Em novembro de 2010, o brasileiro Ricardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados das Américas (OEA) no Haiti desde 2008, foi destituído pela organização da missão de paz no país. O motivo foram as criticas realizas contra a ação da ONU no HaiDez mil capacetes azuis no Haiti. Em sua opinião, uma presença contra-produtiva…

Ricardo Seitenfus: O sistema de prevenção de contenciosos no quadro do sistema ONUsiano não está adaptado ao contexto haitiano. O Haiti não é uma ameaça internacional. Não estamos em situação de guerra civil. O Haiti não é o Iraque nem o Afeganistão. Porém, o Conselho de Segurança, por falta de alternativa, impôs Capacetes azuis desde 2004, após a saída do presidente Aristide. Desde 1990, a ONU já organiza 8 missões aqui. O Haiti vive desde 1986 [fim da ditadura] o que chamo de conflito de baixa intensidade. Somos confrontados com lutas pelo poder entre atores políticos que não respeitam o jogo democrático. Mas, parece que o Haiti, no palco internacional, paga essencialmente sua grande proximidade com os Estados Unidos. O Haiti foi alvo de uma atenção negativa por parte do sistema internacional. Tratava-se para a ONU de congelar o poder e transformar os haitianos em presos da sua própria ilha. A angustia dos boat-people [pessoas que tentam entrar nos Estados Unidos por barcos sem documento] explica boa parte nas decisões do Internacional em relação ao Haiti. Querem a qualquer preço que os haitianos permanecem no Haiti.

O que é que impede a normalização do caso haitiano?

Durante duzentos anos, a presença das tropas estrangeiras tem alternado com a de ditadores. As relações internacionais com o Haiti são definidas pela força, jamais pelo diálogo. O pecado original do Haiti, no palco mundial, é a sua libertação. Os haitianos cometem o inaceitável em 1804 [a independência do Haiti foi proclamada no dia 1º de janeiro de 1804]: um crime de lese-majestade para um mundo inquieto. O Ocidente é na época um mundo colonialista, escravagista e racista que embasa sua riqueza na exploração das terras conquistadas. Portanto, o modelo revolucionário haitiano inspira medo às grandes potencias. Os Estados Unidos reconhecem a independência do Haiti somente em 1865. E a França exige o pagamento de um resgate em troca do reconhecimento da libertação. Já no princípio, a independência está comprometida e o desenvolvimento do país impedido. O mundo jamais soube como tratar o Haiti, afinal ignorou-o. Começaram duzentos anos de solidão no palco internacional. Hoje, a ONU aplica cegamente o capítulo 7 da sua carta, manda tropas para impor sua operação de paz. Não resolve nada, piora [tudo]. Quer fazer do Haiti um país capitalista, uma plataforma de exploração para o mercado americano, é absurdo. O Haiti deve estar o que é, ou seja, um país essencialmente agrícola fundamentalmente impregnado ainda do direito costumeiro. O país é constantemente descrito sob o ângulo da violência. Mas, sem Estado, o nível de violência [no Haiti] nem chega perto do nível da violência nos países da America Latina. Existe nesta sociedade elementos que impediram uma expansão desmedida da violência.

Não é uma demissão de analisar o Haiti como uma nação não- assimilável, cujo horizonte é a volta aos valores tradicionais?

Existe uma parte do Haiti que é moderna, urbana e voltada para o exterior. Estima-se em 4 milhões o número de haitianos fora do Haiti. Trata-se de um país aberto ao mundo. Não estou sonhando com uma volta ao século XVI, a uma sociedade agrária. Mas, o Haiti vive sob a influência do Internacional, das ONGs, da caridade universal. Mais de 90% do sistema educativo e sanitário estão em mãos privadas. O país não tem recursos públicos para assegurar o funcionamento mínimo de um sistema estatal. A ONU fracassa em levar em conta os traços culturais. Resumir o Haiti em uma operação de paz significa deixar de enfrentar os verdadeiros desafios do país. O problema é socioeconômico. Quando a taxa de desemprego atinge 80% [da população], é insuportável implantar uma missão de estabilização. Não há nada a estabilizar; tudo está por ser construído.

O Haiti é um dos países mais ajudados no mundo, porém a situação sempre piora desde 25 anos. Por quê?

A ajuda emergencial é eficaz. Mas quando se torna estrutural, quando se substitui ao Estado em todas as suas missões, gera uma desreponsabilização coletiva. Se existe uma prova de fracasso da ajuda internacional, é o Haiti. O país se torna a Meca. O terremoto do dia 12 de janeiro, mais a epidemia de cólera não fazem senão piorar o fenômeno. A comunidade internacional tem o sentimento de dever refazer cada dia o que termina de fazer no dia anterior. O cansaço do Haiti começa a aparecer. Esta pequena nação deve surpreender a consciência universal com catástrofes cada vez mais enormes. Tinha a esperança de que, no desastre do dia 12 de janeiro, o mundo ia entender o quanto já errou de caminho com o Haiti. Infelizmente, reforçou a sua mesma política. Ao invés de fazer um balanço, mandou ainda mais soldados. É preciso construir estradas, erguer barragens, participar à organização do Estado, do sistema judiciário. A ONU diz que não tem mandato para isso. Seu mandato no Haiti se resume a manter a paz do cemitério.

