Soraya Misleh, de São Paulo

O que os analistas esportivos consideravam improvável aconteceu: Marrocos está na semifinal da Copa, após derrotar a Espanha nas oitavas de final e Portugal, nas quartas. Uma vitória histórica: pela primeira vez, uma seleção árabe e africana se impõe entre as quatro melhores do mundo. A comemoração não poderia ser outra, senão acompanhada da bandeira palestina, destaque nesse megaevento marcado por protestos justos contra a violação de direitos humanos.

De Jerusalém a Gaza, palestinos celebraram o feito. A repressão sionista, em meio à contínua Nakba (catástrofe com a formação do Estado sionista em 1948), tentou melar a festa. Para estes, até comemorar é resistência.

A próxima partida acontece nesta quarta-feira (14/12) contra a França, que também tratou de reprimir a comunidade marroquina em festa na Avenida Champs-Élysées. No município de Vitória, na Espanha, a derrota foi precedida de outra expressão de racismo e xenofobia: um javali ensanguentado foi deixado em frente a uma mesquita, junto a um recado: “Vamos caçar os mouros.” A resposta veio em campo. Que se repita na quarta-feira.

França e Espanha colonizaram o Marrocos na primeira metade do século XX, dividindo-o em áreas de influência. Essa situação perdurou até a independência do país árabe em 1956, o qual nas duas últimas décadas do século XIX já havia resistido à sanha colonial europeia. Já o Saara Ocidental seguiu sob colonização espanhola por quase cem anos, até 1975, a qual deu lugar à ocupação marroquina ilegal. Esta já dura 46 anos.

A presença da bandeira palestina é constante. Além de expressão do repúdio às normalizações em curso na região do Oriente Médio e Norte da África com o Estado racista de Israel, os povos árabes celebram o simbolismo de uma vitória histórica com ares de “vingança contra o colonizador europeu”.

Bandeira Palestina em comemoração após a vitória da seleção do Marrocos sobre a Espanha, no último dia 6

Moeda de troca

No caso do Marrocos, a normalização com Israel anunciada em 10 de dezembro de 2020 está a serviço de dupla opressão nacional: contra os palestinos e contra os saarawis. O regime retomou as relações diplomáticas e econômicas com Israel rifando os palestinos, em troca do “reconhecimento” pelo imperialismo estadunidense da soberania do Marrocos sobre território que ocupa. E prometeu, segundo reportagem do El País na data, estabelecer “laços plenos” com o Estado de apartheid sionista “o mais rápido possível”.

A normalização do Marrocos com o Estado racista de Israel escancarou, assim, que os palestinos sempre foram nada além de moeda de troca para esses regimes em que, por óbvio em ditaduras, a população não tem voz. O modelo apontado por um refugiado da Nakba (catástrofe palestina desde a formação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada), que costuma dizer que os regimes árabes os “venderam” se mantém. Em meio à expansão colonial agressiva, apartheid e limpeza étnica com que se enfrentam os palestinos há mais de 75 anos, levantar a bandeira e abraçar incondicionalmente a resistência heroica e histórica é urgente. Que o exemplo de torcedores e jogadores na Copa seja seguido internacionalmente: crimes contra a humanidade não devem ser normalizados.

A matéria do El País traz a declaração de Trump em final de mandato em sua conta no twitter sobre a contrapartida ao malfadado acordo entre Israel e Marrocos: “Assinei hoje uma proclamação reconhecendo a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental. Uma proposta de autonomia séria, confiável e realista do Marrocos é a ÚNICA base para uma solução justa e duradoura para a paz perdurável e a prosperidade!

Utilizava, assim, também segundo a reportagem, as mesmas expressões – “autonomia séria, confiável e realista” – do regime marroquino desde 2007, quando apresentou a proposta indecente de soberania sobre o território saarawi ocupado na Organização das Nações Unidas (ONU). Proposta indecente a que fez coro ninguém menos que o governo espanhol no dia 18 de março último, não sem enfrentar protestos de sua própria população.

Como publicado pelo Brasil de Fato em 20 de janeiro de 2021, a jornalista brasileira Laura Daudén, diretora do documentário Ocupação S.A., sobre o Saara Ocidental, fala sobre o papel da Espanha durante e após a colonização para que se compreenda a luta dos saarawis: “Primeiro, essa é uma história da traição, em que uma ex-metrópole entrega sua colônia para outros dois países [Marrocos e Mauritânia] de maneira absolutamente ilegal e à revelia dos direitos humanos”, lembra.

A reportagem destaca que a Espanha havia se comprometido “com o processo de autodeterminação” dos saarawis, que “deveria se concretizar com um plebiscito mediado pelas Nações Unidas. Até hoje, esse plebiscito nunca ocorreu, e empresas espanholas continuam tirando proveito das riquezas do Saara”.

Ainda conforme publicado no Brasil de Fato, o território é “rico em fosfato e possui uma das zonas de pesca mais abundantes do planeta. Mas o espólio não se limita a esses recursos: até a areia da praia de Mogán, nas Ilhas Canárias, na Espanha, foi roubada do Saara”.

Hoje, o que se vê é uma proliferação de empresas internacionais, espanholas, europeias, americanas, de todas as partes”, diz Daudén na reportagem. “Então, o poder econômico capitalista faz as vezes de diplomacia e serve como reforço dessa ocupação“, aponta.

Por ocasião da normalização em prol da opressão de dois povos, as campanhas de solidariedade à Palestina e do Saara Ocidental no Reino Unido publicaram uma declaração conjunta, em que conclamavam: “Diante deste acordo, a sociedade civil global deve redobrar seus esforços para se solidarizar com o povo palestino e saarawi até que a liberdade, a justiça e a igualdade sejam alcançadas.

Que a bandeira palestina, que sintetiza todas as lutas justas contra a opressão e exploração no mundo, se erga novamente na próxima quarta-feira. E o gol de placa venha com o fortalecimento da solidariedade chamada por essas campanhas.

Atualização para o site do PSTU de artigo publicado originalmente no Monitor do Oriente.