Toda torcida que se preza “escala” seu time na arquibancada. Cada nome é “cantado”, ganhando um tratamento especial. O ritual transmite confiança aos jogadores e aquece os torcedores. O jogador, pequeno no meio de campo, parece não escutar. É nessa hora que o torcedor exibe a intimidade. “Esse aí é metido mesmo. Todo jogo é assim, fica fingindo que não escuta”. De longe, o jogador acena para a arquibancada, interrompendo o suspense. O torcedor resmunga alguma coisa, abafado pelo coro com o próximo da lista.

Essa intimidade é posta a prova todo mês de agosto. A sensação é de que outro time voltou ao campo após o intervalo. Nessa época do ano, dezenas de atletas deixam seus clubes para jogar no exterior. Em meio ao Campeonato Brasileiro, as equipes sentem o baque, mudam o rendimento em campo, a tabela se inverte.

O último grande exemplo veio nas últimas semanas, com o Corinthians, sensação do último período, campeão paulista, apontado como candidato ao título do Brasileiro.
Por mais que o talento inesgotável de Ronaldo tenha decidido partidas e proporcionado gols e lances ainda gravados na retina do torcedor, não veio com ele o sucesso do clube. O verdadeiro fenômeno surgiu antes, ainda em 2008, quando um grupo de jogadores novos se uniu e, empurrados pela torcida, superou a agonia da segunda divisão. E é esse grupo que perde agora três titulares (André Santos, Cristian e Douglas) e reservas como Lulinha.

A transferência motivou o debate sobre a saída de jogadores em meio ao campeonato. O presidente Lula, corintiano assumido, lamentou o desmanche e acenou com uma lei ou mudança no calendário, “alguma coisa” que impedisse a saída nesse período.

Desmonte
Revoltado como milhares de torcedores, o presidente desabafou, e atribuiu ao calendário europeu a saída dos jogadores daqui. De fato, há uma janela no calendário, que faz com que o final do primeiro turno coincida com o início dos campeonatos na Europa. Esse período facilita as negociações para a transferência de jogadores.

Se, por um lado, há a revolta do torcedor, há quem não se incomode com a exportação dos jogadores. Como o polêmico técnico Vanderlei Luxemburgo, entusiasta de vendas. “O clube tem que estar preparado para as perdas, na abertura da janela internacional. Essa é a realidade do futebol. Não se pode negar que a televisão é uma parceira maravilhosa e a importância dos patrocinadores, porém, o que move o futebol mesmo é a venda de jogadores”, analisava Luxemburgo.

Exportação
A janela para a Europa parece ser o menor dos males. Na verdade, desde a extinção do passe, que prendia o jogador ao clube, há um aumento na quantidade de jogadores que deixam o país. Mas, ao contrário do que se imagina, cada vez mais, a Europa tem divido espaço com outros países, como o destino dos jogadores.

Líbia, Uzbequistão, Ilhas Faroe, Chipre, Tailândia. Cada vez mais países com pouca tradição tem buscado jogadores brasileiros. No primeiro semestre deste ano, 34 atletas foram para o Vietnã. Destes, 13 foram transferidos pela Sociedade Esportiva Matsubara, clube paranaense. O Vietnã já é o terceiro destino dos brasileiros, atrás do Japão e de Portugal. O número refere-se apenas aos jogadores profissionais, sem contar os vendidos nas categorias de base.

A troca no destino vem acompanhada por uma mudança importante no perfil dos jogadores que deixam o país. “A maioria dos jogadores que saem atualmente são muito jovens e muitas vezes não têm nenhum valor comercial”, afirma o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em gestão esportiva José Antônio Barros Alves, em entrevista recente.

Há todo tipo de anúncio da internet, para atrair os jovens que sonham com uma carreira profissional. De produtos, como DVD com os melhores lances, até mesmo promessas ridículas como a de “colocação em grande clube no brasileiro desse ano”.

Ainda que estes aventureiros atraiam alguns desavisados, é nos clubes que costuma começar a trajetória até o exterior. Aí também há uma grande mudança. O Cruzeiro (MG) é um dos poucos clubes grandes com um número expressivo de exportações – em média, 15 por ano. Atualmente, os clubes que mais exportam são totais desconhecidos. Como recebem 5% do valor de cada transação, dezenas de clubes foram criados apenas para isso.
Um dos primeiros a adotar essa estratégia foi o Corinthians Alagoano, de Maceió, criado nos anos 90 com a intenção de descobrir e vender talentos. Entre outros, o clube descobriu Marcelinho Paraíba, hoje no Coritiba. Mas hoje, há dezenas de fábricas de jogadores, com linha direta para a Europa ou para os grandes clubes.
A maioria deixa o país por valores irrisórios, algo entre R$ 20 e 30 mil. Na lista divulgada no site da CBF, é possível encontrar diversos casos de jogadores vendidos no mesmo dia. Em 2007, há um clube que vendeu 10 jogadores no mesmo dia para diferentes clubes de Portugal. Uma verdadeira “baciada”.

Mesmo a venda dos nossos maiores ídolos é tida como pechincha lá fora. Em 2003, o Milan comprou o jogador Kaká, depois eleito o melhor do mundo, por US$ 8,25 milhões. Após a contratação, o presidente do Milan e ex-primeiro-ministro da Itália, Sílvio Berlusconi, afirmou: “Foi a maior contratação da história do Milan. E a preço de banana.”

Made in Brazil
Este grande negócio, que movimentou mais de 1 bilhão de dólares em 10 anos, explora a identidade do país com o esporte. “O fato de um jogador ter nascido no Brasil serve como marca de qualidade”, diz Peter Draper, ex-diretor de marketing do Manchester United. afirma. O consultor Edgar Jabbour compara com a política de exportação de matéria-prima. “É como na soja ou no café: produzimos grãos, outros países os processam e nós importamos de volta, custando muito mais.”

Na mão de empresários, atletas e adolescentes são investimentos. Como grãos ou mesmo animais. Fábio Koff, do Clube dos 13, parece lamentar o fim do passe. “Isso aqui é uma porteira aberta e não tem como segurar”, disse o dirigente.

A lei que acabou com o passe chegou a ser comparada ao final da escravidão. No entanto, assim como os negros e negras obrigados a viver nas favelas em condições comparáveis às das senzalas, o fim do passe empurrou milhares de jovens atletas nas mãos dos empresários. Seguem nas mãos de um mercado de exportação, controlado por um grupo seleto de investidores, diante dos quais, os jovens, pobres e negros em maioria, não passam de um negócio.

Os jovens sonham com uma vida melhor, digna, para si e para suas famílias. Um sonho justo, que alguns poucos conseguem atingir. Outros tantos são repatriados, depois de experiências frustrantes no exterior. Para os empresários, esses foram investimentos que não deram certo, como ações em baixa. Mais do que mudanças de datas ou limites para preservar os campeonatos, devemos lutar por uma sociedade onde nossos meninos e meninas possam brilhar.

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