Mãe de DG participa de protesto

Quando a periferia sangra pelas mãos das UPPs, ela se incendeia com indignação; foi o que aconteceu com Amarildo, Douglas, Claudia e DG

No último dia 21, Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, foi mais um negro assassinado pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de janeiro (RJ). A vítima, que era dançarino do programa Esquenta, da Rede Globo, foi encontrada com sinais de tortura e baleado numa creche no morro Pavão-Pavãozinho. A polícia, num primeiro momento, alegou que o dançarino, ao fugir de um tiroteio, havia morrido em decorrência de uma queda.

A PM esperou que isso fosse o suficiente para calar e intimidar a população local. Entretanto, a comunidade não hesitou em descer o morro e ocupar a Avenida Nossa Senhora de Copacabana para denunciar os abusos e o genocídio que as polícias vêm promovendo, além de exigir justiça às vítimas e o fim das UPPs.

Era só mais um Silva
“Era trabalhador, pegava o trem lotado
Tinha boa vizinhança, era considerado
E todo mundo dizia que era um cara maneiro
(…) E o pobre do nosso amigo, que foi pro baile curtir
Hoje com sua família, ele não irá dormir”

(Mc Serginho, “Era só mais um Silva”)

DG, não por coincidência, tinha sobrenome Silva e havia encenado, em Junho de 2013, sua própria morte no curta-metragem Made in Brazil, de Wanderson Chan, que ilustra o triste cenário das comunidades ocupadas pelas UPPs, onde jovens negros, trabalhadores e pais de família são diariamente abordados, intimidados, agredidos e mortos de maneira arbitrária, com a desculpa de serem confundidos com traficantes.

Segundo o Instituto de Segurança Pública, de 2007 a 2012, foram registrados 553 desaparecimentos nas 18 primeiras comunidades pacificadas no Rio. Só em 2010 foram 119 desaparecidos, número que aumenta ano após ano e coloca em alerta a população negra e periférica do Rio, que hoje encara a luta contra as UPPs como a luta pela sua própria sobrevivência. Depois de Amarildo, nenhuma morte passa sem que o morro desça às ruas e exija justiça.

Pavão-Pavãozinho: o dia em que o morro desceu
O fato de a comunidade do Pavão-Pavãozinho descer até Copacabana evidencia o novo momento político em que vivemos. Em junho, o aumento das tarifas do transporte foi o estopim para que a população percebesse que as ruas são o espaço para as transformações reais na sociedade. Hoje, quando a periferia sangra pelas mãos das UPPs, no dia seguinte ela se incendeia com a indignação da população. Foi o que aconteceu com Amarildo, Douglas, Claudia e agora com DG.

Não há dúvidas, apesar da negligência nas perícias e investigações, de que se tratou de mais um assassinato cujo responsável é o governo de Luiz Fernando Pezão (PMDB) com sua política de segurança pública, que é a principal responsável pelo genocídio da população negra em curso. Tudo isso é evidenciado quando se lê cartazes feitos por moradores do Pavão nas manifestações, como “A maquiagem da UPP é o sangue dos inocentes”; “Hugo Leonardo (…) foi tido como bandido na mídia por calúnia dos policiais (…), e DG, Edilson e Amarildo são outras vítimas da UPP. Queremos Justiça!”; “Fora UPP”; “PM assassina”. Atualmente, tão essencial quanto a luta por transporte, saúde, educação e outros direitos sociais, o que se ouve nas ruas, por parte da população negra é a reivindicação por permanecer viva e pelo direito ao futuro.

Trata-se, em termos gerais, da luta contra a ideologia racista e do sistema que rebaixa os negros à categoria de coisas, que permitiu que fossem escravizados e mercantilizados por quase 400 anos no Brasil e que, hoje, faz com que sejam “carne barata” no mercado de trabalho, além de “justificar” o descaso do governo e da elite com o genocídio da população negra.

