Da palavra camarada, o Dicionário Aurélio registra nada menos do que 14 (quatorze) diferentes acepções, no português brasileiro, para vocábulo tão caro à esquerda revolucionária. Veja de perto:
Camarada
[Do Fr. Camarade.]
Substantivo de dois gêneros.
1. Pessoa que convive com outra; companheiro.
2. P. ext. Amigo fraternal e cordial.
3. Condiscípulo, colega.
4. Cada um dos indivíduos que exercem a mesma profissão.
5. Bras. N. Pessoa amancebada; amásio, amigo, companheiro.
6. Bras. V. concubina:
Alugou casa para a camarada e passou a morar lá, com ela.
Substantivo masculino.
7. Bras. Pop. Soldado.
8. Bras. Indivíduo empregado em serviços avulsos, nas fazendas.
9. Bras. Garimpeiro assalariado.
10. Bras. Sujeito, indivíduo:
Esse camarada está sempre contando vantagem.
Adjetivo de dois gêneros.
11. Bras. Simpático, acessível, amigo; camaradesco:
É um sujeito camarada.
12. Agradável, bom, propício:
Soprava um ventinho camarada.
13. Acessível:
um preço camarada.
14. Que denota camaradagem, simpatia, amizade:
O professor deu-lhe uma nota camarada.
– Camaradas do corpo. Bras. CE Pop. Madre, útero.
Recapitulando: de parceiro de convívio (no mesmo quarto ou câmara), passando por amigo fraternal/cordial, colega/companheiro de trabalho, companheiro/a amoroso/a, amante extraconjugal, soldado militar, bóia-fria, garimpeiro assalariado, sujeito e/ou indivíduo, simpático, agradável, acessível até a gíria, já bastante trivial, de bacana. Uma real profusão de significações filotipicamente congêneres variações do mesmo tipo, sem sair do tom, diz a letra da música , típica de nossa formação histórica e social. Em síntese, simplificando brutalmente sua vertente principal, dessa forma se designa a pessoa a quem se está ligado/a por uma familiaridade originada de atividades comuns (estudo, trabalho, lazer etc.) ou afeição voluntária, indica-se aquele/a que tem os mesmos hábitos, interesses ou ocupações segundo o dicionário Le Gran Robert e, enfim, tratar-se-ia ainda de uma forma de tratamento entre iguais. Mas, afinal de contas, onde estaria sua gênese histórica?
I
De ramo léxico-semântico derivado imediatamente de outro idioma neolatino, o francês (Camarade), a palavra é uma verdadeira trânsfuga, tanto da pátria de origem quanto do seu sentido, digamos, original. A palavra Camarada apareceu em cena no velho francês no período das Grandes Navegações, cruzando os Montes Pirineus a partir da década de 1510 (do Lat. Camera = Quarto). O termo tomado de empréstimo ao castelhano castiço, Camarada = com quem se compartilha um quarto existe desde o séc. XVI na língua francesa. Ocorre que, durante o Renascimento, o poder dos Reinos de Castilha e Portugal cresceu a olhos vistos com a colonização das Américas. Em razão da supremacia nas guerras, nas relações comerciais e política exterior, o castelhano-espanhol e o galaico-português forneceram ao idioma francês algumas palavras que lhes são próprias fenômeno cultural que logo se inverteria e, algo depois, se trasladaria à influência do universo anglo-saxão. De qualquer maneira, é sobretudo na forma como se dá a transmissão de todo um vocabulário às colônias, e em particular no Novo Mundo, que os idiomas ibéricos irão enriquecer consideravelmente o vocabulário francês. Assim sendo, talvez o percurso inicialmente sugerido (cruzando os Montes Pirineus) seja, na verdade, um tanto mais árduo, complexo e intrincado.
E, mais, lembremo-nos: toda língua nacional foi / é produto histórico de normatização institucional póstuma, violentamente arrancada a ferro e a fogo do coração vivo de uma multiplicidade de línguas e povos originários que não conheciam fronteiras de qualquer tipo e ainda, para todos os efeitos, França e Espanha foram / são povos-irmãos e Estados constitutivamente multiétnicos, plurinacionais e poli-lingüísticos de fato limítrofes. A palavra é algo equivalente ao francês Chambrée em inglês as coisas podem ficar ainda mais simples, Room-mate = Colega-de-quarto (Comrade, em sentido político) termo que designa forma de alojamento com parceiros de convívio em um mesmo quarto compartilhado (modo de vida mais comum e difundido entre os de baixo, diga-se de passagem).
