Cenas do resgate minutos depois do choque
Agência Cromafoto

A maior tragédia aérea do Brasil já deixou quase 200 mortos, número que deve ser ultrapassado assim que acabarem os regates. Nas ruas de São Paulo, e talvez em todas do país, não se fala em outra coisa: no metrô, no ônibus, nas calçadas o clima é de abatimento e perplexidade. Há uma diferença, porém, com relação aos desastres anteriores. Ninguém mais engole a versão da fatalidade, do acidente inevitável. Ao choque e à tristeza, soma-se a revolta de saber que tudo podia ter sido evitado. Há algo muito errado no ar, e a culpa não é dos controladores de vôo, dos pilotos ou dos trabalhadores do setor.

Um dia depois do acidente, autoridades começaram a fazer um discurso afinado, numa tentativa explícita de culpar o piloto do Airbus 320 da TAM. A versão não colou. A partir de imagens registradas pelo circuito interno do aeroporto de Congonhas, constatou-se que a aeronave estava com uma velocidade muito acima do normal no procedimento de pouso. Com base nisso, surgiram insinuações de que teria havido falha humana. Na edição do Jornal Nacional da Rede Globo, nesta quinta-feira, especialistas que analisaram o vídeo disseram que o avião tocou a pista na velocidade adequada, mas não conseguiu desacelerar logo após.

As últimas informações, entretanto, apontam para falhas mecânicas na aeronave. Na mesma edição do Jornal Nacional, o vice-presidente técnico da TAM, Rui Amparo, admitiu que o Airbus 320 operava com defeito há quatro dias antes do acidente. Apesar disso, não está descartada a hipótese de falhas na pista principal de Congonhas. Aliás, essa tese é bastante forte. O mais provável é haja uma combinação de fatores.

Independentemente de ter sido falha mecânica ou na pista, a tragédia do dia 17 de julho deve ser encarada de uma forma: o que aconteceu foi um crime, o homicídio de 200 pessoas. Os responsáveis: governo federal, Infraero, Anac, companhias aéreas – com destaque para a TAM, neste caso.

O Airbus 320 da TAM
Em 1996, a falha no reverso – equipamento que fica junto às turbinas e auxilia a frenagem – do avião Fokker 100, também da TAM, provocou um desastre, matando 99 pessoas ao cair sobre residências próximas ao aeroporto. Na tragédia de terça-feira, mais uma vez, entra em cena o reverso, junto com a ganância irresponsável da companhia aérea.

Um dos dois reversos apresentou um defeito e a companhia decidiu desativá-lo e manter o avião funcionando com apenas um reverso, o esquerdo. Amparo disse que um dos reversos estava travado para não correr o risco de abrir durante o pouso. Segundo ele, os manuais do Airbus permitiam o uso da aeronave até dez dias depois de detectada a falha.

É evidente, porém, que, apesar dos manuais, o mais prudente e seguro seria desativar o avião. A TAM, como todas as outras companhias aéreas, pouco ligou para a segurança dos passageiros e da tripulação diante do prejuízo que teria ao não utilizar a aeronave. Essa postura é coerente com a pressão que TAM e as outras companhias que operam em Congonhas fizeram para que a pista principal fosse liberada antes de terminada a reforma – sem a colocação do grooving – para aproveitarem a alta temporada das férias de inverno.

Mais lamentável foi a postura do assessor de Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, e de seu assessor de imprensa, Bruno Gaspar. Ao assistir no Jornal Nacional que poderia haver falha mecânica no Airbus, comemoraram com gestos obscenos. A imagem foi registrada por um cinegrafista da emissora. Na ótica de Garcia, danem-se as vítimas, desde que se “livre a cara” do governo.

A obra inacabada
Não foi somente a velocidade alta do avião que as primeiras perícias mostraram. Segundo noticiou o jornal Folha de S. Paulo, o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) realizou vistoria na pista principal de Congonhas após o acidente. As marcas encontradas no asfalto mostram que o avião desviou sua trajetória para a esquerda da pista assim que tocou o solo.

Para o coronel Franco Ferreira, especialista em segurança aeronáutica, “mesmo que as cautelas sejam requeridas durante a apuração, os problemas são claros: problema de meteorologia (antigamente, nesse caso, eram abortados pousos e decolagens), problema com a construção da pista (sem as ranhuras que auxiliam no freio dos aviões). Já se sabe que o avião tocou na pista, mas não houve desaceleração. Isso só ocorre quando há aquaplanagem. Nesse caso, o piloto não tem mais controle sobre a aeronave”.

Já Carlos Camacho, do Sindicato Nacional dos Aeronautas, disse no programa Roda Viva Especial, da TV Cultura, na última quinta-feira, que, apesar da pista de Congonhas estar dentro do tamanho estabelecido pela legislação – a pista principal tem 1.940 metros de comprimento – “toda e qualquer pista com menos de dois mil metros é considerada crítica”. Segundo ele, o caso de Congonhas se torna ainda mais grave por não haver uma área de escape, que seria uma espécie de extensão da pista para eventuais manobras necessárias em caso de problemas no pouso. Como se viu na última terça-feira, a extensão da pista foi o prédio do outro lado da avenida.

