exemplo, as palavras sorriso e hortelã lembram habitualmente alegria, frescor, vida, mas a forma poética de Cotidiano (Chico Buarque), faz que lembrem tédio, asco, morte: todo dia ela faz tudo sempre igual/me sacode às 6 horas da manhã/me sorri um sorriso pontual/ e me beija com a boca de hortelã. A forma determina seus significados. Como no Concretismo. Daí, a surpresa frente ao poema LUXO-LIXO, pois sua forma revolucionária transforma o significado de lixo em luxo e o de luxo em lixo. Tudo fora do lugar e dos significados já conhecidos pelos economistas: a riqueza vem da exploração, logo, a riqueza é…lixo (sentido poético), tensão e síntese só resolvidas pelas leis da poesia (Maiakóvsky).
O que realmente caracteriza o Concretismo é a substituição da estrutura linear do discurso greco-romano (sujeito-verbo-predicado) pela oriental, segundo a qual palavras e frases são também imagens, como na escrita chinesa. O Concretismo aprofundou esta estrutura (forma) e a tornou, não somente visual, mas oro-auricular-viso-motora (holística): seus poemas óticos, infláveis, holográficos ou animados em computadores, altamente sintéticos, têm som, imagem, textura, volume, movimento, cor.
Logo, o que faz da poesia concreta revolucionária, nada ingênua e engajada é sua forma: a linguagem a engaja (Mallarmé). Ingênuo é partir do conteúdo e, pior, da ação política dos poetas para julgar seus poemas. Que diria Kollontai dos poemas de Rimbaud Uma Cerveja no Inferno, Iluminuras inventor da poesia moderna, entre 16 e 19 anos, tornando-se, aos 20, um emérito traficante de mulheres e armas?
Quanto à publicidade se apropriar da poesia concreta não é ingenuidade nem licenciosidade – nem novo: Mallarmé escreveu seus poemas para revistas de moda. A publicidade também se apropriou dos poemas-cartazes de Maiakóvsky. Toulouse-Lautrec criou cartazes para cabarés. Entre nós, Manoel Bandeira escreveu poema para o sabonete Araxá e ele mesmo, ao lado do chato-boy Carlos Drumont de Andrade, tiveram seus poemas usados pela publicidade sem que fossem considerados ingênuos. A publicidade se apropriou destes pela sina devoradora do lucro, em suas muitas faces e porque a revolução mundial não veio.
Nem precisaria citar os politicamente corretos Paulo Diniz e Ferréz para lembrar da influência de H. de Campos e da poesia concreta sobre as artes e a literatura. Sem o Concretismo não haveria Hélio Oiticica, Lygia Clara (artes plásticas), o Tropicalismo e Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé (MPB) e, com certeza, Ronaldo Azeredo, Torquato Neto, Wally Salomão, Antônio Risério, Chacal, Paulo Leminski e Régis Bovincino (poesia). Evoé, Baco!!!
Graças ao trabalho dos concretistas foram (re)desvelados Gregório Mattos Guerra e o barroco brasileiro (superior ao português), o simbolismo baiano de Pedro Kilkerry e o simbólico-moderno maranhense Souzândrade que, ao lado do próprio Concretismo, demonstraram uma de suas teses centrais: é possível criar uma poesia de ponta no Brasil, apesar de nosso atraso, porque estamos ligados à produção mundial nisto consistia, com mais vigor ainda, seu internacionalismo, além das obras traduzidas, citadas no artigo de Kollontai, que, em contextos diversos, revolucionaram o destino da poesia e da linguagem no mundo.
Se H. de Campos foi errático na política; sua poesia foi revolucionária, porque sua forma era revolucionária. E, para não deixar dúvidas sobre o papel renovador da poesia sobre a linguagem, H. de Campos nos deixou o poemaprosa Galáxias que, de quebra, demonstra como, para reconstruir a linguagem, a poesia e o poeta mergulham nas entranhas, nas tripas famintas da miséria viva das feiras nordestinas, nos cantos dos violeiros cegos da Paraíba: circuladô de fulô e ainda quem falta me dá que deus te guie porque não posso te dá e viva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá. Ingênuo, isso?
Por último, enganam-se os que acreditam não se comer poesia: poemas como A ENCANTAÇÃO PELO RISO, de Klebnikov, eram lidos por soldados russos famintos no degredo e no frio, na defesa da URSS contra os nazistas. Esta transcriação termo melhor do que tradução desse libelo do riso é uma demonstração do diálogo de H. de Campos com poetas-inventores do mundo e da poesia como alimento:
Ride, ridentes! Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimentes risandai!
Derride sorrimente! Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos risonhos
sorride, ridiculai, risando, risantes, hilariando, riando, ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Salve, poeta, transcriador! Seu canto fez menos duramarga a luta e a labuta cotidianas. Agora, sorrinfinito, cavalgaluz!