Aí está a força originária da expressão, nua e crua, descoberta das diversas camadas de sentido estalactites e estalagmites sociais; tal como diria uma lingüista-camarada que se lhe cobriram a trajetória enquanto fóssil lingüístico, com o passar do tempo histórico. Mas como dizia Ernst Bloch, a verdadeira gênese está no fim, e, afinal de contas, a linguagem dos homens é um fenômeno sócio-histórico em irrefreável movimento e é, sobretudo, língua viva.( [1]) Ao final do séc. XVI o vocábulo toma enfim a forma que derivará o termo germânico Kamerad (e, a posteriori Genosse, em sentido político) identificando vínculo e/ou familiaridade de alguma natureza, já seja em sentido amplo ou restrito aplicando-se indiferentemente aos gêneros feminino ou masculino. Esta evolução semântica não carecerá de validez sobre o sentido e o uso do termo em seus ulteriores desdobramentos.
II
O emprego particular da palavra camarada em seu uso social tradicionalmente associado à esquerda socialista, forma de tratamento amistosa com forte conotação partiggiana teve início a partir de seu estabelecimento através dos comunistas / socialistas franceses pré-marxistas que, segundo o Larousse Dictionnaire dÉtymologie, primeiramente difundiram o sentido propriamente político-ideológico deste lexema (unidade de sentido) a partir da década de 1790, sob o impacto da grande revolução francesa. Estabelecido o significado original, não é difícil apreender-lhe seu sentido alusivo e algo metafórico a militantismo, companheirismo, partidarismo.
O vendaval irresistível da vaga revolucionária aboliu, ao menos momentaneamente, as formas de tratamento Senhor e Senhora (Monsieur e Madame) de forte conotação hierárquica suprimindo o pesado fardo dos títulos nobiliárquicos e a velha herança dos privilégios feudais a partir da noção de homens livres e do emprego generalizado do termo que denotava a emancipação jurídico-política: Cidadão (Citoyen). Um exemplo digno de nota: o próprio Rei Luis XVI, depois de deposto, passou a ser referido simplesmente como Cidadão Louis Capet (!). Aí está a profícua fertilização do solo histórico que lhe serviu de esteio (à re-significação, enfim, ao sentido novo atribuído à palavra que nos serve de tema).
Considerando que a gênese dos termos Socialisme e Féminisme é praticamente coetânea durante a Primavera dos Povos (as revoluções européias quarantottescas, ou seja, próprias de 1848); a expressão franco-espanhola camarada, note-se, tem ainda uma vantagem adicional: não estabelece distinções de gênero, sendo uma forma de tratamento mais igualitária inclusive no trato indiferenciado entre homens e mulheres sendo o sistema patriarcal de dominação masculina forma histórica de opressão social das mais arraigadas, que em muito antecede o velho feudalismo e o próprio sistema do capital.
III
Os revolucionários russos atentos que eram à nação mais revolucionária do mundo conheciam muito bem não só a história e a memória do movimento francês por razões tão óbvias quanto o 1789, o 1848 e o 1871 como também sabiam, de-cor, seus usos e costumes. Não é por acaso que muitos dirigentes russos usavam o prenome, tipicamente francês, de León, em seus codinomes-de-guerra. A influência literária e política dos franceses era enorme na Rússia do Noveccento. O bolchevismo, após a conquista do poder no início do séc. XX, generalizou e internacionalizou o emprego político fundado pelos camaradas franceses, traduzindo o termo e incorporando-o à quotidianidade, à cultura e ao modo de vida soviético (Camarade = Tovarich). A revolução proletária na Rússia pode ser considerada, para todos os efeitos, em termos de continuidade histórica em relação à sua irmã mais velha: a Comuna de Paris.
A guerra civil que se seguiu na Rússia viu o Exército Branco (contra-revolucionário) usar o termo Tovarich em sentido pejorativo, para se referir aos bolcheviques principalmente os envolvidos no Exército Vermelho e nos Soviets (conselhos assembleários de representantes operários, camponeses e militares de baixo escalão). A direita conservadora da América do Norte e da Europa Ocidental passou a menoscabar muitas vezes com estereótipos grosseiros e caricaturas infantilizadas de seus adversários banalizando (des-contextualizando e, por fim, esvaziando de sentido) o epíteto de Camaradas. O espectro do anticomunismo passou a constituir a Doutrina de Segurança Nacional em grande parte do mundo do capital e a Era MacCarthista constitui sua expressão mais evidente.
