Uma comparação entre a história de Zuzu Angel e a peça “Mãe Coragem e seus filhos”, escrita por Brecht, em 1938, é inevitável. O dramaturgo alemão usou a história de uma mãe que vendia produtos numa guerra que matou todos seus filhos como parábola das incertezas e contradições que cercam a pequena-burguesia em momentos de crise política, quando ela se vê perdida em meio a forças opostas, que questionam seu modo de vida, seus valores e seu próprio papel na história.

Zuzu Angel, pioneira e famosa estilista brasileira, transformou-se em dramático exemplo desta trajetória ao empreender uma luta quase insana pelo resgate do corpo de seu filho, Stuart Angel, torturado e morto nos porões da ditadura em 1971. Uma luta que, até 1976, quando ela própria foi assassinada, fez com que a estilista, nas palavras do diretor Sérgio Rezende, deixasse de ser apenas uma artista e mulher de negócios para se transformar em uma guerreira.

Levado para as telas pelo mesmo diretor das cinebiografias de Tenório Cavalcanti (O homem da Capa Preta), Lamarca, Antonio Conselheiro (Guerra de Canudos) e Visconde de Mauá, o filme é particularmente marcante pela representação deste percurso (extraordinariamente interpretado por Patrícia Pillar).

Anjos feridos e amordaçados
Zuzu Angel é um dos mais conhecidos capítulos de uma história que até hoje marca a vida de cerca de 150 famílias que não puderam enterrar os corpos de seus parentes e companheiros. Militantes políticos, muitos deles envolvidos na luta armada, jovens, na sua maioria, que morreram sob tortura nos porões da ditadura e tiveram seus corpos lançados ao mar ou enterrados em valas clandestinas.

Gente como Stuart Jones Angel, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), que foi preso em 14 de maio de 1971 pelos agentes do Centro de Informação da Aeronáutica, onde foi brutamente assassinado e teve seu corpo jogado no mar.
Zuzu ficou sabendo da morte de Stuart através de um relato do também militante Alex Polari, seu vizinho de cela: depois de torturado várias vezes, “ele foi arrastado por um jipe, pelo pátio interno da Base Aérea do Galeão, com a boca no cano de descarga do veículo”.

A confirmação da morte fez com que Zuzu dedicasse os cinco anos seguintes à tentativa de recuperar o corpo e fazer justiça. Objetivo que a levou a fazer de tudo: de um encontro forçado com o então secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger à denúncia das inúmeras farsas montadas para encobrir o assassinato.
Capítulo à parte nesta história foi a utilização que Zuzu fez de seu trabalho.

Antes da morte de Stuart, Zuzu já havia conquistado fama internacional ao romper com a tendência colonizada da moda brasileira, utilizando-se de temas e matérias tipicamente nacionais, como rendas, pano de chita, conchas e bambus.

Com a morte do filho, Zuzu inaugurou, em Nova York, o “desfile-protesto” no mundo da moda. Suas modelos – dentre elas Elke Maravilha, que amargou seis dias de prisão por protestar contra o assassinato – começaram a desfilar estampas que mostravam manchas vermelhas, pássaros engaiolados, motivos militares ridicularizados. Em quase todas as peças, seu filho fazia-se presente na figura de amordaçados e feridos.

Essa luta acabou tragicamente no dia 14 de abril de 1976, quando Zuzu morreu na saída do então Túnel Dois Irmãos, hoje rebatizado com seu nome. Durante anos, a ditadura sustentou que sua morte havia sido acidental, versão que só foi totalmente desfeita no início dos anos 90.

Certa de que os militares planejavam eliminá-la, uma semana antes de morrer, Zuzu deixou uma carta na casa de seu amigo Chico Buarque, que pouco depois escreveu “Angélica”, uma comovente homenagem a uma mulher que teve sua vida mudada pela história e, à sua maneira, contribuiu para mudar a história do país. Uma mulher que fez da morte de seu filho a luta de sua vida, repetindo sempre: “Eu não tenho coragem, coragem tinha o meu filho. Eu tenho legitimidade”.

>b>História transformada em espetáculo
Apesar de, nem de longe, ser possível comparar Zuzu Angel ao insuportável Olga (Jayme Monjardin) ou ao ridiculamente estereotipado O que é isso companheiro? (Bruno Barreto), o filme de Rezende tropeça em uma característica que tem se transformado em incômoda constante no cinema nacional baseado em fatos reais (principalmente aqueles patrocinados pela Globo Filmes): a chamada “estética do espetáculo”, destinada a ganhar o espectador pela emoção ao invés de levá-lo à reflexão.

Para tal, o conhecido estilo melodramático das novelas é recorrentemente utilizado. Em vários momentos, Zuzu não escapa desta sina maldita. O contexto histórico (como a repercussão da morte de Vladimir Herzog, em 1975) praticamente desaparece sob o drama pessoal da mãe à procura do filho; insistentes músicas lacrimejantes embalam boa parte da trama e flashbacks que têm como intenção ressaltar o “drama pessoal” de Zuzu pipocam a todo momento.

Além disso, é difícil não sentir um certo incômodo nas falas de Stuart e Sônia. Apesar de interpretados por ótimos atores (Daniel de Oliveira e Leandra Leal), os personagens quase sempre falam como se estivessem diante de uma assembléia, reforçando a idéia do militante distante do mundo e “sedado” pelo discurso político.
Para compensar estas falhas, o filme tem ótimos momentos, como o encontro (fictício) entre Zuzu e o pai de Lamarca (Nelson Dantas, em seu último papel, a hipocrisia e farsa interpretadas por um padre e todos os agentes da ditadura (principalmente no “julgamento” forjado) e os momentos finais, quando os agentes da ditadura não conseguem “calar” a música Apesar de você, de Chico Buarque, anunciando a validade (e continuidade) da luta de Zuzu.

Como também são extremamente impactantes as cenas de tortura, mostradas com crueza e, inclusive, com uma curiosa citação da obra Os amantes, do surrealista René Magritte.

Por fim, é preciso lembrar que resgatar a história de Stuart, Sônia e Zuzu Angel não é simplesmente fazer uma homenagem a todos que foram mortos pela ditadura. Também é uma forma de recordar a vergonhosa covardia do governo Lula que, apesar de manter a política de indenização dos mortos e desaparecidos, nada fez para punir os criminosos, a maioria deles vivendo até hoje sob a impune proteção do Estado.

Dicas

* A história de Sônia Angel, companheira de Stuart e militante da Aliança Libertadora Nacional, foi contada em Sônia morta e viva (Sérgio Weisman, 1985). Presa aos 27 anos, Sônia foi morta em 1973, após ter sido violentada com um cassetete e ter os seios arrancados. Seu corpo só foi localizado na década seguinte.

* Lúcia Murat, ela própria militante e presa política, dirigiu dois excelentes filmes. No documentário Que Bom Te Ver Viva (1989), uma personagem ficcional mescla seus depoimentos com os de ex-presas políticas que foram torturadas. Recentemente, no excelente Quase dois irmãos, Lúcia retratou a relação entre presos políticos e comuns.

* A luta e o trágico destino dos jovens guerrilheiros também foram retratados no belíssimo Cabra Cega, de Toni Venturi.

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