Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

 

No dia de 31 de agosto, Dilma caiu. Após três meses enfrentando o processo de impeachment no Senado, a presidenta foi definitivamente afastada de seu mandado sob a acusação de ter cometido crime de responsabilidade. Evidentemente, não faltou quem saísse em seu socorro. Petistas envolvidos em escândalos de corrupção, como os senadores Lindbergh Farias e Gleisi Hoffmann se tornaram ardorosos defensores da petista durante o julgamento. Lula pediu aos eleitores que não gritassem Fora Temer, mas enviassem mensagens aos senadores pedindo que votassem contra o impeachment. O PT passou a defender a tese do golpe para mobilizar a sociedade. Não foi o suficiente. Tudo que conseguiram foi um acordão para garantir os direitos políticos de Dilma, um prêmio de consolação por ela ter resistido.

Boa parte da esquerda comprou a tese sobre o golpe do PT. Setores dos movimentos de mulheres por sua vez, passaram a defender que Dilma teria sido vítima do machismo e que caiu por ser mulher, que foi mais corajosa que muitos homens e, ao contrário de Bolsonaro Filho que quase desmaiou no debate da Band no Rio, ela teria enfrentado de pé os senadores durante mais de 12 horas no dia do seu depoimento.

Mas será mesmo que Dilma caiu por ser mulher? Teria o machismo sido a causa de sua derrocada? Essa parece ser uma explicação um tanto simplista. É evidente que Dilma, como todas as mulheres, sofre com o machismo. Sofreu antes e durante seu mandato como presidenta e provavelmente seguirá sofrendo agora, pois para acabar com o machismo é preciso pôr fim na exploração de uma classe por outra, isto é, derrotar o capitalismo.

Também é verdade que setores reacionários e conservadores utilizaram o discurso misógino para tentar desqualificar a presidenta. Nós inclusive nos posicionamos de forma contundente contra essa prática quando, por exemplo começaram a circular adesivos de Dilma com as pernas abertas para serem colados nas entradas dos tanques de combustíveis dos carros. Mas isso, definitivamente, não explica porque ela caiu, no máximo, torna mais evidente que avançamos muito pouco na luta contra o machismo durante os anos de mandato de Dilma e do PT e que há um caminho muito longo a percorrer para eliminar de vez com o machismo na sociedade.

O que levou à queda de Dilma
Para compreender como isso ocorreu é necessário voltar alguns anos no tempo, mais precisamente em 2002, quando Lula e o PT venceram as eleições catalisando as esperanças de amplos setores da classe trabalhadora que acreditavam que aquele era seu governo e que os trabalhadores agora iriam governar.

Durante os dois primeiros mandatos de Lula, o PT, se aproveitando desse sentimento por um lado e de um ciclo de crescimento econômico mundial por outro, combinou uma política de amplas concessões aos empresários e banqueiros com medidas sociais compensatórias que nada mais eram que migalhas aos trabalhadores do bolo que a burguesia comia. Nunca, nem mesmo durante a era FHC os bancos lucraram tanto como durante os governos do PT, os usineiros de cana, que antes eram considerados bandidos do agronegócio se tornaram “heróis nacionais”. A grande indústria, em especial as montadoras ganharam enormes incentivos fiscais, Lula virou “o cara” do imperialismo.

Ao mesmo tempo, o governo aproveitou para desferir uma série de ataques ao conjunto da classe trabalhadora, em especial o funcionalismo, (reforma da Previdência, aumento das terceirizações no serviço público, Lei da OS’s, etc.), criou as PPP’s (Parcerias Público Privadas) privatizou (agora com o nome de concessões) portos, aeroportos, ferrovias e estradas, entregando assim parte do patrimônio público para a iniciativa privada, manteve o veto de FHC aos 10% do PIB para a educação, entre outras medidas que de conteúdo representaram um duro golpe em várias conquistas que a classe havia acumulado até então.

