Will Eisner em seu estúdio

Cartunista distanciou-se da indústria, que despeja seus super soldados com extraordinários super poderes, para transformar em poesia a vida cotidianaNo dia 3 de janeiro, faleceu Will Eisner, o mais importante artista dos quadrinhos e uma das principais referências da cultura pop do século XX. Eisner faleceu aos 87 anos, deixando uma legião infindável de leitores, seguidores de várias gerações que foram influenciados por sua arte e, acima de tudo, uma obra magnífica, dotada de um raro humanismo que sempre contrastou com a violência e o alto grau de banalidade que contamina grande parte da produção em quadrinhos.

69 anos de Arte Seqüencial

Will Eisner nasceu na cidade de Nova York, em 3 de junho de 1917. Ingressou no mercado de quadrinhos em 1936, após cursar uma escola de artes em Nova York. A combinação entre produção prática e dedicação acadêmica, diga-se de passagem, foi uma constante em sua carreira. Durante grande parte de sua vida, foi professor de cartuns na Escola de Artes Visuais de Nova York e publicou vários ensaios e livros, como Quadrinhos e Arte Seqüencial, considerado uma verdadeira “bíblia” nesta área.
Naquilo que era o melhor, a produção de histórias em quadrinhos, o trabalho de Eisner é bem extenso. Sua primeira revista em quadrinhos foi publicada em 1936, na Wow What a Magazine!. Quando a revista fechou, após quatro edições, Eisner, juntamente com Jerry Iger, fundou o Eisner-Iger Studio, uma versátil fábrica de quadrinhos que recrutou jovens artistas da época, que, anos mais tarde também inscreveriam seus nomes na História da Arte Seqüencial, como Bob Kane e Jack Kirby (que participação da criação do Hulk, dos X-Men e, também, do fascistóide Capitão América).

Sua parceria com Iger encerrou em 1939, quando Eisner entrou para o grupo da Quality Comics e criou o mais famoso de todos os seus personagens: O Espírito (The Spirit).

Revolucionário tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, O Espírito marcou para sempre a história dos quadrinhos e até hoje é publicado mundo afora. O que fez do Spirit uma das mais originais e influentes criações de todos os tempos foi, em primeiro lugar, o fato do “herói” ser de uma humanidade que, muitas vezes, beira o constrangimento.

Portando-se quase como um anti-herói, o personagem não tem nenhum super-poder — contando apenas com sua inteligência dedutiva e um punho esquerdo calibrado — e mete-se constantemente em enrascadas ao deixar-se levar mais pelos desígnios do coração e do desejo, do que pela sensatez.

Seu maior destaque, contudo, é o maravilhoso universo em que Eisner inseriu seu personagem. Mesclando influências que vão da estrutura dos contos de Hemingway ao expressionismo alemão (marcado por sombras e deformações), Eisner criou histórias ágeis, divertidas e cheias de surpresas gráficas. Inovou, por exemplo, ao adequar o formato dos títulos e das páginas de abertura ao clima e cenário em que as histórias se passavam.

Quadrinhos transformados em arte
As inovações formais e gráficas foram talvez o maior legado de Eisner. Foi graças à sua genialidade e ao seu talento que as histórias em quadrinhos passaram a ser reconhecidas como uma forma de arte num termo que o próprio Eisner criou: Arte Seqüencial. Como também é dele o conceito de graphic novel (romance gráfico), que revolucionou o mundo dos quadrinhos e, hoje, tem continuidade no trabalho de feras como Frank Miller, Neil Gaiman, Moebius, Hugo Pratt e Allan Moore, dentre uma infinidade de outros.

Dentre suas graphic novels, que surgiram particularmente a partir da década de 70, destacam-se verdadeira obras-primas como Um Contrato Com Deus, uma viagem pelo mundo de um cortiço, no paupérrimo bairro do Bronx, Nova York, em que Eisner acompanha as desventuras de um punhado de gente que não possui praticamente nada com uma dignidade comovente.

