Soraya Misleh, de São Paulo

Faleceu neste dia 21 de março aos 89 anos de idade, deixando um mundo ainda a levar adiante sua luta e legado grandioso, a médica psiquiatra e feminista egípcia marxista Nawal El Saadawi (1931-2021).

Fundadora da Associação de Solidariedade às Mulheres Árabes e cofundadora da Associação Árabe para Direitos Humanos, sua vida foi marcada pela coragem e rebeldia contra o sistema em que a opressão machista é a regra. “Não temo a morte”, declarava numa entrevista no ano de 2018, em meio a ameaças que acompanharam sua trajetória inspiradora. Em outra, destacava: “Eles dizem: ‘Você é uma mulher selvagem e perigosa.’ Eu estou dizendo a verdade. E a verdade é selvagem e perigosa.”

Nawal deixou ao todo mais de 50 livros, 24 dos quais romances, publicados em diversos idiomas. Entre eles, “A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe” (Editora Global, 2002), o único traduzido para o português.

Nesta obra, ela aborda desde a luta das feministas anticoloniais árabes contra a mutilação genital, um costume tribal no Norte da África do qual foi vítima aos seis anos de idade, até uma rica história de resistência e protagonismo das mulheres de toda a região, desde tempos imemoriais.

Nascida numa aldeia nos arredores do Cairo, capital do Egito, em outubro de 1931, divorciou-se três vezes por se recusar a se submeter a casamentos infelizes, marcados pela opressão machista. Com o último companheiro, também marxista e pai de seus dois filhos, permaneceu por 43 anos. Como conta em entrevista ao The Guardian, costumava dizer que era o único homem feminista que conhecia na face da Terra, até a decepção de descobrir que a traía.

Por suas ideias e obras, Nawal enfrentou, além de ameaças de morte, demissão do serviço público de saúde em 1972; prisão política sob o governo egípcio de Anwar Sadat em 1981, sendo libertada somente no ano seguinte, meses depois da morte desse ditador; cinco anos de exílio nos Estados Unidos, entre 1991 e 1996; e banimento de suas publicações em seu país. Nunca se calou.

Feminismo anticolonial

Durante a revolução egípcia iniciada em 2011 por pão, justiça e liberdade, Nawal era presença constante, ao lado de outras lutadoras, na Praça Tahrir. Na visão orientalista predominante nos meios de comunicação de massa, a ideologia difundida era de que a participação feminina era novidade. Uma ideia que Nawal desconstrói em seus escritos e declarações, nos quais também desmonta a associação grosseira com fins coloniais entre opressão de gênero e ser árabe. Mais ainda, desmistifica a ideia de que esteja atrelada ao Islã, revelando que tal opressão se deve à instrumentalização da religião, usada como meio de dominação, mediante distintas interpretações, de modo a favorecer o grupo político hegemônico.
Contraditoriamente, em 2013, Nawal cometeu o equívoco de enxergar no exército egípcio liderado por al-Sissi um aliado para a continuidade da revolução e não seu coveiro, como de fato se mostrou. Também avaliou erradamente outros processos na região. Fazer essa crítica não implica não reconhecer seu papel na história, mas desmontar uma visão idealista, ao mesmo tempo apontando as enormes contribuições em seus escritos.
Nessa direção, em seu livro “A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe”, ela salienta: “A história tem descrito, com falsidade, muitos dos fatos relacionados ao sexo feminino. As mulheres árabes não são mentalmente deficientes, como os homens e a história, escrita por eles, tendem a afirmar, tampouco são frágeis e passivas. Ao contrário, as árabes mostraram resistência ao sistema patriarcal centenas de anos antes que as americanas e europeias se lançassem a essas mesmas lutas.” Sistema esse que passou a predominar a partir do surgimento da noção de propriedade privada e divisão de classes, como ensina Nawal em sua obra. Em tempos ancestrais, em que predominava o nomadismo e a agricultura de subsistência, as mulheres detinham a igualdade em assuntos sociais, econômicos e na esfera política.

Protagonismo histórico

Em seu livro, Nawal descreve uma série de acontecimentos que não deixam dúvidas de seu protagonismo histórico em diversas áreas – nos campos de batalha, na literatura, na poesia. Ela cita diversos nomes femininos que inclusive combateram nas fileiras do profeta Mohammad ou contra ele e seus seguidores, na era islâmica. As próprias esposas do profeta eram exemplos de mulheres firmes, que não abriam mão de seus direitos.

Dando um salto no tempo até o início do século XX, a escritora relata que no Egito foram as mulheres as primeiras a deflagrar greves, ocupar fábricas e marchar por direitos. Participaram ativamente na revolução nacional de 1919, contra o imperialismo britânico. No país, em 1923, foi fundada a Federação das Mulheres. Em outra revolução, em 1956, arrancaram o direito a voto.

A autora complementa: “O Egito não foi o único país árabe no qual a mulher participou ativamente na luta contra o imperialismo estrangeiro e a opressão interna. A mulher em todo o mundo árabe lutou ombro a ombro com o homem pela libertação nacional e pela justiça social.”

Na Síria, no Líbano e na Argélia, tiveram papel fundamental contra a ocupação francesa. No Iraque, também se opuseram ao imperialismo e contribuíram “para acelerar as transformações sociais”.

Na Jordânia, historicamente têm “organizado a luta nas frentes sociais, políticas ou econômicas”. No Sudão, tiveram papel destacado no movimento nacional de libertação contra os ingleses.

No Kuwait, na Líbia, no Iêmen, no Marrocos, têm dado sua contribuição por justiça e liberdade.

Na Palestina, foram pioneiras em protestar contra a instalação dos primeiros assentamentos sionistas ainda no final do século XIX, com fins coloniais – e têm resistido aos mais de 70 anos de ocupação israelense na linha de frente. “A extensa lista de mártires serviria para encher as páginas de todo um capítulo, mas entre as mais conhecidas estão Leila Khaled, Fátima Bernaw, Amina Dahbour, Sadis Abou Ghazala e outras cujos feitos intrépidos um dia serão admirados pelas futuras gerações de jovens e mulheres.”

Relegadas às camadas sociais inferiores, as mulheres da região, assim como em outras partes do globo, carregam o legado deixado por Nawal e se inspiram nessa mulher cuja vida foi extraordinária: vêm assumindo a linha de frente na oposição a esse status quo. Assim, ao longo dos séculos, têm desempenhado papel fundamental nas lutas contra o colonialismo, a dominação, por direitos, justiça.

Não poderia ser diferente: acabar com a desigualdade de gênero é bandeira crucial na transformação dessas sociedades. É o que ensinou Nawal: “Enquanto os assuntos do Estado ou do poder administrativo forem delegados à mulher dentro de uma estrutura social de classes, baseada no capitalismo e no sistema familiar patriarcal, homens e mulheres hão de permanecer vítimas da exploração.” Seguir em marcha para mudar esse estado de coisas é a melhor maneira de homenagear Nawal El Saadawi. “Eu tenho um sonho desde criança: mudar o mundo.” Esse sonho está vivo. Nawal, presente!