Para todo e qualquer trabalhador a implementação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) irá significar mais desemprego, mais arrocho e menos direitos. Contudo, para nós, negros e negras, que já vivemos em uma situação de superexploração, o plano de recolonização imperialista poderá significar o retrocesso à época de nossos ancestrais, no período imediatamente posterior à “abolição”. É por isso, e também em defesa do quilombo de Alcântara, que negros e negras têm que estar na linha de frente do plebliscito, que esta sendo realizado, votando contra os planos de ataque à nossa soberania que os Estados Unidos traçaram em cumplicidade com FHC.

Dayse Oliveira
Candidata à vice-presidência

Esta semana, até o dia 7 de setembro, está sendo realizado o Plebiscito Nacional sobre a ALCA, organizado por uma série de entidades dos movimentos popular, estudantil e sindical. O plebiscito traz três perguntas:
   “O goveno brasileiro deve assinar o tratado da Alca?”;
   “O governo brasileiro deve continuar participando das negociações da Alca?” e
   “O governo brasileiro deve entregar uma parte de nosso território — a base de Alcântara — para o controle militar dos EUA?”

Responder um contudente “NÃO” a todas estas três perguntas é uma necessidade para que os trabalhadores organizem a resistência aos planos de “recolonização” da América Latina, que vêm sendo traçados pelos EUA em vergonhosa cumplicidade com seus capachos instalados nos governos dos países do sub-continente.

Particularmente para nós, negros e negras, dizer não à Alca é uma forma de lutarmos contra a utilização que o capitalismo faz do racismo para superexplorar e oprimir mais da metade da população deste país, pois, como lembrava o geográfo negro Milton Santos em um de seus últimos escritos — Por uma outra globalização (2000) —, para uma parcela crescente do mundo (os “historicamente marginalizados”), a globalização não tem significado outra coisa senão uma “fábrica de perversidades”: “De fato, para a grande maioria da humanidade a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção. (…) Todas estas mazelas são direta ou indiretamente imputáveis ao processo de globalização”

E todas estas mazelas, como sabemos muito bem, historicamente têm atingido negros e negras de uma forma mais intensa e lamentável. Por isso, barrar a Alca significa, também, barrar esta “fábrica de perversidades” que poderá nos fazer retroceder para uma situação muito próxima àquela vivida por nossos ancestrais no período imediatamente posterior à “abolição”: o desemprego e o subemprego crônicos, a ausência total de direitos, a marginalização sem limites.

Uma situação que pode ser facilmente demonstrada ser checarmos apenas três dos muitos aspectos da vida nacional que poderão ser diretamente influenciados pela Alca.

1. Grande aumento do desemprego

Para todos os trabalhadores….

Como se sabe, através da Alca, não existiriam mais fronteiras para o capital na área formada pelos EUA e os 33 outros países signatários. Todas as barreiras alfandegárias seriam abolidas e entraríamos numa fase de concorrência desigual e predatória entre as grandes multinacionais e o que resta das empresas nacionais. Seria como se o Carrefour se instalasse do lado de uma vendinha de esquina, ou uma Blockbuster ocupasse o prédio anexo a um videolocadora de bairro.

Além disso, as concorrências para fornecimento de produtos e serviços ao Estado, assim como o acesso aos serviços públicos de saúde e educação, também seriam completamente abertas para as empresas multinacionais. A conseqüência óbvia deste plano seria a ampliação do mercado para as grandes empresas norte-americanas e a falência das empresas nacionais que restam. Ocorreria um retrocesso industrial no país, com uma enorme ampliação do desemprego, que poderia chegar a índices de 30% ou 40%.

Para negros e negras….

Hoje, segundo dados do Mapa da população negra no mercado de trabalho, a situação já é particularmente grave para nós. Nas principais regiões metropolitanas do país, 50% dos desempregados são negros. Em Salvador, 86,4% dos desempregados são negros; no Recife e no Distrito Federal este índice chega a cerca de 68%. Além disso detectou-se que, em média, a taxa de desemprego entre negros e negras é cerca de 40% maior do que aquela verificada entre brancos. Em Salvador, por exemplo, enquanto 17,7% dos não-negros encontravam-se desempregados, em 1998, a taxa entre negros era de 25,7% e em São Paulo esta relação é de 16,1% para 22,7%. Com a Alca, evidentemente, esta situação só tende a agravar. E muito.