Contudo, à medida que o arrojo revolucionário de Outubro de 1917 ia se esmaecendo e a ex-URSS se ia estalinizando, o uso social e político do termo camarada foi se circunscrevendo cada vez mais aos discursos formais, documentos oficiais e aos destacamentos militares do restrito círculo da burocracia partidária-estatal. A forma de tratamento que ascendera social e politicamente em função de seu sentido originalmente igualitário, voltado para as relações mais diversas da vida quotidiana, voltava passos atrás, literalmente a assumir uma conotação hierárquica a partir da utilização oficial, formal e extra-quotidiana empregada por uma casta burocrática, a nomenklatura civil e militar da ex-URSS, notadamente usurpadora e vampiresca. O retrocesso é evidente. Desta forma, a atração exercida primeiramente de sentido nitidamente emancipatório rapidamente acompanha o arco descrito pela trajetória reacionária da degeneração burocrática dos partidos comunistas em todo o mundo.
IV
Na América Latina dos anos 60 e 70, por exemplo, o eixo das atenções será deslocado pela Revolução Cubana e seu signo congênere par excellence; tornando mais difundida a forma Compañero/a [=aquele/a que acompanha, companhia/acompanhante de luta, de vida, de jornada ou, em sua vertente mais diretamente alegórica, com quem se partilha o pão de cada dia, do Lat. cum = com + panis = pão], inclusive entre a esquerda brasileira. Trata-se de uma palavra ainda mais antiga, presente desde o latim popular (Companio = com quem se divide o pão) p. ex.: Comensal, também derivado do latim, quer dizer com quem se divide a mesa, sendo ambos sinônimos de Conviva, ou seja, com quem se vive e com larga trajetória nas línguas derivadas do Oxitano (como o francês ou o catalão), cuja démarche associa-se, de formas variadas, aos sucedâneos do cristianismo primitivo, às corporações de ofício do medievo e mesmo às seitas da franco-maçonaria.
A reintrodução da distinção de gênero (e sexo) através da nova forma de tratamento (Companheira) acompanhava, paralelamente, a maré cultural do nascente movimento social feminista contemporâneo, subvertendo o igualitarismo nos termos de uma lógica da diferença voltada, à época, a uma revalorização do papel da mulher na história. A palavra Companheira passa a ser, inclusive, uma alternativa simbólica para termos como esposa, concubina ou mulher com carregado sentido de posse-domínio masculino justificando duplamente a nova apropriação pelo movimento de mulheres no séc. XX.
Mas, principal e centralmente, enunciar o termo Companheiro/a trazia consigo o subtexto criptografado do silenciamento de caráter anti-estalinista da sua antiga versão bi-gênero, agora amplamente identificada com a burocracia moscovita e seus respectivos satélites, os PCs. No Brasil em especial, somemos, tratava-se também de um modo cifrado de culto à consciência espontânea do novo movimento operário do ABCD paulista de finais dos anos 70 e início dos 80 além do rechaço implícito, da parte dos sindicalistas, a toda forma de esquerda organizada (inclusive a trotsquista, notadamente anti-estalinista). Que hoje o ex-sindicalista metalúrgico Luís Inácio trate ao capitalista têxtil José Alencar por Companheiro, ambos alçados pelo segundo pleito consecutivo ao governo federal como presidente e vice de uma coalização entre partidários Trabalhadores e Liberais, é mais uma das ironias das quais a história está repleta.
V
O elevado grau de burocratização, institucionalização e inclusive a sua re-militarização (haja vista a origem de seu uso, de forte conotação filo-marcial, como no caso de camaradas de regimento) do termo em si agora empregado majoritariamente por estalinistas gerou, enfim, outra importante deformação. O emprego político, no sentido de correligionarismo em um mesmo movimento ideológico (de concepções) e material (de práticas), seria agora expropriado amplamente pelo Nazi-fascismo que se abatera sobre a Europa Ocidental: o partido nacional-socialista alemão e o falangismo espanhol são notórios exemplos de organizações de extrema-direita que não tiveram quaisquer problemas em empregar a palavra no interior de suas fileiras. A dupla derrota histórica do movimento operário europeu Stalinismo, no Leste Europeu, e Nazi-fascismo, na Europa Ocidental iria se consubstanciar, também, na forma Camarada. Não por acaso comunistas, social-democratas e anarquistas revolucionários da Itália trataram-se (e tratam-se) por Compagno, enquanto Camerata é a forma de tratamento utilizada pelos filiados e simpatizantes ao Partido Fascista de Benito Mussolini, assim como seus atuais seguidores.
Entre a esquerda dos países ibero-americanos, Brasil incluso, até hoje existe a alternativa entre duas formas Companheiro/a e Camarada para designar o que em muitos outros lugares só conhece uma única tradução fiel: Tovarich em russo, Camarade em francês, Compagno em italiano etc.
