
Henrique Canary, da Secretaria Nacional de Formação
“O regime interno do partido bolchevique é caracterizado pelos métodos do centralismo democrático. A união dessas duas noções não implica qualquer contradição. O partido velava para que as suas fronteiras se mantivessem estritamente delimitadas, mas entendia que todos os que penetrassem no interior dessas fronteiras deviam usufruir realmente o direito de determinar a orientação da sua política. A livre crítica e a luta de idéias formavam o conteúdo intangível da democracia do partido. (…) A clarividência da direção do partido conseguiu, muitas vezes, atenuar e abreviar as lutas de fração, mas não podia fazer mais. O Comitê Central apoiava-se sobre essa base efervescente e dela recebia a audácia para decidir e ordenar. A manifesta justeza das idéias da direção, em todas as etapas críticas, conferia-lhe uma elevada autoridade, precioso capital moral da centralização.”[2] (grifos meus, HC). Veja-se que o CC bolchevique recebia sua autoridade “para decidir e comandar” (centralismo) da “base efervescente” (democracia). Ou seja, no Partido Bolchevique, democracia e centralismo não eram polos opostos de uma contradição dialética, como sugere Moreno. Ao contrário, a democracia era a fonte da autoridade, do centralismo.
A liberdade existente dentro de um partido revolucionário não é uma concessão ao indivíduo ou às correntes internas de pensamento e suas distintas sensibilidades. Estas existem e devem seguir existindo. Mas não se trata delas. A liberdade de discussão e crítica é, antes de tudo, uma necessidade da elaboração política. O partido revolucionário impulsiona a luta e o debate político e teórico interno porque quer acertar. Assim, o próprio debate só tem sentido se conectado com as necessidades da luta real, da intervenção partidária.
“A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica.”[3]. Assim, a verdade do partido bolchevique provém dos milhares de trabalhadores que recebem a sua política e respondem a ela positiva ou negativamente, acolhem ou rejeitam seus slogans, atendem ou ignoram seus chamados. A ação das massas é o critério da verdade da política bolchevique.
A correta compreensão da relação entre centralismo e democracia nos permite determinar a verdadeira característica do Partido Bolchevique de Lenin (não a caricatura pintada pelo stalinismo): a de que se tratava de um partido extremamente centralizado, mas com enorme iniciativa na base e grande democracia em todos os seus organismos. Como explica Broué:
“De fato, nenhum argumento é mais eficaz na hora de desmentir abertamente a lenda do partido bolchevique monolítico e burocratizado do que o relato destas lutas políticas, destes conflitos ideológicos, destas indisciplinas públicas que, definitivamente, nunca são punidas. (…) Lenin, que no calor da discussão foi o primeiro a chamar Kamenev e Zinoviev de ‘covardes’ e ‘desertores’, uma vez superada esta etapa, é igualmente o primeiro a manifestar veementemente seu desejo de conservá-los no partido, onde são necessários e onde cumprem um papel difícil de substituir. No fim de 1917, o partido tolera mais que nunca os desacordos e inclusive a indisciplina, na medida em que a paixão e a tensão das jornadas revolucionárias os justificam. Enquanto há um acordo sobre o mais fundamental, ou seja, sobre o objetivo, a realização da revolução socialista, um acordo sobre os meios para realizá-la não pode surgir a não ser da discussão e do convencimento.”[4]O clima de polêmica e debate existente dentro da fração bolchevique pode ser comprovado por inúmeras e diversas fontes. Ainda em 1894, em sua polêmica com o populista Mikhailovski, Lenin afirmava:
“É rigorosamente correto que não existe entre os marxistas completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não demonstra a debilidade, mas sim a força dos sociais-democratas russos. O consenso daqueles que se satisfazem com a unânime aceitação de ‘verdades reconfortantes’, essa tenra e comovente unidade, foi substituída pelas divergências entre pessoas que precisam de uma explicação sobre a organização econômica real, sobre a organização econômica atual da Rússia, uma análise de sua verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do restante de suas superestruturas.”[5]. Mesmo na etapa inicial de construção do partido, quando enfrentava a autocracia czarista, Lenin sempre se esforçou por garantir ao partido o máximo possível de democracia interna e iniciativa de ação na base. Pierre Broué, mais uma vez, nos conta:
