Dois pensamentos habitam o senso comum sobre dívida externa: “devemos honrar nossas dívidas” e “se não pagarmos a dívida externa, ficaremos isolados e não atrairemos mais os capitais de que nosso país tanto precisa”. Para o PSTU, a dívida não pode, nem deve ser paga. Tentaremos demonstrar na série ‘As amarras da dívida externa’* que essa dívida não é nossa; que, além do imperialismo e seus capitalistas, apenas uma parcela ínfima da população se beneficia com ela, apesar de ser paga com a exploração dos trabalhadores; que ela é o resultado de o Brasil ser uma semicolônia do imperialismo; e que ela é um dos mecanismos de dominação com que contam os estados imperialistas e seus capitalistas para a reprodução desta dependência

É chamada “dívida externa do Brasil’ a soma de todas as dívidas que “residentes no Brasil” possuem com “residentes no exterior”. Mas quem são esses residentes no Brasil e no exterior?

São chamados residentes no Brasil não apenas os brasileiros ou as empresas de propriedade de brasileiros, mas também as empresas de capital estrangeiro instaladas no território nacional. Assim, uma dívida da filial de uma empresa multinacional instaAlada no Brasil com sua matriz nos EUA, por exemplo, é considerada, por este critério, dívida externa do Brasil com os EUA, apesar de ser uma transação que ocorre dentro do mesmo grupo empresarial.

Em outras palavras, a “dívida externa do Brasil” é a soma das dívidas das empresas instaladas no território brasileiro (de capital estrangeiro ou nacional), das pessoas físicas e dos governos (federal, estaduais e municipais) com empresas no exterior, governos estrangeiros e instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, o BID, etc.

Esta reformulação nos ajuda a enxergar a armadilha da expressão “dívida externa do Brasil”. Um país não é um sujeito, não toma decisões, não tem interesses próprios, não exporta nem importa, não empresta nem toma emprestado. É apenas o território político-econômico em que essas decisões são tomadas por inúmeros agentes, privados e públicos, que atuam em seu interior. Estes, sim, têm interesses próprios. Essa expressão é freqüentemente utilizada como forma de nos convencer de que essas dívidas são de todos e que somos responsáveis por elas.

Sobre o critério das teorias econômicas burguesas
Essas teorias consideram as transações econômicas internacionais (comércio exterior, empréstimos e investimentos estrangeiros, etc.) como sendo realizadas entre países, em vez de entre agentes, como empresas, trabalhadores, governos etc. Com isso, tendem a ocultar as verdadeiras relações econômicas e sociais.

Este entendimento significa, por um lado, considerar que as lutas entre as classes e no interior das classes seriam secundárias perante o embate entre os países. Por outro lado, significa ignorar a internacionalização dos capitais, cujos interesses ultrapassam as fronteiras nacionais de seus países de origem, ao penetrar em outras economias, passando a agir não apenas de fora, mas desde dentro dos países receptores desses capitais.

Para os marxistas, a luta de classes ocupa a posição central na explicação das questões econômicas e sociais. A luta entre os países é, na verdade, uma expressão distorcida da luta de classes. A interferência da ação do capital estrangeiro nas economias nacionais internacionaliza a luta de classes e reforça a necessidade da unidade dos trabalhadores de todo o mundo. Coloca também a questão da independência econômica e política (luta antiimperialista) dos países dependentes como um dos elementos fundamentais da luta de classes no planeta.

Como e com que recursos a dívida externa é feita e paga?
As transações econômicas internacionais são negociadas em moedas estrangeiras aceitas internacionalmente (dólar, por exemplo). Como as transações econômicas internas à economia brasileira são realizadas em moeda nacional, os dólares que ingressam no Brasil, fruto de exportações, empréstimos, investimentos, etc., ficam em posse do Banco Central e vão constituir as “reservas internacionais do país”.

Uma empresa que tenha adquirido um empréstimo internacional recebe, em troca, o valor em reais correspondente, através de uma operação de câmbio, para utilizá-los no interior da economia brasileira.

Simetricamente, quando uma dívida é paga, o tomador dos empréstimos converte seus reais em dólares, deduzindo os recursos das “reservas internacionais”. Ou seja, quando entram novos recursos em dólares, ocorre uma elevação das “reservas cambiais” e, quando saem recursos monetários do Brasil, há uma diminuição dessas reservas.

Dívida externa, responsabilidade de todos?
A questão das reservas é fundamental para a compreensão do problema da dívida externa. Se estão muito baixas, isso pode comprometer a capacidade dos residentes no Brasil, endividados no exterior, de pagar suas dívidas. Não porque estes não tenham os recursos para pagar, mas porque não têm como convertê-los em dólar ou em outra moeda forte.

O pavor dos investidores internacionais é não haver reservas suficientes para que possam colher os frutos de seus investimentos na economia brasileira. Seu principal artifício para escapar a este problema é impor ao conjunto da sociedade, em especial aos trabalhadores, a responsabilidade por manter reservas em patamares “seguros”. Daí a importância de afirmar que a dívida externa é do Brasil, ou seja, responsabilidade de todos.

Esta imposição utiliza principalmente três recursos para aumentar as reservas. Um deles é a concessão de privilégios ao capital estrangeiro, de forma a tornar seu ingresso mais atrativo. Assim, diminuem-se os impostos ao capital estrangeiro, aumentam-se os juros para atrair capital especulativo, atacam-se salários e direitos trabalhistas e muda-se a legislação para facilitar a remessa de lucros, royalties e outras rubricas, etc.

O segundo recurso é o da adoção de políticas econômicas para melhorar o saldo da balança comercial (diferença entre importação e exportação). Para isso, são dados incentivos às exportações, aumenta-se o grau de exploração dos trabalhadores para que as empresas daqui possam competir melhor no exterior, devasta-se o Pantanal e a Amazônia para plantar soja ou criar gado para exportação e implementam-se políticas econômicas recessivas para reduzir o consumo e a produção, de forma a conter as importações, entre outras medidas.

O terceiro recurso é o endividamento público. Quando as reservas alcançam níveis que podem comprometer os pagamentos internacionais, os governos lançam mão de empréstimos internacionais, em geral com o FMI, o Banco Mundial ou governos dos países imperialistas. Junto com esses empréstimos vem a imposição de cláusulas condicionantes que visam adaptar a economia e o Estado aos interesses dos investidores internacionais. Posteriormente, para pagar a dívida externa pública, joga-se todo o peso sobre o conjunto da sociedade, através do aumento de impostos e dos cortes nos gastos sociais e investimentos.

Naturalmente, os investidores internacionais não podem realizar isso diretamente. Necessitam de governos, congressos e judiciários subservientes para que seus interesses sejam defendidos e implementados.

* Este artigo é o primeiro da série. O próximo tratará da relação entre o caráter dependente do capitalismo brasileiro e a dívida externa.

Post author João Valentim, do Rio de Janeiro, e Cristiano Monteiro, de São Paulo
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