O povo palestino comemora a contundente vitória do Hamas nas eleições de 26 de janeiro. É a primeira vez que o Hamas participa de eleições legislativas e obteve 76 das 132 cadeiras do Parlamento, contra 43 do Fatah. O comparecimento às urnas foi grande: 78% dos eleitores votaram. Com essa vitória, o grupo islâmico terá o poder de comandar o próximo governo da ANP (Autoridade Nacional Palestina), presidida por Mahmud Abbas, do Fatah, nos territórios palestinos, Gaza e Cisjordânia.

Depois de suportar anos de frustração com o Fatah e a direção da ANP, que impuseram um governo corrupto e ditatorial nos territórios palestinos, colaboracionista com Israel, que ajudava a CIA e o Mossad (a polícia secreta israelense) prendendo ou entregando ativistas da resistência palestina para serem assassinados, e que ainda por cima aprofundou a fome e a miséria em Gaza e Cisjordânia, os eleitores quiseram dar um basta à essa situação, com a esperança de que sob um governo do Hamas tudo irá melhorar.

Para entender a derrota do governo de Abbas é necessário lembrar que nesse período de aplicação dos “planos de paz” desde os anos 90, o Fatah se tornou a expressão de uma burguesia palestina submissa e corrupta. Basta um exemplo, de arrepiar os cabelos. O milionário palestino A. Korei (o primeiro ministro renunciante) dono de uma empresa de cimento, vendeu grandes quantidades do produto a Israel para ajudar na construção do Muro da Segregação Racial! A direção do Fatah estava segura de que colaborando com o inimigo podia legitimar-se no poder via eleições e, com a cobertura do imperialismo, enriquecer às custas das aspirações de libertação nacional do povo palestino. Acaba de receber uma resposta direta.

Surpreendendo muita gente, a vitória do Hamas deixa no ar uma pergunta chave: o que vai acontecer agora com as “negociações de paz” com Israel? Logicamente, tudo é possível naquele caldeirão fervente que é o Oriente Médio, mas nada indica que o processo de consolidação do estado gendarme de Israel na região vá ser abandonado, nem a perseguição ao povo palestino e tampouco a fome e a miséria. E isso tem a ver com a política colonial do imperialismo para a região, o papel de Israel nesse projeto, além da história do próprio Hamas e seu perfil como movimento político, coisas bem concretas que as eleições não são capazes de mudar qualitativamente.

Imperialismo exige que Hamas se enquadre
O imperialismo recebeu mais um golpe numa região chave, e em que já está sendo questionado duramente no Iraque. Afinal, Bush e a União Européia vinham apostando em uma solução nos marcos da “saída negociada”, do “processo de paz”, o que incluía as eleições palestinas.

O resultado eleitoral desatou uma pressão mundial do imperialismo para que o Hamas baixe as armas definitivamente e entre na via morta da negociação com Israel, o que pressupõe, de antemão, desistir da luta pela recuperação de todo o território palestino, significa aceitar o plano dos bantustões que vem sendo implementado pelo governo israelense com o apoio de Bush.

Os maiores padrinhos das eleições, tática para tentar canalizar a luta do povo palestino pela via parlamentar, os Estados Unidos e seus aliados imperialistas da Europa, não contavam com uma vitória tão contundente do Hamas. Enchiam a boca para falar em democracia, mas apenas e tão-somente se Abbas vencesse e legitimasse a política de submissão. E por ironia do destino, Al Fatah foi derrotado largamente e Hamas o partido mais votado.

Por isso, até agora a reação de Bush foi cautelosa. Evitou chamar o Hamas de grupo terrorista e mandou um recado, em entrevista coletiva em Washington: “Eu deixei bastante claro que os EUA não apóiam partidos políticos que pregam a destruição de nosso aliado, Israel, e que as pessoas precisam renunciar a essa parte de sua plataforma”.

O Quarteto (EUA, ONU, União Européia e Rússia) que tem feito a mediação entre palestinos e israelenses, divulgou uma nota no mesmo sentido: “uma solução ao conflito requer que todos os participantes do processo democrático renunciem à violência e ao terror e aceitem o direito de Israel existir”. Caso contrário, tanto os EUA quanto a União Européia ameaçaram cortar a ajuda financeira que repassam ao Hamas e que garantem sua sobrevivência.

