Em meio à crise, setores acreditam que empresas e governos imperialistas poderiam se unir para regular e reduzir seus lucros e criar uma ordem mundial e um capitalismo mais humanosA crise econômica que está iniciando tem um conteúdo histórico. Já é claramente a mais grave do capitalismo desde 1929. Seu curso ainda não está claro. Pode levar a uma recessão importante, seguida de novos ciclos de crescimento com auges mais frágeis e crises mais graves. E pode levar também a uma depressão semelhante à de 1929.

De uma forma ou de outra, é uma crise com um profundo significado econômico, social, político e ideológico. A situação política está se modificando ao seu compasso. Um terremoto ideológico fez desmoronar o edifício montado pelo neoliberalismo. A propaganda capitalista da “morte do socialismo” está vindo abaixo.

Mas ainda não existe uma alternativa clara a vista, nem no movimento real das massas trabalhadoras nem em termos ideológicos.

O stalinismo foi profundamente atingido pela crise do leste europeu, embora seus remanescentes (os Partidos Comunistas que restaram) possam tentar retomar algum espaço. O nacionalismo burguês, como Chávez, e os governos de frente popular do continente, como os de Lula e Evo Morales, apesar de alguns já não viverem mais o auge de seu prestígio, vão tentar se apresentar como alternativas.

Por este motivo, é necessário trazer para o debate as propostas que já estão circulando nestes círculos do reformismo de centro-esquerda. A mais importante delas é, sem dúvida, a de um novo Bretton Woods.

Essa é a proposta de Ignácio Ramonet, do Le Monde Diplomatique e um dos fundadores do Fórum Social Mundial. “Hoje o mundo tem de dotar-se de uma nova arquitetura financeira internacional, um novo Bretton Woods que inclua países como China, Índia, África do Sul, Brasil e México”, afirma Ramonet.

Essa também foi a conclusão da Conferência Internacional de Economia Política, patrocinada pelo chavismo e recentemente realizada em Caracas. A declaração dessa conferência afirma: “A necessidade de reconformar a arquitetura econômica e financeira internacional é hoje ineludível. Dentro de tal perspectiva se inscreve a necessidade de uma saída pós-capitalista, denominada pela Venezuela como Socialismo do Século XXI”.

A brutal crise que se inicia exige uma resposta. Exige a ruptura com o capitalismo. No entanto, os setores mais importantes do reformismo defendem o mesmo de sempre: um capitalismo mais humano, com uma nova arquitetura financeira.

Os regulacionistas
Existem correntes críticas ao FMI e ao neoliberalismo que apontam como alternativa um Estado capitalista com mais ênfase no investimento social. Esses setores, como Ramonet, se apóiam numa corrente de pensamento econômico: a regulacionista.

Essa corrente surgiu na França, na década de 1970, como tentativa de síntese do marxismo e da economia burguesa keynesiana. Afirma que é possível estabelecer regulações econômicas (internacionais, entre as empresas, a partir do Estado e na organização do trabalho) que permitam ao capitalismo evitar as crises e se humanizar. Segundo essa corrente, a crise atual é uma crise de regulação e não uma crise clássica de superprodução, agravada por um crack financeiro. Bastaria, portanto, encontrar as regulações certas e aplicá-las para sair da crise.

Mais uma utopia reacionária
Falar de um novo Bretton Woods significa reivindicar um novo acordo interimperialista que ponha ordem no caos criado pela crise econômica. Os reformistas do tipo Ramonet criaram o Fórum Social Mundial sob o lema “um outro mundo é possível”, dentro do capitalismo. Agora, seguem batendo na mesma tecla, com algo semelhante a “um outro Bretton Woods é possível”.

Acreditam em um acordo entre os países imperialistas, que crie um capitalismo mais humano, que inclua China, Brasil, Índia, México, África do Sul. A idéia é mais ou menos a seguinte: todos esses governos se sentam à mesa, negociam até chegar a um consenso para reordenar o mundo em benefício de todos.

A declaração da Conferência de Caracas tem o mesmo sentido: “Em escala global, deve se continuar com as demandas para uma profunda reforma do sistema monetário financeiro internacional, que implique a defesa das poupanças e a canalização das inversões para as necessidades prioritárias dos povos”. Esse novo Bretton Woods deveria também fazer com que o capitalismo invista mais em gastos sociais. Como afirma a declaração de Caracas: “Em um momento crítico como o atual, as políticas nacionais e regionais devem dar prioridade aos gastos sociais, e proteger os recursos naturais e produtivos. Os Estados devem introduzir medidas urgentes de regulação financeira para proteger a poupança, seguir impulsionando a produção e combater o perigo de descontrole através de imediatos controles de câmbio e de movimentos de capitais”.

Trata-se de uma ideologia reformista, uma utopia reacionária. O capitalismo vai buscar sair de sua crise como sempre, pela via de descarregar seus custos sobre os trabalhadores e países semicoloniais e coloniais.

Não existe forma de convencer as grandes empresas a reduzir seus lucros e “investir no social”, muito menos agora. Como sempre, vão reduzir salários e demitir.

Não há como convencer os governos imperialistas a não explorar os países dominados. Vão usar a crise para concentrar e centralizar ainda mais o capital, absorvendo empresas em crise nos países dominados, impondo a baixa no preço das matérias primas, cobrando os juros das dívidas.

Pensar algo diferente é deixar de entender o capitalismo como um sistema de produção voltado ao lucro. É acreditar que basta mudar regras e colocar gente mais humana nas empresas e no Estado para acabar com a injustiça. Só que a injustiça é parte do sistema capitalista.