2. Redução de salários e direitos

Para todos os trabalhadores…

A implantação da Alca vai fazer com os ataques aos salários e direitos se intensifiquem para que os capitalistas nacionais possam “concorrer” com empresas que pagam ainda menos em outros países. No México, por exemplo, depois da implantação do NAFTA (um tratado precursor da ALCA, imposto em 1994), os salários sofreram um redução de 20%. Antes do NAFTA, o salário de um trabalhador mexicano era, em média, quatro vezes menor que o de um norte-americano. Agora é dez vezes menor.

O ataque eu FHC está fazendo neste momento contra a CLT é parte da preparação para a Alca. Ele quer que o Brasil fique como outros países onde já não existe mais férias, 13º salário, licença maternidade, etc.

Para negros e negras…

Também neste aspecto nossa população já se encontra numa situação insustentável. De acordo com o PNDA de 1999, o arrocho salarial fazia com que 34% da população brasileira vivesse em famílias com renda inferior à linha de pobreza e 14% em famílias com renda inferior à linha de indigência, o que corresponde a 53 milhões de pobres e 22 milhões de indigentes. Dentre este enorme contigente de miseráveis, negros e negras eram 64% dos pobres e 69% dos indigentes. Ou seja, do total de pobres, 33,7 milhões eram negros (contra 19 milhes de brancos) e 15,1 milhões são indigentes, somando-se a 6,8 milhões de brancos.
Além disso, de acordo com o Mapa já mencionado, há uma gritante diferença (causada por uma nefasta mescla de machismo e racismo), no índice de rendimento média mensal dos trabalhadores. Em São Paulo, por exemplo, quando para cada R$ 100 pagos para um homem não-negro, uma mulher não-negra ganha R$ 62,5, um homem negro ganha R$ 50,6 e uma mulher negra recebe apenas R$ 33,6.

Por fim, no que se refere à precarização e a perda de direitos, também sabem que negros e negras há décadas vêm sendo vítimas preferenciais deste processo. Ainda de acordo com o Inspir, enquanto a precariedade ou vulnerabilidade atinge 27,3% dos não-negros de Salvador, a taxa entre negros chega a 46,2%. No Recife a relação é de 36,8% para 44,7% e, em S. Paulo, de 32,2% para 42,2%.

3. Privatização das últimas estatais

Para todos os trabalhadores….

Para evitar as “práticas comerciais restritivas”, as últimas estatais do país seriam privatizadas. Os brasileiros já tiveram sua experiência com o que significou a privatatização da energia elétrica, com apagões e o aumento dos preços das tarifas. Isso para não falar no aumento dos desemprego e na destruição de serviços essenciais para a população mais carente. Agora querem fazer o mesmo com a água, assim como a Petrobrás, o Banco do Brasil, a CEF e tudo mais que restar.

Para negros e negras….

Em primeiro lugar, como sabemos, a grande maioria dos usuários dos serviços públicos é notoriamente formada por negros e negras. Em segundo lugar, há um outro elemento importante nesta história: as privatizações têm incidido no aumento do desemprego entre nós. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos Bancários de S. Paulo, na década de 90, apenas 1% dos trabalhadores do sistema bancário da maior cidade do país era negra (afinal de contas, dentro da lógica das elites, não somos confiáveis para mexer com o dinheiro deles….). Já nos bancos públicos, este índice subia para 4%. Essa enorme distorção deve-se em grande medida a um único elemento: nos concursos públicos, os futuros patrões não têm condições de utilizar o hipócrita e absurdo critério da “boa aparência”. Ou seja, negros e negras não são obrigados a passar pelo crivo dos olhares racistas da patronal.

Muitos são os outros aspectos que irão influenciar diretamente na vida do povo brasileiro e da população negra em particular. O controle férreo da tecnologia, a perda do controle energético (e a ameaça à Amazônia) são alguns exemplos disto. Mas, para nós, um tema é particularmente importante: o controle militar direto do imperialismo sobre o país, algo que, hoje, se concretiza no famigerado acordo de Alcântara.

Em defesa do quilombo de Alcântara: barrar esta entrega vergonhosa.