Pessoas comuns e anjos caídos

Caminhando sempre na direção oposta ao poderoso mercado norte americano de HQs e jamais subordinando suas histórias ao sucesso comercial, Eisner distanciou-se da indústria, que despeja no mundo seus super soldados com extraordinários super poderes para salvarem a humanidade em super arriscadas missões com bastante propaganda ideológica pró imperialista, para dedicar-se em transformar em poesia a vida cotidiana.

Eisner, porém, já teve sua participação passageira neste valioso mundo de heróis. Em 1939 criou, por uma necessidade do mercado, o super herói Doll Man: “Você sabe, as pessoas precisam de super-heróis. Precisam deles desde os tempos bíblicos. Criamos heróis para enfrentar os problemas com os quais não podemos lidar. O Super-Homem, por exemplo, foi criado durante a Segunda Guerra Mundial, quando Hitler dominava a Alemanha. Para nós, que estávamos na América, ele parecia uma força incontrolável. Então, a única coisa a fazer era criar um herói irresistível.
O único problema com os super-heróis, a razão pela qual não me interesso em trabalhar com eles, é que eles são unidimensionais. Eles não têm problemas reais. Torna-se difícil construir uma história. Afinal, histórias são construídas através da solução de problemas”. (III Festival de Humor e Quadrinhos de Pernambuco, Universo HQ, junho de 2001).

Abandonada a fase mercadológica, dedica-se a construir histórias de pessoas comuns e seus dramas pessoais na sociedade. Seus personagens em histórias como O último dia no Vietnã, No coração da tempestade, O nome do jogo e Avenida Dropsie são o que o jornalista Jotabê Medeiros, seu amigo, chamou de “anjos caídos”, “inocentes sem escolha” que zombam das manias americanas e ironizam o tão propagado “sonho americano” (O Estado de S. Paulo, 5/01/05).

Um bom exemplo desse humanismo é a novela O Edifício, que conta a história da vida e morte de um simples prédio no centro de Nova York, através da vida de 4 pessoas de classes diferentes. Com enorme simplicidade, Eisner retrata o avanço do capitalismo nas grandes cidades, contando os problemas da humanidade no século XX: crise de consciência, casamento pequeno-burguês fracassado, o sonho de ser violinista interrompido pelo embrutecimento da vida proletarizada ou de burguês decadente (dono do edifício) e sua constatação de que nada mais poderia levar da vida.

Outro exemplo imperdível é Um sinal do espaço, mescla de ficção científica e comédia de erros, que serve para denunciar o papel de joguete que os inocentes podem cumprir na mão de gente inescrupulosa, como os grandes empresários, a mídia e os falsos profetas que infestam seitas religiosas do mundo inteiro.

O Último Cavaleiro Andante

Extremamente crítico também em relação à sua profissão, Eisner sempre defendeu a não separação entre artista e escritor, tendo afirmado (em Quadrinhos e Arte Seqüencial), que boa parte dos atuais quadrinhos são feitos por “atletas artísticos que produzem páginas de arte absolutamente deslumbrantes sustentadas por uma história quase inexistente”.

Posições que, no entanto, não impediram que ele conquistasse o respeito do próprio mercado. Hoje, quase tudo que se utiliza como gramática das histórias em quadrinhos foi elaborado por Eisner e, em 1988, foi criado o prêmio Will Eisner Awards, entregue anualmente aos profissionais de destaque da indústria do HQ.
Responsável por ter elevado os quadrinhos ao status de obras de arte, o criador do Spirit soube como poucos exercer a difícil arte de unir palavra e imagem para contar a vida, criando um universo de personagens que se movem entre poesia a realidade.

Por essas e muitas outras, Eisner ganhou o apelido de “Dom Quixote dos quadrinhos”, personagem que virou tema de uma de melhores novelas, O último cavaleiro andande. Um “encontro” inevitável, pois, assim como o anti-herói espanhol, ridicularizado por muitos por investir contra moinhos de vento em sua armadura de sucata e seu falar poético, Eisner deixou uma obra que em todo momento nos lembra da necessidade de “sonhar o sonho impossível”, e de lembrar que “grandes feitos vêm de grandes sonhos”.