A lógica do lucro impera na fábrica. A noção de que um carro vale mais que a vida de um trabalhador é o que está por trás do adoecimento de tantos metalúrgicos
Todos os dias milhares de trabalhadores entram no complexo automotivo Ford Nordeste para trabalhar, localizada na cidade de Camaçari, Bahia. São milhares de homens e mulheres. Infelizmente, a realidade é muito mais dura do que as expectativas dos trabalhadores do complexo. O salário pago na planta de Camaçari chega a ser 2,5 vezes menor que o pago em plantas da mesma empresa na região sudeste. Para piorar a situação, a realidade encontrada na produção é de um ritmo de trabalho cada vez mais intenso. Os trabalhadores não possuem qualquer controle sobre o ritmo e as metas de produção. Para dar conta da produção, sobrecarregam seus corpos.
Números absurdos
Uma pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) revelou que, entre 2003 e 2011, cerca de 580 trabalhadores da Ford foram atendidos no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) da cidade. O número corresponde a 20% de todos os casos atendidos no Cerest. Mas a quantidade de trabalhadores da Ford com doenças relacionadas ao trabalho pode ser ainda maior, pois a informação apresentada corresponde apenas aos trabalhadores que buscaram o Cerest. Dados da Previdência Social mostram que o setor automotivo na Bahia foi o que apresentou maior número de doenças ocupacionais em 2007. Dentre elas estão as lesões por esforços repetitivos e doenças osteomusculares, relacionadas ao trabalho (Ler/Dort). Mas muitos trabalhadores têm medo de revelar o que sentem e, por isso, passam vários meses, e até mesmo anos, trabalhando com dor tomando medicamentos.
Um ritmo desumano
Vários fatores contribuem para o adoecimento dos trabalhadores no setor automotivo. O ritmo, a falta de pausas e de equipamentos, a utilização de equipamentos inadequados, a adoção de posturas inadequadas durante o trabalho são fatores responsáveis pelo surgimento das Ler/Dort. Na planta da Ford, além de todos esses fatores, o ritmo acelerado da produção também é responsável pelos números alarmantes de trabalhadores doentes. “Se você tiver a oportunidade de entrar na Ford, você vai ver um monte de louco trabalhando, eles não param, não param para nada. Sai uma peça de um lado, já ‘tá’ entrando outra, a rotatividade é muito intensa, tem um ritmo frenético. Eu posso chamar de frenético aquele ritmo”, afirma Hugo*, 35 anos, metalúrgico afastado do trabalho. Vários são os relatos da dificuldade de sair da linha de produção, onde até mesmo para ir ao banheiro os trabalhadores precisam esperar horas.
O lucro acima da vida
A lógica do lucro impera na fábrica. A noção de que um carro vale mais que a vida de um trabalhador é o que está por trás do adoecimento de tantos metalúrgicos. Em 2012, a Ford comemorou a marca de dois milhões de veículos produzidos na planta de Camaçari, aproveitando a ocasião para divulgar que quer aumentar a produção anual de 250 mil veículos para 300 mil. Para isso, a Ford quer aumentar a produção em cerca de 180 carros por dia, mesmo sem ter anunciado um aumento no número de trabalhadores na planta. O que vem acontecendo é uma política recorrente de tentativa de demissão de trabalhadores com doenças ocupacionais. “Ela (a empresa) quer quantidade de carro, no final do turno atingir a meta e acabou. Você lá é um parafuso a mais. ‘Aluiu’, joga fora e bota outro”, desabafa João, 40 anos, metalúrgico afastado do trabalho.
Destruindo sonhos
Com o adoecimento, os trabalhadores da Ford passam a viver situações de constante humilhação. Suas vidas passam a girar em torno das inúmeras consultas com médicos e fisioterapeutas e da realização de exames. O medo de perder o benefício é constante. A Previdência Social que deveria proteger o trabalhador sem condições de retornar ao trabalho, tem acelerado a suspensão do benefício, o que muitas vezes coloca os trabalhadores em situação de conflito. A empresa não o aceita no trabalho, dizendo que ele não tem condições de trabalhar, e o INSS insiste em dizer que ele já tem condições de trabalhar e que deve voltar ao trabalho. Muitas vezes, os trabalhadores passam meses sem receber nenhum salário, tendo que recorrer a empréstimos para manter a família. João revela uma situação enfrentada por muitos trabalhadores doentes que sofrem humilhação toda vez que precisam ir à empresa: “Para ir à empresa, é a maior burocracia, tenho que ligar. Bloquearam a minha entrada lá, até no estacionamento eu não posso entrar com o carro”. Hoje, muitos dos trabalhadores também apresentam doenças psicoemocionais como depressão e ansiedade, causadas por pressão, incertezas e pelos inúmeros casos de humilhação.
Ausência do Estado
A realidade dos trabalhadores da Ford de Camaçari é também a realidade de milhares de trabalhadores Brasil a fora. Cerca de R$ 2,4 bilhões foram investidos pelo Estado para a instalação da Ford em Camaçari. A política de isenções fiscais para a empresa foi renovada ainda no governo Lula, e estima-se que a Ford tenha economizado, até 2010, cerca de R$ 1,2 bilhões devido à isenção de impostos. Enquanto sobram benesses para a empresa, para os trabalhadores pouco tem sido feito. A falta de profissionais nos órgãos que fiscalizam o trabalho (Ministério do Trabalho, Cerest), a dificuldade de intervenção nos processos de produção, o desmonte da Previdência Social são sinais de que a prioridade dos governantes tem sido o favorecimento às empresas.
Na sua tentativa de mudar a situação, o caminho encontrado pelos trabalhadores foi a intervenção na lógica da produção, que favorece o lucro ao mesmo tempo em que acaba com a saúde dos trabalhadores. O fortalecimento das CIPAs e das comissões de fábrica são fundamentais para a proteção dos trabalhadores. Eles devem participar das decisões sobre metas de produção, ritmo de trabalho, decidir quando farão suas pausas etc. É preciso garantir a luta na fábrica por melhores condições de trabalho e também uma luta maior pela superação do modo de produção capitalista que, em busca do lucro, acaba com a saúde e com a vida de milhares de trabalhadores.
*Para proteger os trabalhadores de retaliações, os nomes usados na reportagem são falsos.
Post author Henrique Saldanha, de Salvador (BA)
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