Em política, existem uniões que fortalecem, e outras que enfraquecem a luta pelo socialismo. Unir quem defende a luta de classes com quem defende a colaboração de classes não faz os socialistas mais fortes, mas os destróiNo final do ano passado, às vésperas do congresso do PSUV (Partido Socialista Único da Venezuela), ao participar de um encontro com as delegações internacionais, Hugo Chávez fez a convocatória de uma reunião em abril de 2010 para fundar uma V Internacional, com o objetivo de procurar “a unidade dos partidos de esquerda e revolucionários dispostos a lutar pelo socialismo”.

É provável que esta conclamação venha a despertar esperanças. É compreensível que seja assim, tanto mais que Chávez invocou a tradição das quatro Internacionais. A maioria dos militantes sinceros da causa socialista, dispersos no Brasil e no mundo em vários partidos e movimentos, compreende a necessidade urgente do internacionalismo. Uma Internacional para lutar contra o capitalismo seria a forma orgânica de transformar o internacionalismo de compromisso programático, ou iniciativas parciais, em uma força política real.

Mas nunca é positivo alimentar esperanças com ilusões. Elas são, irremediavelmente, uma antesala de frustrações, portanto, de desmoralizações irremediáveis.

A independência política de classe se impõe como uma pré-condição de uma Internacional anticapitalista. Em política, existem uniões que fortalecem, e outras que enfraquecem a luta pelo socialismo. Dois só são mais fortes do que um quando se unem para puxar a corda para o mesmo lado. Se cada um puxar a corda em direções diferentes, em vez de se fortalecer, se anulam. Unir quem defende a luta de classes com quem defende a colaboração de classes não faz os socialistas mais fortes, mas os destrói.

Não obstante, a iniciativa recebeu a adesão de François Sabado em nome da corrente conhecida como Secretariado Unificado (SU) da Quarta Internacional, que se expressa na França como componente do Novo Partido Anticapitalista (NPA). No Brasil, o chamado à V Internacional já recebeu uma adesão. Pedro Fuentes, veterano trotskista, da direção do MES e secretário de relações internacionais do PSOL, escreveu: “A proposta de Chávez é progressiva diante do vazio internacional existente, um avanço que pode transformar-se em um salto para criar uma nova alternativa à situação atual que vivemos de profunda crise capitalista, para dar uma resposta à política imperialista (…) Queremos participar na construção deste processo que está apenas começando e que tem como próxima data marcada a reunião de final de abril em Caracas”.(1)

Fuentes apresenta a V Internacional como um projeto em aberto, um espaço em disputa. Mas, evidentemente, não é assim. Assim como o PT não era um partido em disputa, porque tinha no seu interior um aparelho burocrático cristalizado muito antes de chegar ao poder, a Internacional chamada por Chávez já nascerá como um instrumento consolidado. Quem está dirigindo a convocação da V Internacional não é François Sabado ou Pedro Fuentes. Estes dirigentes, e as forças políticas que influenciam, serão imensamente minoritários nesta iniciativa. Quem está chamando a reunião de Caracas é Chávez e o seu PSUV, e seu projeto é a construção de um fórum para defender o governo venezuelano no sistema internacional de Estados. Estamos, portanto, diante da iniciativa de um governo (que vem perdendo apoio nas classes populares) que procura uma articulação com partidos (preferencialmente, partidos que estão no poder) para a construção de uma política internacional comum, a serviço das manobras diplomáticas dos seus Estados.

Os partidos que seriam a espinha dorsal dessa futura Internacional não se incomodaram em apoiar governos, como os de Lula, Evo Morales, Correa, Ortega, Lugo ou Tabaré Vásquez, que se dedicaram, cada um à sua maneira, a tranquilizar as suas burguesias de que nenhuma medida de ruptura com o capitalismo seria ensaiada.
Chávez desenvolve, há mais de dez anos, o projeto de um capitalismo periférico com forte regulação estatal combinado com programas sociais. Isso tem sido o suficiente para que os governos norte-americanos – Clinton, Bush e Obama – o hostilizem. Mas o governo norte-americano hostiliza mais ainda o Irã. Como socialistas, devemos defender o Irã e a Venezuela quando são atacados pelo imperialismo, mas não podemos enganar a nós mesmos. Ter choques parciais com o imperialismo não é o suficiente para que um governo seja considerado anticapitalista. Ou alguém duvida que o Estado venezuelano é capitalista? O próprio Chávez o admite.

É preciso muita inocência ou desinformação para imaginar que o que está acontecendo na Venezuela há 12 anos é o mesmo que aconteceu em Cuba entre 1959 e 1961, só que em câmara lenta. Doze anos, não dois anos, nos separam de 1998. Se Chávez estivesse realmente disposto à ruptura com a burguesia venezuelana, ela teria acontecido depois da tentativa frustrada de golpe, em 2002. O lugar político de Chávez é mais semelhante ao dos oficiais do exército peruano, que chegaram ao poder nos anos setenta, do que o de Fidel. Seu movimento bolivariano dentro das Forças Armadas não é o Movimento 26 de Julho.

Os partidos convocados para formar a V Internacional não podem ser sequer qualificados, seriamente, como anti-imperialistas. O governo da China, por exemplo, é uma peça chave de equilíbrio do mercado mundial, como principal credor da dívida do Tesouro dos EUA, e na estabilidade do sistema internacional de Estados, exercendo pressão sobre os poucos Estados independentes como Cuba e Irã.

