“Quando eu tinha 5 ou 6 anos, fui assediada por um tio até a adolescência. Ele me tocava a genital e pedia que eu o tocasse. Dizia que eu não poderia contar para os meus pais senão ele o mataria”, diz S., 55 anos.
S. é professora numa escola pública de São Paulo e ativista. Como a maioria das mulheres, ela, mesmo sendo só uma criança, sentiu- se culpada. A ideologia machista está arraigada desde os primeiros anos de vida. “Sofri muito, porque me achava culpada e indigna do amor de meus familiares ou de qualquer outra pessoa que viesse a saber da minha história”, relatou.
A família de S. diminuiu o problema: “Na adolescência, contei para meus pais e eles minimizaram os fatos. Não deram atenção e nada aconteceu. Minha mãe chegou a insinuar que eu poderia ter dado abertura para que isso acontecesse. Essa história destruiu minha infância e minha adolescência, me sentia uma criança suja e nojenta”.
Uma vida toda de sofrimento
Seu sofrimento não acabou aí. Aos 21 anos, ela foi estuprada: “Fui numa festa em Niterói, num condomínio de classe média alta. Eu adormeci numa poltrona. Quando acordei, só estávamos eu e o dono da casa, um homem de meia idade. Ele fez com que todos fossem embora, e eu não percebi. Fui estuprada. Quando ele adormeceu, saí escondida da casa no meio da madrugada, peguei um ônibus e, chorando, fui para um hospital, pois eu tinha dores pelo corpo pela luta que travamos”.
Infelizmente, muitas vítimas não denunciam por medo ou vergonha. Nas delegacias e hospitais, não é raro que sejam maltratadas e culpabilizadas. S. conta que, no hospital, ninguém lhe deu atenção: “Voltei para casa me sentindo um lixo e tinha certeza que a culpa era minha, me condenando por tudo e pensando que eu procurei aquela situação”.
Tempos depois, S. começou a trabalhar no hospital municipal do Campo Limpo. Lá, foi assediada por um diretor. “Ele passou a me assediar quase diariamente. O ponto culminante foi ele enfiar a mão dentro da minha blusa. Discuti com ele e, a partir daí, fui sofrendo pequenas perseguições como retirada de pessoas para me ajudar, me obrigando a fazer trabalho triplo”.
Uma sociedade doente
Nenhum caso de estupro é fato isolado. Vivemos num mundo em que a impunidade reina. No Brasil, um deputado como Bolsonaro faz apologia aberta ao estupro e fica impune.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a cada 12 minutos, uma mulher é estuprada. Isso considerando só os casos que são notificados. Estima-se que apenas 10% a 30% das vítimas denunciam. Além disso, 15 mulheres são mortas por dia pela violência machista. Grande parte são jovens (54%), e a maioria (61%) é de negras.
Crimes contra mulheres, negros e negras das periferias e LGBTs acontecem todos os dias pela mão do Estado, seja diretamente pela polícia, seja pela disseminação da ideologia da opressão e pela impunidade e descaso completo com o tema. Evidentemente, nada disso tira a responsabilidade dos criminosos. Eles devem ser punidos exemplarmente. Para isso, porém, é preciso dinheiro e ações concretas.
A violência contra a mulher é ainda pior para as trabalhadoras e pobres que dependem do Estado. A Lei Maria da Penha, que foi a principal política dos governos petistas para as mulheres, não pode ser plenamente aplicada por falta de estrutura. Menos de 10% dos municípios brasileiros têm delegacias especializadas, e pouco mais de 1% com casas-abrigo. Seria possível, já hoje, construir centros de referência e casas abrigo, realizar campanhas contra a violência, desmistificar a cultura do estupro, ampliar o atendimento médico e psicológico, entre outras medidas. Com 1% do PIB anual investido no combate à violência contra a mulher, tudo isso poderia se tornar realidade.
No entanto, os governos do PT investiram, em média, R$ 0,26 por mulher por ano. Enquanto isso, os banqueiros e megaempresários receberam milhões em empréstimos e isenção de impostos. Sem falar no pagamento da dívida externa.
O governo Temer, seguindo a mesma política, mal assumiu e acabou de vez com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que já tinha perdido seus status de ministério, ao fechar o Ministério dos Direitos Humanos.
Já o Congresso aprovou, na Comissão de Constituição e Justiça, o PL 5069 de Eduardo Cunha (PMDB). Entre outras coisas, o projeto permite que os médicos não só não realizem aborto em vítimas de estupro – o que já é garantido por lei – como sequer orientem a vítima a fazer algum procedimento. Ainda deixa brecha para que o médico que fizer isso seja punido.
Alicerces da opressão
A história do Brasil é marcada pela combinação machismo- racismo-exploração, que extermina a classe trabalhadora brasileira, em especial a sua maior parcela: feminina e negra. A violência machista vem desde a colonização, da miscigenação forjada nos estupros de mulheres negras e indígenas, passando pela constante reprodução da ideia de que as mulheres são objetos e propriedade dos homens e do Estado.
O machismo é parte essencial da sociedade capitalista, que se aproveita das diferenças para impor uma condição de inferioridade à mulher e superexplorá-la. O machismo só vai acabar com o fim da sociedade de classes pelas mãos de mulheres e homens trabalhadores. Enquanto isso, é preciso continuar combatendo todos os dias e não permitir que situações de opressão, das mais banais até as mais hediondas, sigam acontecendo.
Às ruas, companheiras!
As mulheres estão protestando nas ruas. Depois do episódio do estupro coletivo no Rio, começaram a acontecer atos por todo o país.
Para o PSTU, a luta contra toda forma de opressão é um princípio. Estamos junto com as milhares de mulheres que estão lutando nas ruas. Mais do que isso, chamamos todos os trabalhadores e a juventude, homens e mulheres, a se unirem a esta batalha para gritarmos: “Basta de machismo e violência! Basta de estupros! Fora todos que oprimem e exploram as mulheres trabalhadoras!”
Fortalecendo a organização coletiva, crescerá a resistência. O medo encontra morada no isolamento. Juntas, a coragem cresce e a luta se fortalece.
Publicado no Opinião Socialista nº 519