E como o PT conseguiu fazer isso sem grandes resistências? Uma parte porque não havia uma percepção dos ataques já que vinham camuflados pelas medidas sociais compensatórias e outras como a concessão de créditos e o endividamento das famílias. Mas além disso, porque houve a cooptação de amplos setores dos movimentos sociais, sindical, popular e estudantil para dentro do governo. Para se ter uma ideia, nos primeiros anos do governo Lula, o Ministro do Trabalho foi nada mais, nada menos que um ex-presidente da CUT (Luiz Marinho).

Essa política funcionou bem durante um tempo enquanto vivíamos um ciclo de crescimento econômico mundial, quando as exportações de matérias-primas inflavam a balança comercial e havia injeção de dinheiro estrangeiro especulando no Brasil. Com o dinheiro circulando, a arrecadação do governo era alta, isso permitia seguir concedendo migalhas aos trabalhadores enquanto os empresários e banqueiros enchiam seus bolsos. Mas a questão é que nunca houve uma mudança estrutural na vida dos trabalhadores, muito pelo contrário, é verdade que uma parte dos trabalhadores pode comprar carro, TV de tela plana e viajar de avião, mas tudo isso às custas do endividamento das famílias, do fechamento dos postos de trabalho que remuneravam mais (acima de 5 salários mínimos) e criação de empregos com salários mais baixos (até 3 salários mínimos), do aumento da terceirização e da rotatividade no emprego e da precarização do serviço público.

Além disso, houve uma política de desindustrialização e uma inserção maior do Brasil como exportador de commodities (matérias primas). Como a economia mundial crescia, consumia mais matérias-primas, com o dinheiro das exportações entrando, mais o bolo da burguesia enchia.

Mas aí veio a crise econômica mundial… 
No início Lula disse que tinha sido só uma “marolinha” e conseguiu eleger Dilma sem muitas dificuldades, embora, no geral, ela fosse bem desconhecida do eleitorado e não fosse muito carismática. O fato dela ser mulher em nada atrapalhou sua eleição ou seu governo, muito pelo contrário, isso foi utilizado inclusive em seu favor. Em seus primeiros anos de mandato Dilma utilizou uma retórica voltado sobretudo para as amplas camadas de mulheres trabalhadoras como forma de ganhar apoio popular. Promoveu mulheres para postos chave de seu governo e defendeu que as mulheres eram “a nova força que move o Brasil” e que esse seria o “século das mulheres”. Também elaborou programas que tinham como foco as mulheres, como o programa Crescer, destinado a financiar pequenos empreendedores, e discursou para elas, prometendo construir creches e ampliar as verbas do combate à violência contra a mulher. Era a política do empoderamento sendo aplicada na tentativa de convencer as trabalhadoras que agora elas tinham vez e voz.

Mas apesar do discurso e de algumas medidas que tinham foco nelas, Dilma, assim como Lula, seguiu governando mesmo para a burguesia, aprofundando ainda mais a política de incentivos fiscais para as indústrias, as parcerias público-privadas, as concessões e cortando gastos sociais. Enquanto a classe trabalhadora seguia se endividando, continuava crescendo o fosso da desigualdade de gênero e raça, vitimando sobretudo as mulheres negras, duplamente oprimidas e exploradas. Por outro lado, por trás do discurso do empoderamento, os programas de governo de Dilma e do PT reforçavam cada vez mais o papel tradicional da mulher na sociedade como mãe e dona de casa.

E para o azar da presidenta, o pior da crise chegou justo durante o seu mandato, a marolinha de Lula, se tornou um tsunami para Dilma. Os mercados internacionais pararam de comprar matérias-primas do Brasil, a situação começou a degringolar, o bolo parou de crescer, passou a murchar e começaram a faltar migalhas.

