Presença da Otan e caráter conciliatório do governo provisório, porém, podem colocar tudo a perderSeis meses após o início da insurreição popular contra a ditadura de Muamar Kadafi, finalmente os rebeldes ocupavam as ruas da capital Trípoli nesse dia 21 de agosto. Ainda que Kadafi não tivesse sido encontrado e que combates estivessem sendo travados em alguns locais isolados da cidade, enquanto fechávamos esse texto a situação parecia já completamente definida.
Foi um desfecho rápido que surpreendeu a muitos. Nos últimos dias antes da queda da capital, os rebeldes tiveram um rápido impulso, avançando em poucas horas o que não conseguiram por meses. Com o apoio aéreo da Otan, conquistaram a cidade petrolífera de Brega, cujo controle havia mudado de mãos sucessivas vezes durante a guerra. Tomaram também a cidade estratégica de Zawiya, o que isolou a capital e as forças pró-Kadafi, enquanto outras cidades mais próximas também caíam e o cerco se acirrava.
Tão surpreendente quanto o rápido avanço rebelde foi a facilidade com que os combatentes entraram em Trípoli. Houve pouca resistência às tropas anti-kadafi até mesmo quando os combatentes tomaram o quartel da então temida brigada Khamis, formada por soldados de elite de Kadafi, que fugiram. Os poucos combates que ainda continuavam no decorrer do dia 22, limitavam-se a alguns locais, incluindo a fortaleza de Kadafi, Bab al-Azizya, onde se acreditava que o ditador ainda estivesse. Combatiam ainda pela própria vida e não mais pelo regime.
Ao que parece, o avanço da insurgência sobre Trípoli se deu inicialmente através da infiltração de rebeldes na capital. Lá dentro, teriam apoiado a sublevação do povo contra o ditador. O porta-voz dos rebeldes, Ahmed Omar Bani descreveu à imprensa, ainda no dia 20, o ânimo da população das cidades vizinhas à Trípoli. “Os moradores quebraram a barreira do medo e começam a nos ajudar, com coquetéis Molotov, bombas caseiras e armas”, disse. Apoio popular e o esgotamento das forças militares de Kadafi podem ter sido decisivos para a tomada da capital, minando por dentro a resistência do ditador.
Em Benghazi, centro da rebelião líbia, e na histórica Praça Verde, onde Kadafi realizava seus comícios na capital, rebeldes e a população se encontravam para comemorar a queda do ditador.
Mais um capítulo da revolução árabe
A revolta popular na Líbia irrompeu na esteira das revoluções árabes que agitaram o Norte da África no início do ano e que derrubaram as ditaduras da Tunísia e do Egito, se espalhando pela região. No país de Kadafi, a realidade não era distinta às dos demais países sublevados. Uma população majoritariamente jovem, índices de pobreza alarmantes e desemprego que superam os 30%. E que encontravam pela frente uma ditadura sanguinária que praticamente anulava qualquer perspectiva de melhoria das condições de vida.
Tendo Benghazi como epicentro, as manifestações logo tomaram conta do país, atingindo inclusive a capital. A resposta de Kadafi foi rápida e brutal. A repressão do ditador incluiu bombardeios em cidades e até mesmo bairros de Trípoli. A intensidade da repressão rachou o exército líbio e conferiu um caráter de guerra civil ao conflito. A disputa passava ao terreno militar.
Baseados em Benghazi, os manifestantes improvisaram um exército composto por uma maioria de civis. Mesmo armados de forma precária, com AK 47 e pistolas, conquistaram várias cidades até esbarrarem no poderio bélico de Kadafi. Contando com soldados de elite e mercenários bem treinados, além de grande poder aéreo, o ditador recrudesceu a repressão à revolta e conseguiu barrar o avanço rebelde. Chegou a encurralar a oposição em Benghazi e preparava um ataque arrasador, quando entrou em cena a intervenção da Otan.
O papel da Otan
Nas primeiras semanas de guerra civil, os rebeldes rechaçavam qualquer tipo de intervenção estrangeira. Manifestações em Benghazi, por exemplo, se mostravam contrárias à ação das potências imperialistas. Seis soldados britânicos chegaram a ser detidos pelos rebeldes enquanto sobrevoavam zonas controladas pela insurgência. Com o passar dos dias, no entanto, a superioridade bélica do ditador mudou a correlação de forças na guerra civil.
Os imperialismos norte-americanos e europeus se aproveitaram dessa mudança para impor uma intervenção armada. A famigerada autorização concedida pelo Conselho de Segurança da ONU, para a imposição de uma “zona de exclusão aérea”, foi o sinal verde que se traduziu em armas, apoio aéreo e bombardeios contra Kadafi.
Sob a desculpa da “proteção de civis”, a intervenção da Otan tinha um sentido claro: controlar a revolução líbia e cooptar o Conselho Nacional de Transição, a direção política dos rebeldes.
Uma revolução em aberto
A queda de Kadafi foi uma vitória da insurreição popular que, assim como nos outros países árabes, contava com um caráter democrático. Trata-se ainda de uma rebelião que derrubou uma ditadura pró-imperialista.
O ditador líbio, antes um representante do nacionalismo árabe, há muito não tinha qualquer posição contrária ao imperialismo. Desde a década de 1990, o país se abriu ao Ocidente e escancarou o caminho para as multinacionais do petróleo. Sob Kadafi, a produção de petróleo era totalmente controlada pelas multinacionais petroleiras como a Shell e a BP.
Durante todo o conflito, parte da esquerda, representada principalmente por Chávez, Fidel e Ortega, e no Brasil pelo PCdoB, se colocaram de forma incondicional ao lado de Kadafi. Desenharam o fantasioso cenário de um governo antiimperialista sendo atacado pelos EUA, responsável, por sua vez, por insuflar uma revolta artificial contra o ditador. Escondem de forma deliberada o caráter pró-imperialista de Kadafi nos últimos vinte anos. Vão afirmar agora, como já vem fazendo Chávez, que a insurreição não passa de um “massacre imperialista”, a fim de negar que a sua posição acabou derrotada, junto com Kadafi.
Mas qual será o futuro da Líbia? Apesar da ação da Otan, concretamente estão sendo os rebeldes que ocupam Trípoli. A direção do Conselho de Transição já informou que não permitirá a permanência de bases da Otan no país pós-Kadafi. Por outro lado, as multinacionais já se articulam. Em negociação com o governo provisório, a italiana Eni já enviou técnicos ao país para restabelecer plenamente a produção de petróleo.
Com Kadafi fora de cena, abrem-se duas perspectivas ao país. Continuar com um governo pró-imperialista, ou avançar a revolução, superando a atual direção do conselho e expulsando a Otan do país para tornar a Líbia de fato independente.
A queda da ditadura Kadafi pode jogar um peso decisivo na revolução árabe em marcha, tantos nos países onde as ditaduras já foram derrubadas, como no Egito e na Tunísia, como em países em que a população ainda luta contra um regime ditatorial, como na Síria de Bashar Al Assad, ou no Iêmen. Pode ainda dar novo impulso à luta do povo palestino contra Israel.