Hoje em dia em Moscou muitos anos depois da restauração capitalista, cujos ritmos e eixos foram ditados desde o próprio Politburo dificilmente será possível, ou mesmo provável, alguém interpelá-lo/a pela forma de tratamento predominante no cenário pós-czarista (Tovarich). Um vendaval contra-revolucionário parece ter varrido tão bela palavra para a glacial Sibéria do interdicto do bem-falar moscovita. Irromperam em cena novamente Damy e Gospoda Senhor e Senhora, respectivamente , retornando à baila as formas hierárquicas de trato. O novo protocolo em sua versão mais avançada, eqüitativa, da ordem estabelecida parece indicar não mais do que Grajdanin (Cidadão). Um franco regresso ao passado de Tolstói e Doistóevski.
VI
Mas muitas águas rolaram desde o declínio do Nazi-fascismo e o colapso do Stalinismo. São já novos ventos, prometedores (mas não-messiânicos), a sugerir a recensão de muitas bandeiras que se foram abandonando em função das derrotas que empilhamos ao longo do curto séc. XX. Os sinais estão nas ruas. Passam pela América Latina e o Oriente Médio em sua combinação mais explosiva , mas não escapam à América do Norte e, em especial, à Velha Europa que se levanta.
Tomar-lhe emprestados vestes, palavras-de-ordem e mesmo por que não? formas de tratamento camaradas a um passado de lutas gloriosas e derrotas infames não significa ter um olhar voltado para trás. É o exato contrário, na verdade. Trata-se de derivar nossa poesia de um futuro em aberto: que atualiza, re-significa ou em léxico algo hegeliano supera dialeticamente o que já se foi.
VII
Camarada. É mais uma boa e velha palavra francesa que gostaríamos de ver atualizada, re-significada e superada, dialeticamente, pelo movimento real de homens e mulheres de carne e osso, camaradas vivos/as, que apesar de em condições legadas pelo passado fazem história. Da mesma forma como Féminisme, Socialisme e, com especial apreço algo marxiano à palavra Communisme.
Daí que a recentíssima fundação de organizações comunistas-internacionalistas de trabalhadores como a Ligue Communiste des Travailleurs-Communistische WerkersBond, na Bélgica, e o Partito di Alternativa Comunista-Progetto Comunista, na Itália retomando o fio vermelho iniciado com a tradição européia do Manifesto de 1848 sejam alentos de verdadeira inspiração e, oxalá!, prenúncios de novos tempos por-vir.
Mas, alguém poderia se perguntar, por que a insistência semântica? Será preciosismo verbal? Sectarismo lingüístico? Fetichismo simbolista? Longe disso. Ao contrário do que reza o Gênesis, no início não era o Verbo.
A herança teórica de Marx, Engels e de tantos/as outros/as Rosa e Lênin, Gramsci e Trotski; além de tantos outros/as mais fundamenta o amplo projeto histórico, a um só tempo político e social, de emancipação plenamente (revolução política + alma social) livre e universal, de todos/as homens e mulheres; distinguindo-se radicalmente, porém, de todas as antigas (e utópicas) filosofias da história que lhe precederam, justamente por baseá-lo (o projeto) estritamente na lógica concreta das relações sociais mesmas.
Seu programa máximo, por assim dizer: à maneira dos antigos, é para além do capitalismo, sem dúvida!, mas é também e simultaneamente e é isto o que não pode se perder para além do socialismo, no sentido da reconciliação omnilateral da humanidade consigo mesma, uma vez superada dialeticamente a lógica do capital e extinta, uma vez por todas, a exploração do homem pelo homem, a divisão hierárquica entre diferentes classes sociais, cada uma das formas históricas de opressão social e, subseqüentemente, a própria necessidade da existência de todo e qualquer Estado.
A isso, sob os ombros dos gigantes, continuamos a denominar hoje mais do que nunca, em alto e bom som Comunismo. Aí estará o real início da verdadeira história da humanidade, o salto ontológico do reino da necessidade ao reino da liberdade, e, ao cabo, o fim se é preciso praguejar, que o façamos com Marx da Velha Merda. (Sim!: aquilo que Fukuyama chama de História Marx anuncia, digamos, de outra forma…).
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[1] Uma coisa que retornou de minha memória foi Oswald de Andrade: a língua é a contribuição milionária de todos os erros. Que camaradas iniciem por significar moradores de cortiço comum e se chegue a soldados, faz parte. Há aí um movimento de empobrecer o milionário erro mas, como você diz, a palavra não se desgastou. Anti-leopardiana, foi mudando para não ser a mesma coisa e, no empobrecimento, revelar-se mais plena. Trocando em miúdos, vale mesmo a pena tratarmo-nos por camaradas. (N.daR.: Comentário crítico em nota pessoal de correio eletrônico roubado do bom e velho camarada de quem primeiro ouvimos o termo-camarada. Para não lhe avexar mais do que o necessário permanece, aqui, anônimo.)