Ana Flávia Siqueira, de Campinas (SP)

Ana Flávia Siqueira, de Campinas (SP)

 

Montagem completou 50 anos em 2015

“O Arena conta a história

pra você ouvir gostoso,

quem gostar nos dê a mão

e quem não, tem outro gozo.

História de gente negra

da luta pela razão,

que se parece ao presente

pela verdade em questão,

pois se trata de uma luta

muito linda na verdade:

é luta que vence os tempos,

luta pela liberdade!”

 

No dia 1º de maio de 1965, estreava no Teatro de Arena de São Paulo o musical Arena Conta Zumbi, com texto de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, e músicas de Edu Lobo. A peça é a primeira obra da série “Arena Conta…”, que mudou os rumos do teatro moderno no Brasil, inaugurando na nossa dramaturgia o Sistema Coringa e o palco de arena.

Com todas as limitações financeiras do Teatro de Arena, seus idealizadores não tinham outra escolha, senão adaptar suas obras às condições materiais disponíveis. Com isso, Arena Conta Zumbi inaugura o que, mais tarde, Boal desenvolveria na prática e na teoria em seu método intitulado Teatro do Oprimido: o “Sistema Coringa”.

Por contar com poucos atores, Zumbi foi encenada partindo do pressuposto de que qualquer ator poderia interpretar qualquer personagem, de acordo com o que cada cena pedia no momento. O sistema coringa, ainda sem esse nome, traz para o teatro brasileiro um novo modelo cênico-interpretativo, onde as características pessoais dos atores vão de encontro às características dos personagens. Por exemplo, em uma cena onde o rei Zambi se mostra mais doce, quem o interpreta é um ator com essa característica e assim por diante. Ainda por falta de estrutura e dinheiro do grupo, foi decidido abandonar o palco italiano clássico e a peça é encenada em um palco de arena, fazendo com que a montagem se torne mais barata e, seguindo o intuito do próprio Teatro de Arena, os espectadores se sintam mais próximos da encenação, dos atores e de todo o processo de trocas de personagens.

As músicas compostas por Edu Lobo dão o tiro certeiro no intuito dos autores com a peça. De fácil entendimento, as canções ditavam a maior parte dos diálogos e tornavam a linguagem mais popular e de simples compreensão, tendo sido inclusive regravadas por artistas consagrados da música popular brasileira. A cenografia e o figurino, pontos simples, mas muito bem pensados, ficam a cargo de Flávio Império.

Inseridos em um contexto de ascensão das lutas populares contra o recente golpe militar de 1964, os dois principais autores do Teatro de Arena, Boal e Guarnieri, queriam inovar a dramaturgia brasileira aproximando-a tanto da população, quanto da situação social e política do país. Para isso, escolheram como eixo da peça, Zumbi, figura histórica e emblemática da resistência do povo negro no Brasil, o cotidiano e a luta no Quilombo dos Palmares. Pela primeira vez na história do teatro moderno brasileiro, a história de Palmares é contada a partir do ponto de vista dos próprios escravos. Com isso, o negro é mostrado como um ser dotado de virtudes e não só de rebeldia, como contava a História oficial.

Arena Conta Zumbi inova o teatro em seus diversos aspectos. O roteiro não se desenvolve em torno de um protagonista, que nesse caso seria Zumbi, mas torno de diversos protagonistas: o rei Zambi, Ganga Zumba e Ganga Zona. Acompanhamos, durante o enredo, a prisão de Zambi, a chegada ao Brasil, o desespero dos escravos dentro dos navios negreiros, a esperança de reencontrar Luanda, a compra e venda dos escravos, tratando-os ora como animais, ora como simples mercadorias, as torturas e a fuga. A partir daí, vemos a construção e o crescimento de Palmares e acompanhamos o cotidiano do quilombo: desenvolvem-se relações amorosas, vemos trabalhos militares e civis, batismos, até os enfrentamentos com os “brancos senhores da terra”, a resistência, a destruição do Quilombo e a morte de Zambi.

“Longe

num tão longe além do mar

meu rei guerreiro diz adeus

a quem vai ficar

Diz pra sua gente não desesperar

Zambi morreu

se foi, mas vai voltar

em cada negrinho que chorar…”
Arena Conta Zumbi é sobre a luta por liberdade. Mesmo com a derrota imposta ao final da peça com a destruição completa do Quilombo e a morte de seus líderes, os versos finais de Zumbi reforçam a necessidade e a validade da luta incessante pela liberdade:

“Tanto cansou, entendeu

que lutar afinal

é um modo de crer

é um modo de ter

razão de ser”

No ano em que se completam 320 anos da imortalidade de Zumbi dos Palmares, Arena Conta Zumbi se mostra ainda muito atual. Em um país onde um jovem negro tem 136% mais chances de ser morto pela polícia do que um jovem branco, onde as jovens negras têm três vezes mais chances de serem vítimas de estupro do que as jovens brancas, onde as mulheres negras ocupam os postos de trabalho mais precarizados e seus salários são quase duas vezes mais baixos do que os das mulheres brancas, recordar o episódio de Palmares é mais do que atual, é urgente.

Mesmo a peça sendo datada, contando um fato histórico dentro do contexto de seu tempo, o texto de Arena Conta Zumbi ganha um caráter universal e atemporal ao mostrar para todas as gerações que a luta incansável contra a exploração e a opressão se faz sempre necessária e é parte da luta pela liberdade.