Um novo Estado de bem estar social?
O período após a segunda guerra ficou conhecido como Estado de bem-estar social, no qual os trabalhadores passaram a ter aposentadorias, férias e 13º salário, entre outros. Mas nada disso veio de um capitalismo humano. Foram conquistas, frutos dos grandes processos revolucionários que sacudiram o mundo na esteira de segunda guerra. Naqueles dias, o poder esteve à beira de ser tomado pelos trabalhadores nos grandes países imperialistas da Europa – como França e Itália – e novos Estados operários surgiram, no leste europeu e na China. A aliança do imperialismo ao stalinismo protegeu o capitalismo dessa grande onda revolucionária. Mas foi necessário fazer concessões, como essas do Estado de bem-estar social.

Assim que foi possível, como em todo o período de globalização, essas conquistas passaram a ser atacadas pelos governos imperialistas, fossem de direita ou social-democratas. Hoje não existe nenhum sinal de que as grandes empresas, justo na crise atual, queiram voltar atrás. Esperar que governos como Brown, da Inglaterra, do PSOE, da Espanha, ou um possível Obama vão atacar os lucros das empresas é uma nova ilusão a ser vendida à classe trabalhadora. Estes são governos burgueses, que defendem os interesses da classe que representam. Basta ver a reação diante da crise, enchendo os bolsos dos banqueiros.

A relação entre os Estados imperialistas
Um novo Bretton Woods é também reivindicado por governos imperialistas europeus como Sarkozy, da França. É significativo que os reformistas que defendem essa proposta ataquem duramente Bush, mas poupem o imperialismo europeu. No caso de Ramonet, existe um longo histórico de capitulações aos governos da social-democracia, ou seja, ao imperialismo europeu.

Todos esses reformistas cultivam também grandes expectativas na eleição de Obama. Esperam da União Européia uma alternativa social e que a derrota de Bush abra a possibilidade de as relações entre os países sejam definidas pela vontade de ajudar os povos, além de gentileza e amabilidade.

Isso não é possível na relação entre os países imperialistas e os dominados, como já vimos. Mas tampouco pode ser mudada com tranqüilidade entre os países imperialistas.

Bretton Woods foi possível pela hegemonia econômica e militar do imperialismo norte- americano. Hoje a realidade é muito mais contraditória. Pela primeira vez desde a segunda guerra, os EUA têm sua hegemonia econômica colocada em questão pela profundidade da crise e por ser o epicentro da própria crise. Mas não existe neste momento nenhuma outra potência que ameace realmente seu domínio. Nem a dividida Europa, e muito menos o Japão.

Além disso, a superioridade militar norte-americana é brutal. Isso exclui a possibilidade de os imperialismos resolverem rivalidades com o recurso das duas guerras mundiais.

Essa situação até agora permitiu que os EUA sigam se beneficiando de sua posição hegemônica mesmo sem ter a liderança econômica de antes. O caráter cada vez mais parasitário dessa exploração é incrível: os EUA funcionam como uma imensa aspiradora da mais valia mundial, financiando seus gastos muito acima da capacidade de sua economia, com uma injeção de capital de três bilhões de dólares por dia. Outra expressão disso é que o dólar segue sendo a moeda mundial, apesar de toda a crise financeira.

Até quando isso poderá seguir? Essa é uma resposta que não poderá ser dada pelos reformistas do novo Bretton Woods. O governo dos EUA – seja Obama, seja McCain – defenderá antes de mais nada os interesses de sua burguesia. Só a evolução da própria crise – e suas imprevisíveis conseqüências na luta de classes – poderá alterar o papel do dólar na economia e a relação entre os países.

Um exemplo pode ser a reunião dos governos imperialistas convocada para o 15 de novembro. É improvável que se consiga, ainda no início da crise, qualquer solução real para uma nova arquitetura financeira. Ao contrário do Bretton Woods original, a realidade não definiu os ganhadores e os perdedores.

É preciso apontar um programa anticapitalista
A utopia reacionária de um novo Bretton Woods serve para os reformistas esconder que a única possibilidade de mudança real é a ruptura com o capitalismo. Durante a crise de 1929, a URSS (mesmo travada pela burocracia stalinista) crescia a taxas fantásticas.

As grandes crises políticas que surgirão da situação econômica que está se abrindo abrem a possibilidade de que o movimento de massas entre em uma trajetória anticapitalista.

Não existe nenhum esquema que assegure que crise econômica provoque ascensos revolucionários. Uma crise pode, ao contrário, trazer desalento e passividade. No entanto, abre-se também uma outra possibilidade, que não existiria em períodos de estabilidade econômica: o de grandes enfrentamentos na luta de classes, que podem levar a insurreições e revoluções.

A esquerda terá um grande desafio: o de dotar esse movimento de um programa revolucionário, anticapitalista. Que parta das reivindicações mais sentidas pelos trabalhadores, como a luta contra as demissões, e avance para a expropriação dos bancos e das grandes empresas multinacionais e nacionais sob controle dos trabalhadores. Que defenda a ruptura com o imperialismo e seus organismos de dominação como o FMI e Banco Mundial e o não pagamento das dívidas públicas. Que coloque a planificação da economia para suprir as necessidades dos trabalhadores e da população e não de garantir os lucros de uma minoria ínfima de exploradores. Que aponte a perspectiva socialista como única saída de fato ao abismo a que o capitalismo está nos levando.

A utopia do “outro mundo possível” dentro do capitalismo já era reacionária no início dos anos 2000, quando foi criado o Fórum Social Mundial. Muito mais agora em que a brutal crise econômica que se inicia vai exigir um programa de ruptura com o capitalismo como uma necessidade imediata em muitos países.

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