As manifestações de junho de 2013 foram o começo do fim para Dilma, porque ali a sensação de bem-estar social passou a se desfazer. Lembra que não era só por 20 centavos? Naquele momento os trabalhadores passaram a se dar conta de que tinha algo errado, dentro de casa ainda havia certo conforto, mas do portão para fora o transporte estava ruim e caro, a educação ia de mal a pior, a saúde estava um caos, além disso, o empréstimo consignado começava a pesar no contracheque, o sonho da casa própria virava um pesadelo pois a “minha casa” tinha virado “minha dívida”. Foram as mulheres as primeiras a perceber, por isso foram a maioria dos que saíram às ruas.

E o pior ainda estava por vir, o desemprego e a inflação
Mas em 2013 tudo ainda era muito incipiente, por isso vieram as eleições e Dilma foi reeleita, porque os trabalhadores, e em especial as mulheres trabalhadoras, resolveram dar um voto de confiança a ela e ao PT e também porque sabiam que a saída não eram mais privatizações e ajustes ou reformas trabalhista e previdenciária como defendia Aécio, mas aumentar os gastos sociais, construir escolas e hospitais, investir em saneamento básico, etc. e acabar com a corrupção.

Dilma ganhou as eleições dizendo que não mexeria nos direitos sociais e trabalhistas nem que a “vaca tossisse”. A vaca não tossiu, mas nem por isso ela cumpriu a promessa. Mexeu no PIS, no seguro-desemprego, na pensão por morte, entre outros, também aumentou os cortes nas áreas sociais, colocou um homem de confiança dos banqueiros como ministro da economia, uma latifundiária como ministra da agricultura e vários outras “raposas para tomar conta do galinheiro”.

Com a situação econômica piorando, o desemprego e a inflação nas alturas e todos os dias surgindo mais e mais escândalos de corrupção, a revolta da população aumentou. Uma parte dela, os setores médios da classe, alentada pela oposição de direita que queriam desgastar o governo em aplainar o terreno para retornar ao Palácio do Planalto em 2018, saiu às ruas. A classe operária e os estratos mais pobres, desconfiados preferiram não participar desses atos verde-amarelo, mas o fato de não saírem de forma contundente a defender Dilma mostrou que haviam rompido definitivamente com esse governo.

As inúmeras greves de categorias principalmente no setor privado começaram a deixar a burguesia amedrontada, por outro lado, pressionavam para que o governo atacasse mais e fizesse as reformas necessárias para seguir garantindo seus lucros exorbitantes, mas a cada tentativa de Dilma de atacar os trabalhadores, mais o descontentamento aumentava e a classe reagia.

Levantes do funcionalismo colocavam em risco os governos estaduais como Beto Richa no Paraná, Pezão no Rio e Sartori no Rio Grande do Sul, a população negra das favelas desceu o morro para protestar contra a violência policial, escolas foram ocupadas por estudantes secundaristas que reclamavam do sucateamento do ensino público, as mulheres se rebelaram contra o machismo e a cultura do estupro, a classe trabalhadora começou a entender que a única saída era a luta por outro lado a oposição de direita perdia o controle da situação. Aécio e Alkmin foram vaiados em atos que eles mesmo promoveram, se alguma coisa rápida não fosse feita o “Fora Todos” poderia se transformar numa palavra de ordem para ação. O que ocorreu no Paraná foi um aviso, Richa só não caiu porque o PT não deixou, salvou os anéis da oposição para não perder seus próprios dedos.

Diante desse quadro a burguesia se dividiu, um setor passou a defender o impeachment, mas essa não era a política preferencial, o melhor para eles era que Dilma e o PT se mantivessem até 2018 e seguissem atacando os trabalhadores mesmo que isso lhe custasse tamanho desgaste que não restasse outra saída que a alternância de poder com o PSDB. Mas a situação ficou crítica e optaram por sacrificar Dilma.

