Especial 25 anos de Racionais MC’s

Quem vai a shows de rap, sabe: os artistas sempre dão nomes às pessoas e aos lugares. Não basta dizer “obrigado a todos”, “vocês de São Paulo”, “caro público” ou “vocês aí da periferia”. Não. Eles sobem no palco, estufam o peito e começam: Cidade Tiradentes, São Mateus, Capão Redondo, Grajaú, Independência e toda a sequência possível, por maior que seja, de bairros da periferia (no caso, paulistana). Na hora de agradecer, não são a “todos aqueles” é  “Valdir, Sandra, Bebe e Fátima, Time Tranbicagem, Diego, Pachá, Larrói, Wilian, Cora, Paulinho, Bicudo e Tico e Catraca, Fernando, Lobão, Paulinho” (Truta e Quebradas) estando ou não vivos.

Chamar as coisas pelo nome e contar sua história. Porque não há melhor forma de dizer algo que existe. E é isso que tem feito Racionais MCs nos últimos 25 anos. Dar nome aos verdadeiros bandidos: capitalismo, racismo, polícia assassina. Dar nome ao negro, pobre, morador da periferia que, não fosse o rap, não passaria de mais um número na estatística do governo ou um indigente de vala comum. E dar nome ao bairro, ao local onde milhares de jovens negros e pobres nascem, crescem e criam raízes.

Com 25 anos de carreira, o Racionais MC’s, principal expressão do rap nacional, é formado por Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões). Eles iniciaram trajetória em 1988, quando as músicas “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis” estouraram na coletânea Consciência Black Vol I.

Justiceiros são chamados por eles mesmos
Matam humilham e dão tiros a esmo
E a polícia não demonstra sequer vontade
De resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente
E por que ajudariam se eles os julgam deliquentes
E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum
Continua-se o pânico na Zona Sul

(Pânico na Zona Sul, 1988)

A batida marcada e as letras de denúncia social começaram a bater na porta da cara da sociedade no momento em que a população pobre estava no limite da opressão, do esgotamento e da marginalização. O país acabava de sair de vinte anos de ditadura militar, várias crises econômicas culminaram no caos inflacionário da época, pais de família não sabiam se poderiam bancar o arroz e o feijão dos filhos e o cassetete tinha endereço certo na cor da pele. Como se não bastasse a marginalização econômica que empurrava os pobres para a periferia, o racismo escancarava ainda mais a acachapante desigualdade social fazendo do Brasil um verdadeiro Holocausto Urbano, nome do primeiro álbum lançado pelo grupo, em 1991. Com a música “Racistas Otários”, o grupo de Mano Brown coloca, pela primeira vez, o tema de maneira tão direta e verdadeira na mesa da cultura brasileira.

Racistas otários nos deixem em paz
Pois as famílias pobres não aguentam mais
Pois todos sabem e elas temem
A indiferença por gente carente que se tem
E eles vêem
Por toda autoridade o preconceito eterno
E de repente o nosso espaço se transforma
Num verdadeiro inferno e reclamar direitos 
De que forma
Se somos meros cidadãos
E eles o sistema
E a nossa desinformação é o maior problema
Mas mesmo assim enfim
Queremos ser iguais

Nos anos seguintes, o desemprego, o arrocho salarial, a falta de infraestrutura continuavam sendo protagonistas na vida de quem morava na periferia em um movimento que fazia a violência policial, a crueldade, o racismo e a desumanidade tornarem-se cotidianas em cada esquina de bar, na porta da escola, na ida para o trabalho ou em um simples “Fim de Semana no Parque”. Esse é o nome da música do álbum “Raio X do Brasil”, de 1993, o terceiro disco deles, que, junto com a faixa “Homem na estrada”, foi responsável pelo boom nacional. Até então, Racionais MC’s era mais conhecido na periferia da capital e Grande São Paulo. 

Eles também gostariam de ter bicicletas
De ver seu pai fazendo cooper tipo atleta
Gostam de ir ao parque e se divertir
E que alguém os ensinasse a dirigir
Mas eles só querem paz e mesmo assim é um sonho
Fim de semana no Parque Santo Antônio

(Fim de Semana no Parque, 1993)

Com essa alavancada, o grupo realizou dois grandes shows na FEBEM (casa de detenção para menores) e reforçou ainda mais o papel de porta-voz de denúncia da violência policial contra jovens e negros. Em 1994, os artistas fizeram uma apresentação no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, que terminou em confusão e quebra-quebra. Os membros foram presos pela polícia acusados de incitação à violência.