Não será unindo numa mesma organização partidos burgueses como o Partido Revolucionário Institucional (PRI) do México, outros com composição social policlassista – como o próprio PSUV, a Frente de Resistência de Honduras, ou o Pólo Democrático da Colômbia, outros neoestalinistas e correntes socialistas minoritárias que se construirá uma Internacional. Nada animador poderá nascer da união de partidos diretamente burgueses, outros que defendem a colaboração de classes e partidos que defendem a revolução social anticapitalista. Unidos a estes partidos, os revolucionários não aumentariam sua influência, mas ao contrário, seriam silenciados e, finalmente, corrompidos ou desmoralizados.

Evidentemente, foi legítima a organização de unidades de ação anti-imperialistas em torno de campanhas, como foi a solidariedade com a resistência hondurenha ao golpe, ou a campanha emergencial de solidariedade ao Haiti, reivindicando, também, a retirada das tropas estrangeiras.

Mas uma unidade de ação de partidos que se unem em uma campanha com um objetivo comum circunstancial, ou contra um inimigo comum, não é o mesmo que uma Internacional herdeira da tradição da I, II, II, e da IV Internacionais.
Pedro Fuentes argumenta, contudo, que: “Em nossa opinião, tem muita vigência a frase que disse Marx criticando o extenso, porém ambíguo programa de Gotha, ao redor do qual iriam unir-se duas correntes socialistas alemãs: ‘mais vale uma ação comum do que meia dúzia de programas’”.

Nesta passagem, Fuentes recorreu ao expediente escapista de polemizar com adversários doutrinários imaginários, e invoca o apoio de Marx. O exemplo é completamente inadequado. A Internacional de Caracas é muito mais parecida com a fundação do Movimento dos não alinhados na Conferência de Bandung dos anos cinquenta(2). Não por acaso, o bolivarianismo de Chávez é mais parecido com o pan-arabismo de Nasser.

Por outro lado, Fuentes esqueceu-se de dizer que em Gotha uniram-se duas tendências do movimento operário alemão, os lassaleanos e os marxistas. Duas tendências proletárias, não uma corrente militar burguesa nacionalista associada a tendências reformistas pequeno-burguesas da esquerda venezuelana, e outra socialista. E, ainda assim, Marx ficou furioso com os líderes alemães da sua corrente, August Bebel e William Liebknecht, por terem feito concessões injustificadas ao lassaleanos, porque prezava a clareza do programa. De resto, se Marx soube ser flexível nas táticas era, todavia, irredutível nas questões de princípio. Nunca defendeu que os socialistas deveriam se unir a correntes burguesas que defendem a regulação estatal do capitalismo. Mas Fuentes aposta que: “Do que se trata no chamado de Caracas é construir um reagrupamento onde se encontrem o novo nacionalismo radical bolivariano, as novas correntes anti-imperialistas, indigenistas e anticapitalistas com a esquerda socialista. Um dos requisitos para que este processo avance é que tenha o critério de uma organização ampla de frente única, que possua traços mais parecidos com a Primeira Internacional de Marx do que com outras organizações”.

Fuentes argumenta: a V Internacional será progressiva porque será parecida com a Primeira. Mas na Primeira Internacional existiam várias correntes, umas mais reformistas, como os seguidores de Proudon, e outras mais insurrecionais, como os anarquistas de Bakunin, mas todas eram independentes da burguesia e dos Estados. Uma frente de partidos interessados em articular uma rede de apoio político a governos burgueses não será uma Internacional Socialista, mas uma agência de sustentação da diplomacia de Estados. A Internacional de Caracas será um instrumento de pressão pela coexistência pacífica com o imperialismo.

Toda a experiência histórica sugere que uma Internacional Socialista é um desafio imensamente maior do que um organismo de frente única sindical em escala internacional. Só poderá ser construída como um instrumento de luta se for alicerçada em um programa comum e se for independente de Estados e governos.

O que Fuentes propõe aos militantes da esquerda socialista brasileira não é ousadia, mas uma aventura. Não foi outro critério que animou o MES a defender o apoio a Marina Silva, com resultados conhecidos. Cautela, seriedade e vigilância são reflexos políticos responsáveis, não sectários. Uma bandeira política manchada não pode ser lavada.

Esta defesa da fusão do nacionalismo chavista e do indigenismo de Evo com o marxismo revolucionário confessa uma ingenuidade política incorrigível, depois do que a esquerda brasileira viveu com a experiência de 30 anos com o PT e Lula.
O que podemos verificar neste processo não é evolução do chavismo na direção do internacionalismo revolucionário, mas o inverso: a orientação política do MES evoluiu do internacionalismo para o reformismo.

O vazio internacional de organização independente dos trabalhadores é verdadeiro. As explicações para a inexistência de uma Internacional com influência de massas são complexas, e nos remetem à história. O processo no qual as posições internacionalistas foram, politicamente, derrotadas e, por isso, permaneceram minoritárias, preservando uma herança, mas acumulando, também, os vícios políticos da marginalidade ainda não foi superado. A IV Internacional não existe mais como partido. A reconstrução da IV Internacional permanece necessária, e a LIT-QI está a serviço dessa tarefa. Mas, sempre que, por impaciência política, se procuraram atalhos, aconteceram desastres.


(1) O artigo completo está disponível no blog da Luciana Genro (consultado em 24/02/2010).

(2) Segundo a conferência, os países imperialistas seriam o Primeiro Mundo, a URSS e os países do Leste seriam o Segundo Mundo, e as ex-colônias seriam o Terceiro Mundo. A convocação foi assumida pela Índia, mas contou com o apoio da China. Assumiu oposição ao que era o neocolonialismo dos EUA, mas, também, distância da URSS, criando no auge da Guerra Fria o Movimento dos Não-Alinhados. Todos os 29 Estados presentes se autodeclaravam como socialistas.

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