A preocupação do imperialismo é com a manutenção do Estado de Israel para cumprir seu papel de gendarme na região. Por isso, apoia a política de Sharon e Olmert, que viola todas as resoluções da própria ONU e visa confinar os palestinos em Gaza e parte da Cisjordânia sob controle da ANP. Bush exige que Abbas permaneça no poder, à frente da ANP, para tentar garantir ao máximo a continuidade desse plano, sobretudo neste momento crítico, em que Sharon, seu homem de confiança em Israel, está fora de combate.

Um choque para Israel
O governo de Israel recebeu um golpe inesperado com o resultado das eleições. Mas pretende aproveitar a vitória do Hamas e o conseqüente enfraquecimento de Abbas, seu melhor parceiro, para endurecer ainda mais a política de impor o que eles chamam de “separação unilateral”, que incluiu a saída de Gaza e a construção do muro na Cisjordânia. Ehud Olmert, primeiro-ministro em exercício, deixou claro que não negocia com um partido palestino que prega a destruição de Israel. Mostra com isso, como a exigência de “democracia” deles e de Bush são hipócritas, só pode haver diálogo se ganha o partido que eles decidem. Mas é ainda mais hipócrita vindo de políticos que começaram a carreira em grupos terroristas sionistas e no governo sempre praticaram o terrorismo de Estado.

Israel quer se desobrigar de sequer estar negociando com os palestinos, para avançar em sua política de separá-los definitivamente. As eleições israelenses daqui a dois meses podem ser influenciadas pelos resultados palestinos, fazendo com que Israel acelere a construção do muro de separação que recorta o território da Cisjordânia, e que cerca Jerusalém, subtraindo ainda mais terras dos palestinos.
Essa é a política que já vinha sendo aplicada por Ariel Sharon, então primeiro-ministro de Israel, e batizada de “unilateralismo”. Sem consultar os palestinos, ele retirou os colonos judeus e os soldados israelenses da Faixa de Gaza no ano passado, e se preparava para fazer o mesmo em partes da Cisjordânia, além de construir o muro da separação para isolar os palestinos em faixas mínimas de território.

Mas essas são consideradas concessões demais aos palestinos pelas alas mais fascistas de Israel, reunidas no Likud, partido liderado por Benjamin Netanyahu. Segundo ele, a vitória do Hamas foi resultado da retirada unilateral da Faixa de Gaza, promovida por Sharon, e provou que nenhuma outra retirada deve ocorrer.
Em todo o caso, Israel está em um momento difícil, prestes a realizar eleições, e nenhum movimento mais brusco deverá ocorrer até lá. Segundo informa o jornal The New York Times, os israelenses estão dando início a um debate para ver se, uma vez no poder, o Hamas ficará mais moderado. Shlomo Avineri, cientista político da Universidade Hebraica, opina que um governo liderado pelo Hamas pode não ser tão ameaçador como temem os israelenses. E citou o grupo guerrilheiro libanês Hezbollah, que combateu as tropas israelenses durante vários anos no sul do Líbano, e que agora participa da política libanesa. “O Hamas poderá se comportar como o Hezbollah”, disse Avineri. “A retórica será dura, e eles ainda estarão armados, mas serão parte de um sistema político, e as suas ações serão mais contidas”.

O papel do Hamas
É com o que conta o governo de Israel e alguns dos imperialistas europeus. Mas não é tão simples assim. O Hamas surgiu da Irmandade Muçulmana do Egito, país que até 1967 dominava a Faixa de Gaza. Foi estimulado pelos sauditas e até por setores do próprio governo israelense a assumir tarefas filantrópicas e de serviços sociais para ser um contraponto religioso à OLP, organização laica e nacionalista que naquele momento (anos 80) era principal inimigo de Israel.