Diante de uma realidade cruel, racista e desumana na periferia, viver não era a regra, a regra era seguir Sobrevivendo no Inferno, álbum lançado em 1997. Esse foi o primeiro feito totalmente em estúdio e lançou clássicos das músicas de protesto no país como “Capítulo 4, versículo 3”, “Diário de um detento”, “Tô ouvindo alguém me chamar”, “Qual mentira vou acreditar” e “Mágico de Oz”. Esse foi o disco que consolidou o grupo no país inteiro. Com ele, o Racionais MCs venceu o Vídeo Music Brasil, da MTV, recebendo os prêmios Melhor Grupo de RAP e Escolha de Audiência.

Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto: eis um novo detento

(Diário de um detento, 1997)

Não por acaso, Racionais MC’s ficou notadamente conhecido por ter aversão à mídia. “Eles têm ideais, não gostam de mídia. A parte mais difícil foi justamente tentar convencê-los. Era o auge do disco, a gente queria muito eles no VMB”, conta a gerente de relações artística da MTV, Ana Surani, em entrevista ao G1, sobre como conseguiu fazer a primeira aparição midiática dos rappers na MTV, em 1998. Mano Brown também revelou essa aversão quando, ao ser questionado, disse que a mãe tinha lavado muita roupa de playboy para chegar onde eles estavam.

Nos anos 2000, o Racionais MCs estava mais amadurecido e consolidado, portanto passou a aparecer mais na mídia para difundir o rap, sem perder de vista o caráter de denúncia nas músicas. Eles lançaram mais dois álbuns: Nada como um dia Após o Outro Dia, com os sucessos “Vida Loka I”, “Vida Loka II”, “Negro Drama”, “Jesus Chorou” e “Estilo Cachorro”, em 2002; e 1000 Trutas, 1000 Tretas, primeiro DVD do grupo, em 2006. Dois anos atrás, também lançaram a música “Mil Faces de um Homem Leal”, composta para um documentário sobre a vida do guerrilheiro Carlos Marighella.

Raio-X do Brasil
Em 2002, Mano Brown, líder do grupo Racionais MCs, apoiou publicamente a candidatura do governo Lula. Desde então, o rapper se posiciona ao lado dos governos PT tanto na esfera federal quanto municipal ao apoiar também, durante as eleições, o atual prefeito de São Paulo Fernando Haddad. O descompasso entre a denúncia social, o racismo e as mazelas do capitalismo nas vozes do Racionais diante de um governo que não rompe com a lógica de reprodução do sistema – e que, portanto, é conivente para que a segregação social e geográfica, o racismo e a violência policial permaneçam nas costas dos trabalhadores – começa a se tornar revelador. Em entrevista à revista Cult, em julho deste ano, o próprio Mano Brown dá o recado “Esperar do governo é ultrapassado. Eu acho que o que tem que fazer é exigir do governo, não esperar. […]O brasileiro acabou de se descobrir, está consumindo pra caralho, está vivendo um momento que nunca viveu, entende? Se a sociedade quer mesmo lutar por hospital e escola, por que não se organiza pra pressionar o governo?”. De fato, uma vez que os governos do PT não rompem com os bancos, são financiados pelas grandes empreiteiras e empresários e priorizam o pagamento de juros, eles não têm condições de transformar a realidade que empurra e marginaliza a população pobre para as periferias e criminaliza a população negra. Mas o próprio Mano Brown dá o recado da saída: “Porque, realmente, o povo quando quer, muda mesmo[…] Existe um perigo, que pode realmente invadir Brasília. Pode acontecer. Era uma lenda que você imaginava rolar na Argentina, mas no Brasil nunca. E o Brasil mostrou que se quiser, faz. Então é bom todos ficarem bem espertos com isso”. Estamos todos.

MPB, pagode, sertanejo e indústria cultural
Se durante a ditadura, o que era considerado “subversivo” era falar sobre o regime e isto se expressava com mais peso dentro das universidades – portanto um setor cultural mais intelectualizado — por meio da MPB; no final dos anos 80, essa retórica já não tinha mais tanta expressão.

