Expressão da periferia e da juventude negra, o hip hop é marco de resistência e organizaçãoApesar da resistência da indústria fonográfica, das transmissoras de TV e de Rádio, a cultura hip hop cada vez mais faz parte do cotidiano de milhões de jovens, principalmente, nos principais centros urbanos do país. Muitas vezes associada somente à sua expressão musical (o rap, nome originário da abreviação do termo, em inglês, “ritmo e poesia”), o hip hop é formado ainda por outros elementos, como a dança (break) e a arte visual (grafite), todos eles utilizados com a intenção de mobilizar e organizar a juventude marginalizada das periferias.

Natural dos “guetos” negros norte-americanos, a história da Cultura Hip Hop no Brasil é cercada de polêmicas e incertezas. Muitos grupos se localizam na raiz desta história e vários foram os caminhos traçados até a instalação do movimento entre nós. Uma das poucas certezas é que tudo isso se deu no início da década de 1980 e foi fortemente influenciado pela “febre break”.

Mais importante, contudo, é lembrar que apesar de inúmeros esforços contrários, tanto aqui quanto nos EUA, o movimento nunca foi assimilado (a não ser parcialmente) pela indústria cultural e, conseqüentemente, nunca foi totalmente desprovido de sua veia contestatória.

Assim, a partir na década de 1990, grupos paulistas como Racionais MC, Pavilhão 9, cariocas como MV Bill e uma infinidade de nordestinos acabaram servindo de porta-vozes para os jovens que se viam cada vez mais jogados para as margens com a escalada do neoliberalismo (devidamente acompanhado pelo aumento do desemprego e da violência).

Dentro dos setores que atingiram algum sucesso ou que perfuraram a barreira da mídia, muita coisa aconteceu: da adaptação total à completa segregação. Contudo, de lá para cá, também pode-se dizer que uma mesma história se repete: para cada grupo ou indivíduo que se curva para o mercado, domesticando suas músicas, ritmos e poesias, surgem dezenas de grupos em todos os cantos do Brasil.

Organização e resistência

Hoje, a quantidade de grupos e a diversidade da produção existente é tamanha que é praticamente impossível definir “um” movimento hip hop nacional, tanto do ponto de vista artístico como político (dois pólos inseparáveis quando se discute este tema). Artisticamente, uma das mais interessantes características do movimento é a facilidade com que a juventude consegue adaptá-lo à sua realidade e aos sotaques locais.

Do ponto de vista político, um dos aspectos fundamentais do movimento foi aglutinar a juventude, particularmente a negra. Um movimento que acabou desencadeando todo tipo de associação: há grupos totalmente independentes e autônomos, há outros vinculados a ONGs e entidades semelhantes e alguns, ainda, são patrocinados por prefeituras ou organizados em torno de lideranças políticas.

Encruzilhadas do movimento

Essa multiplicidade está na raiz do atual impasse e das polêmicas que envolvem o movimento. Uma encruzilhada que, diga-se de passagem, está no caminho de qualquer movimento brasileiro: a manutenção de sua independência e autonomia ou o atrelamento às instituições e ao governo.

A polêmica se intensificou no início do ano, quando, a partir de iniciativas do músico MV Bill uma série de integrantes do movimento nacional (muitos deles vinculados do Mohob – Movimento Hip Hop Organizado do Brasil) se reuniram com o presidente Lula.

Apoiados no discurso de que o encontro daria “legitimidade” ao movimento, possibilitando seu crescimento, os participantes, apesar de não se apresentarem formalmente como representantes do movimento, assumiram compromissos e traçaram planos que provocaram críticas de todo o país, vindas desde gente que se sentiu “excluída” da conversa, até aqueles que acreditam que não é papel do movimento hip hop se atrelar ou se comprometer com qualquer governo que seja, principalmente o atual, cujas políticas são exatamente o oposto daquilo que a maioria do movimento sempre viu como necessário.

Exemplo desta última postura é o Quilombo Urbano, que organizou, há quase duas décadas, o Movimento Hip Hop Organizado, ou MH2O, declarando-se uma “organização de cunho político-cultural anti-racista e antiimperialista” ou, ainda, uma “organização preta, socialista e de periferia” que tem como objetivo “tensionar uma consciência coletiva e anti-capitalista entre a juventude de periferia” e para tal desenvolve projetos que vão desde a gravação de CDs – com músicas politizadas (como Periafricanía, ao lado), que evidentemente não são assimiladas pelo mercado fonográfico –, à realização de festivais e oficinas de hip hop.

Acalorada, como toda discussão dentro do movimento, a atual polêmica, de fato, é fundamental para o destino do hip hop no Brasil. Transformar-se num movimento porta-voz e serviçal do governo Lula, e de interesses que nada têm a ver com a população negra e pobre da periferia, seria um crime.

O caminho deve ser exatamente o oposto: fazer ecoar e repercutir as vozes e cores da periferia para, juntamente com outros tantos setores da população, ajudar a arrancar este país dos séculos de racismo, violência e miséria.

* Colaboraram Verc Santos e Hertz Dias, movimento Quilombo Urbano

PERIAFRICANÍA
(trechos)

grupo Gíria Vermelha

São quatro e meia da matina, pode crê/ periferia bom dia
como vai você/ (… )periferia no Brasil é África e vice e versa/
devidas proporções guardadas estamos na mesma merda/
crianças negras sumariamente são massacradas/ lembre-se
de SOWETO, compare com a Candelária/ (…) Etiópia é sertão
nordestino/ onde a fome e a miséria expõem
as suas seqüelas / Eldorado, Angola, Corumbiara, Nigéria/
quantos Zulus foram mortos? Mataram quantos sem-terras/
Genocídio, homicídio suicídio, mortalidade infantil/
Controle populacional, guerra civil/ apenas dez anos de
idade na mão um fuzil/ o Haiti é qualquer bairro pobre
do Brasil (…) Periafricanía / África do Brasil, periferia.

Post author Wilson H. da Silva*, da redação
Publication Date