Foi um golpe?
Muita gente se pergunta se havia ou não motivo para o impeachment, mesmo entre os trabalhadores que não defendem sua volta. A resposta é simples, havia mas evidentemente não teria sido utilizado se não fosse conveniente. Foi um golpe? Não, não foi. E nem o PT, nem Dilma acreditam nisso, senão como explicar que o PT saiu em coligação com os “golpistas” em mais de 1600 cidades nessas eleições? Como explicar que na carta aos senadores Dilma aceitou retirar a palavra “golpe”? Como explicar que Lula pediu para não dizer “fora Temer”? Como explicar que a CUT, que dirige a maior parte do movimento sindical brasileiro, não chamou uma greve geral para defender a presidenta? Simples, porque não foi golpe.

E mais, hoje a política do PT para Temer é praticamente a mesma da oposição de direita no seu governo, isto é, desgastar Temer, mas ajudá-lo a aplicar as medidas de ajuste, porque assim abre-se a possibilidade de que Lula ou quem sabe alguma outra figura do PT (quem sabe a própria Dilma lembrem-se que ela não perdeu os direitos políticos) retornar em 2018. Com a casa arrumada pelo PMDB e um pouco de sorte de que a economia mundial volte a crescer talvez o PT possa distribuir mais algumas migalhas por mais 12 anos.

O único problema é que, primeiro ninguém garante que Temer vai arrumar a casa para burguesia porque para isso terá de derrotar a classe trabalhadora, ele está tentando, mas não está fácil. Segundo, se ele arrumar, quem garante que depois vai entregar a casa arrumada para o PT, principalmente se já tiver derrotado a classe trabalhadora, e terceiro, ninguém sabe como vai se comportar a economia mundial e, portanto, se mesmo o PT voltando ao governo terá migalhas para distribuir.

Tudo isso leva a uma conclusão, migalhas não resolvem nossas vidas, podem até adiar o problema por um tempo mas, cedo ou tarde, o fato de não ter mudado estruturalmente a vida dos trabalhadores vai cobrar seu preço. Basta olhar ao redor para perceber que as pouquíssimas conquistas que os trabalhadores tiveram ao longo desses 12 anos do PT no governo, como a redução do desemprego e o aumento do número de carteiras assinadas escoaram como água ralo abaixo quando a crise chegou.

O que o PT e setores da esquerda reformistas chamam de golpe nós chamamos de traição, mas não podemos nos esquecer que foi a Dilma quem primeiro traiu os trabalhadores e as trabalhadoras que a reelegeram, quando mexeu nos direitos sociais e trabalhistas apesar de prometer que não o faria. Nada do que Temer está aprovando no congresso agora é ideia dele, todas as medidas foram gestadas ainda sob o governo Dilma, mesmo que não tivesse tido impeachment isso não mudaria.

O mesmo vale para parte do movimento de mulheres que sai em defesa ex-presidenta alegando que ela caiu porque é mulher. Dilma caiu não por ser mulher, mas porque traiu as mulheres trabalhadoras quando “vendeu” as reivindicações históricas dos movimentos de mulheres como a legalização do aborto e a lei do salário igual para trabalho igual. Ao se calar vergonhosamente quando foi retirada do Plano Nacional de Educação a meta que tratava da promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual ou quando vetou o kit anti-homofobia nas escolas. Quando prometeu que construiria 6 mil creches e aumentaria o investimento no enfrentamento à violência contra as mulheres através do programa Mulher Viver Sem Violência, promessas que nunca foram cumpridas. E tantas outras mais. Caiu não por ser mulher, mas porque não basta ser mulher, tem que governar para as mulheres trabalhadoras e isso ela não fez.

Por um bom tempo a política do empoderamento ajudou a enganar as mulheres trabalhadoras fazendo com que elas acreditassem que por terem uma presidenta mulher ou ministras mulheres suas vidas iriam melhorar. Mas a realidade demonstrou que a única forma de resolver nossos problemas de verdade é a tomada do poder pela nossa classe, que ao pôr fim à exploração capitalista abrirá o caminho para acabar de vez com a opressão.

Por isso nem Temer nem Dilma. Fora Temer e que Dilma não volte. Fora Temer e fora todos que oprimem e exploram a nossa classe. Por um governo socialista dos trabalhadores, apoiado em conselhos populares.