O país engatinhava na democracia direta, mas a fatura econômica da ditadura militar rasgava as costas dos trabalhadores. Não por acaso, o cenário musical também acompanhou essas contradições. O forte investimento das gravadoras em música sertaneja e pagode para as massas conseguiu dar um ar de “democracia cultural” para o país. Quem não foi solapado por horas intermináveis de duplas sertanejas e grupos de pagode tocando incessantemente nas rádios? E, de repente, passou a ter acesso a fitas cassete e discos de vinil? Se por um lado, os empresários do ramo gostavam de dizer “é isso que o povo gosta, é isso que o povo quer” (e, internamente, completam: “é isso que vou fazer me dar lucro”); por outro, vozes dissonantes, oriundas de uma realidade que esses mesmos empresários querem esconder, começam a produzir a nova cultura “subversiva” do país. A principal expressão desse movimento foi o grupo Racionais MC’s. E sua origem? A periferia.

“Meus irmãos, não deixem vossos filhos diante da televisão
Ela vai alienar vossas crianças” (Face Oculta)

Se o rap dos Racionais não estava na televisão, eles sabiam exatamente o motivo.

O domínio está em mão de poderosos, mentirosos.
Que não querem saber.
Porcos, nos querem todos mortos.
Pessoas trabalham o mês inteiro.
Se cansam, se esgotam, por pouco dinheiro.
Enquanto tantos outros nada trabalham.
Só atrapalham e ainda falam.
Que as coisas melhoraram.
Ao invés de fazerem algo necessário.
Ao contrário, iludem, enganam otários.
Prometem 100%, prometem mentindo, fingindo, traindo.
E na verdade, de nós estão rindo
.” (Tempos Difíceis, Holocausto Urbano 1990)

Breve história do Rap
O gênero surgiu na Jamaica nos anos 60 e foi levado pelos nativos aos bairros pobres de Nova Iorque, nos EUA, no começo da década de 70. Nos anos 80, o rap sofreu uma mistura com outros estilos musicais e deu origem a novos gêneros como o acid jazz, o raggamufin (mistura com o reggae) e o dance rap. Com letras marcadas pela violência das ruas e dos guetos, surge o gangsta rap, representado por Snoop Doggy Dogg, LL Cool J,  Sean Puffy Combs, Cypress Hill, Coolio entre outros. Com Public Enemy já é possível encontrar mensagens de cunho político e social, que denuncia as injustiças e as dificuldades das populações menos favorecidas da sociedade norte-americana.

No Brasil
O rap surgiu em meados dos anos 80, na cidade de São Paulo. Jovens começaram a se reunir em espaços próximos ao metrô São Bento (no centro da capital) para ouvir o som, compor músicas e dançar. O show do grupo americano Public Enemy na cidade, em 1984, ajudou a difundir o estilo para um grande número de pessoas e logo se consolidou nos bairros da periferia paulistana.

O primeiro álbum exclusivo de rap brasileiro que se tem registro é Hip-Hop Cultura de Rua, lançado em 1988 que lançou artistas como Thaíde e DJ Hum, MC Jack e Código 13. No mesmo ano, a segunda coletânea Consciência Black, Vol. I,  foi lançada e projetou os Racionais MC’s com as faixas “Tempos Difíceis” e “Racistas Otários”.

Mas antes mesmo do rap chegar ao Brasil, algumas canções no estilo já tinham sido lançadas. “Deixa Isso Pra Lá” (1964) de Jair Rodrigues, “Melô do Tagarela” (1979) de Arnaud Rodrigues e Luís Carlos Miele (paródia de Rapper’s Delight deSugarhill Gang), “Mandamentos Black” (1977) e Mêlo do Mão Branca” (1984) de Gerson King Combo podem ser considerados como gênese de um estilo baseado no discurso. Outros como Rappin Hood, apontam que os repentistas nordestinos seriam os precursores do estilo no país.

Na década de 90, o rap ganha as rádios e a indústria fonográfica começa a dar mais atenção ao estilo. Os primeiros rappers a fazerem sucesso foram Thayde e DJ Hum. Em seguida, surge Racionais MCs, como principal porta-voz, e outras expressões importantes como Pavilhão 9, Detentos do Rap, Câmbio Negro, Xis & Dentinho, Planet Hemp e Gabriel, O Pensador.

O rap começava então a ser utilizado e misturado por outros gêneros musicais como o manguebeat, por exemplo, presente na música de Chico Science & Nação Zumbi.