Qual o papel das ONGs nesta situação?

A partir do terremoto, o Haiti se torna uma encruzilhada incontornável. Para as ONGs transnacionais, o Haiti se transforma em um lugar de passagem obrigatório. Diria até pior: um lugar de formação profissional. A faixa etária dos cooperantes no Haiti depois do terremoto é muito baixa: eles desembarcam no Haiti sem nenhuma experiência. E o Haiti, posso dizer, não combina com amadores. Após o 12 de janeiro, por causa do recrutamento maciço, a qualidade profissional baixou muito. Existe uma relação maléfica ou perversa entre a força das ONGs e a fraqueza do Estado haitiano. Algumas ONGs existem somente por causa do mal haitiano.

Quais erros foram cometidos depois do terremoto?

Frente à importação maciça de bens de consumo para alimentar os desabrigados, a situação da agricultura haitiana piorou ainda mais. O país oferece um campo livre para qualquer tipo de experiências humanitárias. É inaceitável moralmente considerar o Haiti como um laboratório. A reconstrução do Haiti e a promessa de 11 bilhões de dólares agitam as cobiças. Parece que um monte de gente vem para o Haiti, não para o Haiti, mas para arrumar negócios. Para mim, é uma vergonha, uma ofensa à nossa consciência. Um exemplo: os médicos haitianos formados em Cuba. Mais de 500 médicos haitianos foram formados em Havana. Cerca da metade, enquanto deveriam estar no Haiti, trabalham hoje nos Estados Unidos, no Canadá ou na França. A revolução cubana está financiando a formação de recursos humanos a favor de seus vizinhos capitalistas.

Descreve-se constantemente o Haiti como a margem do mundo, você sente o país como um concentrado de nosso mundo contemporâneo…

É o concentrado dos nossos dramas e dos fracassos da solidariedade internacional. Não estamos à altura do desafio. A imprensa mundial vem ao Haiti e descreve o caos. A reação da opinião pública não se faz esperar. Para ela, o Haiti é um dos piores países do mundo. É preciso ir rumo à cultura haitiana, ao país profundo. Creio que tem médicos demais na cabeceira do enfermo e a maioria destes médicos são economistas. Ora, no Haiti é preciso antropólogos, sociólogos, historiadores… até teólogos. O Haiti é complexo demais para gente com pressa; os cooperantes estão com pressa. Ninguém tem tempo nem gosto de tentar compreender o que poderia chamar a alma haitiana. Os haitianos o sabem, eles que nos consideram, nós a comunidade internacional, como uma vaca leiteira. Querem aproveitar da nossa presença e o fazem com uma maestria extraordinária. Se os haitianos nos consideram somente pelo dinheiro que trazemos, é por que nos apresentamos como tal.

Para além da constatação de fracasso, quais as soluções que você propõe?

Em dois meses, terminarei uma missão de dois anos no Haiti. Para conseguir ficar aqui sem ser atordoado pelo que vejo, tive que criar uma série de mecanismos de defesas psicológicas. Eu queria ser uma voz independente apesar do peso da organização que represento. Consegui porque eu queria expressar minhas profundas dúvidas e dizer ao mundo que isso basta. Chega de brincar com o Haiti. O 12 de janeiro me ensinou que existe um potencial extraordinário de solidariedade no mundo. Embora seja necessário não esquecer que nos primeiros dias, foram os haitianos sozinhos, sem nenhuma ferramenta, que tentaram salvar os seus. A compaixão foi importante na emergência. Mas a caridade não pode ser o motor das relações internacionais. Tem que ser a autonomia, a soberania, a equidade no comércio, o respeito do outro. Devemos pensar simultaneamente oferecer oportunidades de exportação ao Haiti, mas igualmente proteger esta agricultura familiar essencial para o país. O Haiti é o último paraíso do Caribe ainda inexplorado pelo turismo cultural, com 1.700 km de costas virgens. Devemos favorecer um turismo cultural e evitar pavimentar a estrada para um novo eldorado de turismo de massa. As lições que damos são ineficazes há muito tempo. A reconstrução e o acompanhamento a uma sociedade tão rica são uma das últimas grandes aventuras humanas. Há 200 anos, o Haiti iluminou a história da humanidade e dos direitos humanos. Trata-se agora de deixar aos haitianos uma chance de confirmar a sua visão.

Tradução: Seguy Franck