MP havia pedido interdição de Congonhas
Na primeira quinzena de janeiro de 2007, o Ministério Público ingressou na Justiça com um pedido de fechamento da pista principal de Congonhas para reforma. Na ação, os procuradores Fernanda Teixeira Taubemblatt e Mário Schusterschitz da Silva Araújo descreveram os riscos: “considerando, ainda, a inexistência das áreas de escape no aeroporto, a possibilidade de que uma dessas aeronaves deslize para fora do aeroporto, atingindo uma das avenidas que o circundam, é realmente palpável”.

Em fevereiro, após analisar o pedido, a Justiça Federal e o Tribunal Regional Federal negaram o pedido e apenas bloquearam o pouso de três modelos de aeronaves. No mesmo mês, o MP entrou com um recurso. A juíza, desta vez, além de não atender ao pedido, liberou o pouso dos três modelos que estavam proibidos.

A batalha seguiu até que, em abril, a Infraero entra num acordo com relação à reforma. A pista principal passou dois meses em obras e deveria ficar fechada por mais trinta dias para que o asfalto se consolidasse e, só então, fosse feito o grooving, os frisos de segurança para aderência do pneu e escoamento da água. O lobby das companhias aéreas, porém, fez com que a Infraero liberasse antes a pista. O interesse das empresas era em aproveitar a alta temporada de férias de inverno, que corresponde ao mês de julho. Assim, no dia 29 de junho, a pista principal do aeroporto foi reinaugurada.

O que era um alerta do MP tornou-se fato concreto na última terça-feira. O Ministério Público, após o acidente, ingressou com novo pedido de interdição, dessa vez de todo o aeroporto. As companhias aéreas, entretanto, não aceitam o fechamento. Foi assim que, na manhã seguinte ao acidente, aviões decolavam e pousavam normalmente na pista auxiliar do aeroporto. A pista principal logo será liberada.

Independentemente das causas
Seja qual for a causa técnica do acidente, a causa política não pode ser jogada para baixo do tapete, ainda que seja a vontade tanto do governo quanto da TAM.

Em primeiro lugar, não se pode esquecer que há uma crise no setor aéreo. A greve dos controladores de vôo trouxe à tona inúmeros alertas feitos por esta categoria com relação à segurança no ar. Em nota publicada no dia 19 de junho, a Federação Brasileira das Associações dos Controladores de Tráfego Aéreo (Febracta) alertou que, no Cindacta I, havia um “desgaste natural dos equipamentos que estão em uso além de sua vida útil”. O texto relatava que “os monitores usados pelos controladores para visualizar e posteriormente instruir as aeronaves possuem uma vida útil média de 6 a 7 anos” e estavam em operação há 10 anos. Isso fazia com que não houvesse uma visualização perfeita, podendo acarretar em erros no controle. A Febracta também denunciou que “relatórios de panes já foram exaustivamente enviados às autoridades aeronáuticas competentes, sem que tenham apresentado uma solução satisfatória”.

Na semana da tragédia, já haviam ocorrido duas derrapagens na pista sem nenhuma conseqüência grave. Horas antes do acidente, um piloto informou à torre de controle que a pista estava escorregadia. A torre ordenou a medição da água e liberou os pousos e decolagens. Dois dias depois do acidente, um Fokker-100 da TAM abortou o pouso em Congonhas e arremeteu. O piloto tomou a decisão porque não tinha ângulo para pousar.

Carlos Camacho, no Roda Viva, disse que só em 2006 foram registradas quatro aquaplanagens, ou seja, derrapagens, na pista de Congonhas. Outro especialista em Direito Aeronáutico, Carlos Paiva, falou ao jornal da TV Cultura que “houve muitos comentários de pilotos de que as condições não estavam favoráveis” em Congonhas.

Várias causas, um mesmo fim
Os fatos são inúmeros e levam a uma mesma conclusão: a estratégia de lucro das companhias, somada à corrupção da Infraero e do governo e ao descaso das autoridades com a situação do setor, apontada pelos controladores de vôos falaram mais alto.

Nenhuma empresa aérea quer deixar de operar em Congonhas. Esse é o aeroporto mais movimentado do país e que mais gera lucros. Junto com isso, Infraero mantém uma série de “falcatruas” com as empreiteiras nas obras dos aeroportos – superfaturamento, desvio de verbas, manipulação de licitações, etc. Para completar, Lula arrocha os controladores de vôo, ignora as denúncias desses e manda puni-los.

Seja qual for o problema técnico que levou à tragédia – falha mecânica ou da pista – o que aconteceu foi o assassinato de cerca de 200 pessoas. Como em qualquer crime, deve haver um culpado, e só uma investigação independente será capaz de apurá-lo.

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