Entenda
 O rap tem uma batida rápida e acelerada e a letra vem em forma de discurso, com muita informação. O segundo nome “MC’s” do grupo Racionais é uma abreviação de “Mestre de Cerimônias”. O MC é o porta-voz que relata, por meio de rimas, os problemas, carências e experiências das comunidades. Geralmente, o rap é cantado e tocado por uma dupla composta por um DJ ( disc-jóquei ), responsável pelos efeitos sonoros e mixagens, e pelos MCs que se responsabilizam pela letra cantada. Um efeito sonoro muito típico do rap é o scratch (som provocado pelo atrito da agulha do toca-discos  no disco de vinil). Foi o rapper Graand MasterFlash que lançou  o scratch e depois deles, vários scratchings começaram a utilizar o recurso : Ice Cube, Ice T, Run DMC, Public Enemy, Beastie Boys, Tupac Shakur, Salt’N’Pepa, Queen Latifah, Eminem, Notorious entre outros.

Rap = Ritmo e Poesia
O termo RAP é uma abreviatura em inglês (Rhytm And Poetry) que significa Ritmo e Poesia. No Brasil, 6 de agosto é comemorado o dia do Rap Nacional. 

Hip Hop
O Rap é um dos seis pilares que compõem a cultura Hip Hop, que surgiu nas comunidades jamaicanas, latinas e afro-americana no subúrbio dos EUA, nos anos 70. Os outros pilares são: MC (Mestre de Cerimônia, o porta-voz do discurso), DJ (Disco-Jóckey ou operador de disco), Beatbox (arte de reproduzir sons de bateria usando voz, boca e cavidade nasal), Breakdance (tipo de dança) e Graffiti (expressão artística urbana)

Mulheres
Se por um lado, Racionais acerta no alvo quando o tema é denúncia social e política e combate ao racismo, por outro eles escorregam quando o assunto é mulheres. Eles reproduzem nas letras tanto o machismo sutil quanto escancarado – como no caso da faixa “Mulheres Vulgares”, em que condenam certas práticas apenas por serem mulheres: “Envolve qualquer um com seu ar de ingenuidade / na verdade, por trás mora a mais pura mediocridade/ te domina com seu jeito promíscuo de ser / Como se troca de roupa, ela te troca por outro”.

Linha do Tempo

1984 – Show do Public Enemy, em São Paulo

1986 – A cultura hip hop começa a ganhar as ruas. Os primeiros shows de rap eram apresentados no Teatro Mambembe pelo DJ Theo Werneck
[começa Racionais MC’s]
1988 – as faixas “Pânico na Zona Sul” e “Momentos Difíceis” saem na coletânea de rap “Consciência Black Vol. 1” e estouram na periferia paulistana //

1991 – Álbum “Holocausto Urbano” // Estouram na Grande São Paulo e realizam dois grandes shows na Febem (casa de detenção para menores) // Prêmios melhor conjunto de RAP do ano e conjunto revelação. // participação especial no show de Public Enemy

Justiceiros são chamados por eles mesmos
Matam humilham e dão tiros a esmo
E a polícia não demonstra sequer vontade
De resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente
E por que ajudariam se eles os julgam deliquentes
E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum
Continua-se o pânico na Zona Sul.

1992 – Álbum “Escolha seu caminho” // Palestras em escolas públicas da periferia

1993 >> BOOM Nacional <<. Lançamento “Raio X Brasil” com os sucessos “Fim de Semana no Parque” e “Homem na Estrada”, hinos das periferias brasileiras. Participaram de várias campanhas do Agasalho, contra a Aids,  contra a Fome; organizaram protesto contra a data 13 de maio (Libertação dos Escravos).

1994 – Apresentação do “Rap no Vale”, no Anhangabaú, em São Paulo, acaba em confronto com a PM. Os membros são presos acusados de incitação à violência.

1997 –  Álbum “Sobrevivendo no Inferno”, primeiro feito totalmente em estúdio. Recebem prêmios “Melhor Grupo de RAP” e “Escolha de Audiência”

2002 – Duplo “Nada como Um Dia Após o Outro Dia” com os sucessos “Vida Loka I”, “Vida Loka II”, “Negro Drama”, “Jesus Chorou” e “Estilo Cachorro”

2004 –Show com Jorge Ben Jor para a gravação do DVD “Mil Trutas Mil Tretas”, nos extras existe um documentário sobre os bailes de Black music de São Paulo produzido por Mano Brown.

2006 – Lançam “Mil Trutas Mil Tretas”

2009 –  Prêmio Hútuz, criado pela Central Única das Favelas – CUFA na categoria Melhores Artistas da Década.

2012 – Clipe “Mil faces de hum homem leal” com música composta para um documentário sobre a vida do guerrilheiro Carlos Marighella, que  recebeu o prêmio de melhor videoclipe do ano no Vídeo Music Brasil.

2014 – lançam site oficial e Mano Brown também continua investindo em projetos solo.