“Desde a época de Stalin, a maioria dos historiadores e comentaristas insiste sobre o regime autoritário e fortemente centralizado do partido bolchevique, e encontram nisto a chave da evolução da Rússia durante mais de trinta anos. No que se refere à forte centralização do partido, certamente não faltam fatos que podem dar base às suas teses. No entanto, as referências no sentido oposto são igualmente abundantes.”[6]. Não faltariam citações de Lenin, Trotski ou Broué para apoiar esse ponto de vista e aprofundá-lo. Mas não parece necessário. Por último, diremos apenas que esta visão é amplamente confirmada pelo próprio Moreno, que a precisa ainda mais, distinguindo a relação entre disciplina e democracia para cada nível da estrutura partidária:
“Na medida em que ascendemos no partido e vamos até os organismos de direção, o centralismo democrático se aplica de forma diferente. O centralismo e a disciplina são cada vez maiores. (…) Porém, na medida em que vamos descendo, a democracia é cada vez maior; quando chega à base é total, quase dá a impressão de que é um partido anarquista. O stalinismo desfigurou completamente a concepção de Lenin sobre o centralismo democrático, montando partidos monolíticos, em que, de cima até abaixo, todos pensam igual, todos fazem a mesma coisa. (…) A disciplina, quanto mais acima, mais severa; quanto mais abaixo, menos severa.”[7]. Poderia parecer que a expressão “quase dá a impressão de que é um partido anarquista” é um um mero exagero de Moreno. Opinamos que isso não é assim, que a frase é consciente e resume corretamente um dos centros da concepção bolchevique de partido. Em primeiro lugar, porque é uma afirmação cuidadosa. Moreno não diz que “é” um partido anarquista. Diz que “quase dá a impressão”. Em segundo, porque é uma afirmação correta em seu conteúdo. O problema é como entender esse “partido anarquista”. Obviamente, não se pode entendê-lo como um partido indisciplinado, inorgânico, horizontal, sem direção etc. Moreno quer dizer simplesmente que, nos organismos de base de um partido de tipo bolchevique, deve primar um clima de ampla liberdade de discussão. Todo militante revolucionário deve saber que sua opinião é muito importante para o partido, que aquilo que ele reflete de seu local de trabalho, estudo ou moradia é a matéria-prima de toda a elaboração partidária. Todo proletário que sente na pele a opressão e a exploração deve encontrar no partido leninista um ambiente oposto ao do seu local de trabalho: um ambiente onde ele é escutado, onde suas ideias podem mudar o rumo dos debates. E tudo isso com um único objetivo: encontrar a melhor política.
Os marxistas rejeitam o conceito de liberdade entendida como o “livre arbítrio” cristão. Para o marxismo, a liberdade nada mais é do que a satisfação consciente das necessidades. Assim, quando adotam o regime centralista democrático, os revolucionários não estão fazendo nada além de reconhecer a necessidade deste regime para a sua luta. Até certo ponto, pode-se dizer que quem “decide” realmente o regime do partido leninista é a burguesia e seu Estado, ou seja, os inimigos do proletariado. Os revolucionários apenas aceitam o terreno e as armas do duelo. É claro que qualquer partido revolucionário tem a “liberdade” de realizar um congresso e mudar o regime centralista democrático para um regime horizontalista, mas isso seria um ato de ilusão, e não um ato de liberdade. Nas belas palavras de Gramsci:
“Associar-se a um movimento significa assumir uma parte das responsabilidades dos acontecimentos que se preparam, tornar-se destes acontecimentos os artífices diretos. Um jovem que se inscreve no movimento juvenil socialista cumpre um ato de independência e de libertação. Disciplinar-se é torna-se independente e livre. A água é pura e livre quando corre entre as duas margens de um riacho ou de um rio, não quando se espalha caoticamente no solo ou, rarefeita, paira na atmosfera. Quem não segue uma disciplina política é por isso matéria em estado gasoso ou matéria contaminada por elementos estranhos: portanto inútil e danosa. A disciplina política faz precipitar estas sujidades e dá ao espírito o seu melhor metal, à vida uma finalidade, sem a qual não valeria a pena ser vivida. Cada jovem proletário que sinta quanto é pesado o fardo da sua escravidão de classe, deve cumprir o ato inicial da sua liberdade, inscrevendo-se no Centro Juvenil Socialista mais próximo de sua casa.”[8]. Assim sendo, a oposição “disciplina x liberdade”, “centralismo x democracia”, “discussão x ação” etc só pode ser fruto de erros práticos de conduta (erros bonapartistas, anarquistas etc) ou erros teóricos na compreensão da própria natureza do centralismo democrático e do conceito marxista de liberdade. Em Lenin, no entanto, tal oposição nunca existiu.