O mito da democracia racial e as lágrimas de crocodilo de Pezão
O governador Pezão convidou a mãe de DG, Maria de Fátima da Silva, para uma reunião, que foi prontamente recusada pela técnica em enfermagem: “Nenhum político vai se projetar em cima da imagem do meu filho. Existem outros crimes iguais ao do meu filho que não foram solucionados até agora, como o da auxiliar de serviços gerais, Claudia da Silva Ferreira, que caiu no esquecimento (…). Eu quero uma polícia correta e digna na rua e não uma polícia assassina. E não homens armados, tendo a população como inimiga. Eu quero que ela [a polícia] aja com rigor e traga à tona a verdade desse caso”.

A atitude louvável de Maria de Fátima vai no sentido oposto ao amplamente difundido mito da democracia racial, cujo centro é acreditar que negros e brancos possuem as mesmas oportunidades, os mesmos riscos ou que ocupam postos de igualdade na sociedade e que,por isso, todos os conflitos sociais e raciais podem ser resolvidos com um grande acordo entre a “casa grande” e a “senzala”.

Um exemplo desse mito é o próprio programa de televisão em que DG trabalhava, o Esquenta, que espetaculariza a pobreza, a colocando como mais um produto a ser vendido e consumido, além de exibir um mundo que, na prática, não existe: onde brancos e negros convivem harmoniosamente, sem as relações de opressão ou exploração que existem na sociedade. Ou como se essas relações não fossem relevantes, como o exemplo clássico da empregada negra que samba alegremente com a patroa branca, o que não é verdade.

No programa do último domingo, 27, que homenageou DG, a democracia racial atacou mais uma vez: o assunto da violência foi tratado de maneira abstrata, como se todos ali, de Regina Casé a Carolina Dieckman, sofressem o mesmo risco que DG e a população negra e periférica de morrerem assassinados. Ou como se um episódio do programa com condolências de globais, como Pedro Bial ou Jô Soares, fossem suficientes para fazer justiça ao caso específico do dançarino, e não a resolução do problema de conjunto, que é, entre outras coisas, a desmilitarização das polícias e a retirada das UPPs das favelas.

Além disso,  não é verdade que Pezão, ao chamar a reunião com Maria de Fátima, estava preocupado em garantir que este e outros casos semelhantes se solucionassem ou que o genocídio da população negra se encerre. Pelo contrário, mediante a falência da política das UPPs e da revolta generalizada que faz com que a população desça do morro em protesto, Pezão aceita com gratidão a ajuda do governo de Dilma Rousseff, que ocupou, desde o início de abril, com suas Forças Armadas, o complexo da Maré.

Portanto, mediante esta situação, não é possível conciliar a “senzala” com a “casa grande”, pois são polos com interesses opostos. De um lado, os governos fazem de tudo para garantir a Copa do Mundo para inglês ver, intensificando a ocupação das favelas e morros, para conter a população que quer lutar contra as injustiças sociais, sendo uma delas o seu próprio genocídio. De outro lado, está a população preta das periferias, como a de Pavão-Pavãozinho, que dão um exemplo de luta e resistência. Os ventos de junho seguem soprando em nosso país.

Transformar o luto em luta
Para além do grito de justiça pelo essencial, que é a investigação rigorosa, afastamento e punição dos policiais envolvidos na morte de DG e em outros casos de desaparecimento e morte das centenas de moradores das comunidades ditas pacificadas, é uma questão urgente a retirada imediata das UPPs das favelas e morros do Rio.

A principal desculpa para que os governos de Pezão e Dilma ocupem hoje as favelas e morros é a guerra às drogas, mas esta é uma política que, a cada dia, anuncia o seu próprio fracasso por ser a causa direta do genocídio da população pobre e preta das periferias, além do seu encarceramento em massa.

Se o governo está realmente interessado em acabar com o tráfico, fazer justiça a DG e garantir a vida e o futuro da população negra, deve haver uma inversão de prioridades: ao invés de se investir mais de R$ 30 bilhões com a Copa das injustiças, deve se investir nos direitos sociais mais básicos, como saúde, transporte, educação e cultura, além da urgente legalização das drogas e desmilitarização das polícias.

Entretanto, se Pezão e Dilma não estão dispostos a ouvir as ruas, o Pavão-Pavãozinho e os pretos da periferia de conjunto estão dispostos a transformar o luto em luta e fazer um novo junho acontecer, mas dessa vez com a inspiração em Palmares.