Mais de 300 anos depois do Quilombo de Palmares ter se tornado uma símbolo da resistência e da luta do povo marginalizado e explorado contra a opressão colonial e escravocrata, estamos diante de uma situação que, em muitos sentidos, sintetiza os dias de hoje: o imperialismo norte-americano, dentro de seu plano de “recolonização” da América Latina, também está tentando se apropriar do munícipio de Alcântara, no Maranhão, uma terra remanescente de quilombos, que os Estados Unidos, com a cumplicidade de FHC e seus asseclas, querem transformar em uma base militar.

Hoje, como se sabe, Alcântara já é uma região militarizada. Em 1980, o governo do Maranhão, desapropriou quase metade das terras do município (cerca de 50 mil hectares) — deslocando cerca 500 famílias, a maioria descendentes de quilombolas, para “agrovilas” — para criar o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), como parte do projeto aeroespacial idealizados pela ditadura. Em 1991, o famigerado presidente Collor ampliou a área expropriada em 10 mil hectares.

Este processo significou um profundo golpe na organização social e econômica da região. Antes da instalação do CLA, a população praticava o cultivo coletivo da terra (em roças comunais), tinha a pesca como importante forma complementar de subsistência e mantinha suas tradições seculares. Com a chegada dos militares, as terras das “agrovilas” — que além de tudo são impróprias para o cultivo — foram divididas em lotes individuais e são localizadas distantes dos cursos d’água. Para se ter uma idéia do grau dos desmandos, hoje, quando os jovens de Alcântara se casam são proibidos de construir novas casas nas agrovilas, tendo que residir com seus familiares.

Essa longa história de desmandos, desapropriações e confisco resultou no que Maria Luisa Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos chamou, num ato realizado recentemente em S. Paulo, de “genocídio étnico”, já que a fome e a miséria têm se alastrado pela região. Isto, contudo, não ocorreu sem que houvesse resistência. Dando continuidade à história de lutas que marcou a região, as comunidades rurais e quilombolas de Alcântara, com o apoio de entidades como o MST, têm se mobilizado incessantemente contra a ocupação de suas terras.

Num primeiro momento, as reivindicações giraram em torno das profundas mudanças que ocorreram com a implantação do CLA: indenização justa, deslocamento para terras férteis e em quantidade suficiente para o sustento das famílias e acesso à água. Na medida em que se percebeu que o bem-estar do povo da região não fazia parte dos planos do governo, a resistência foi crescendo e transformando-se em um repúdio generalizado à ocupação. Foram anos e anos de bloqueios de estradas, barricadas e passeatas que se confrontavam com uma situação extremamente difícil: a completa militarização do município, protegido como área de segurança nacional.

Essa situação só tende a se agravar com o acordo que prevê a cessão da base “temporariamente” para os Estados Unidos lançarem foguetes e satélites. Assinado em maio de 2000, o acordo concede aos EUA o controle total sobre a base e permite aos norte-americanos desenvolver programas sigilosos, além de realizar operações sem o conhecimento das autoridades brasileiras. Em suma, Alcântara se tornaria uma enclave ianque em nosso território. Para que não paire dúvidas sobre isso, até mesmo os crachás de acesso à área seriam emitidos exclusivamente pelos ianques.

Em troca de tudo isso, o governo brasileiro receberia a absurda quantia de US$ 34 milhões por ano, que sequer poderiam ser empregados no desenvolvimento da pesquisa espacial brasileira.

O que os EUA pretende, na verdade, é ampliar seu projeto de recolonização da América Latina, reeditando aqui a ocupação de territórios, como já ocorreu, por exemplo, em Guantânamo (Cuba), em Porto Rico, na Costa Rica, no Equador (onde os EUA podem até bloquear o espaço aéreo da base ocupada) e está em curso na Colômbia.

O PSTU tem participado ativamente da campanha em defesa de Alcântara, que terá um importante momento no plebiscito contra a ALCA, que inclui uma pergunta sobre o tema. Para nós, a a defesa de Alcântara significa não apenas a defesa de nossa soberania, mas também da tradição de luta quilombola do povo negro e, por isso mesmo, só podemos repudiar a postura da direção do PT que se retirou do plebiscito alegando, dentre outras coisas, que estava incorreto incluir a pergunta sobre Alcântara. Nós do PSTU achamos o oposto. Alcântara, hoje, é a demonstração mais concreta dos planos de recolonização dos EUA e a campanha em defesa de seu território tem sido um instrumento fundamental de mobilização.

Dayse Oliveira
Niterói, 01 de setembro de 2002.