À medida que criava raízes em Gaza e Cisjordânia, o Hamas acabou tendo que se unir à resistência palestina. Quando explodiu a primeira Intifada, em dezembro de 1987, lançaram oficialmente o Movimento de Resistência Islâmica Hamas. De inspiração guerrilheirista, mas combinando isso com os serviços comunitários e religiosos, no que se assemelha ao Hezbollah libanês, o Hamas serviu como pólo de atração para milhares de jovens palestinos dispostos a pegar em armas para lutar contra Israel, já que o Fatah, principal partido da OLP, havia abandonado essa causa e entrado em acordo com Israel para construir a ANP. E o Hamas ganhava prestígio nos territórios, por não se identificar com a corrupção da ANP de Arafat e Abbas.

Com isso, tornou-se a maior organização militante muçulmana na região, e adotou as táticas de terrorismo, lançando uma série de atentados contra alvos militares israelenses. Em represália, Israel desatou uma onda de assassinatos seletivos que acabaram com a morte de vários dos principais dirigentes do Hamas, inclusive o xeque tetraplégico Ahmed Yasin, um dos fundadores do movimento, assassinado por Israel em 2004.

Na década de 90, em seu afã por entrar em acordo com Israel, a OLP de Yasser Arafat tentou fazer com que o Hamas baixasse as armas. E em 1996 as forças de segurança palestinas desataram uma onda de perseguição contra o Hamas, que concluiu com vários de seus dirigentes presos e brutalmente torturados.

O Hamas se posicionou contra os Acordos de Oslo, assinados em 1993 entre a OLP e Israel, sob o patrocínio dos EUA, e desde então passou a ser considerado uma organização terrorista. Por isso, tem seus bens bloqueados, e para financiar-se recebe ajuda financeira da Arábia Saudita e doações de uma infinidade de muçulmanos em todos os países árabes. Recebe fundos também de ONGs e órgãos oficiais da União Européia e dos Estados Unidos.

Mas apesar de ter votado contra os Acordos de Oslo, o Hamas cumpriu integralmente a última trégua estabelecida pela direção da ANP com o governo de Israel, e priorizou ser um partido assistencialista, dedicando-se a programas sociais e aparecendo como alternativa frente à inação e corrupção da ANP. Mas continua armado e a pressão dos combatentes e do povo palestino que os apoia é grande.

Proposta de um Estado islâmico não resolve
Os palestinos estão radicalizados, como mostra o resultado eleitoral. Tanto que para não perder o pé da situação, o Hamas teve de manter seu discurso radical, dizendo que não vai se desarmar e não vai desistir de sua bandeira de destruir Israel. No entanto, já deu inúmeras mostras de que não será assim.
O povo palestino tem de confiar em suas próprias forças e na continuidade de sua luta contra Israel. Apoiou o Hamas porque quer a devolução do território ocupado por Israel e exige coerência e firmeza nessa luta.

A paz tão desejada pelo povo palestino não será possível enquanto existir o Estado de Israel, um estado colonial e racista, que nunca desistiu de fazer uma limpeza étnica contra os palestinos. Assim como na antiga África do Sul, não podia haver liberdade para os negros sem acabar com o apartheid dos brancos afrikaners racistas, sem a destruição do apartheid que está na raiz da constituição de Israel não será possível a paz entre judeus e palestinos.

Neste sentido, a proposta do Hamas de estabelecer um estado islâmico, ou seja, também teocrático, só que dirigido pelos muçulmanos, é um equívoco e um retrocesso, como já se viu no Irã e na Arábia Saudita. Em vez de unir na luta a todos os que se opõem à exclusão imposta pelo sionismo, independente de sua crença ou etnia, o Hamas fecha a proposta só para aqueles de fé muçulmana e alimenta a propaganda sionista e imperialista de que se trata de uma luta religiosa.

Assim como era compreensível a alegria dos palestinos com a saída de Sharon, é compreensível sua alegria agora, com a vitória do Hamas nas eleições. Mas é preciso ter claro que as eleições em si não vão levar a isso, e que a proposta do Hamas de negociar “indiretamente” com Israel pode significar a aceitação da situação atual, caso não se prossiga a Intifada. Por mais dura que seja essa luta, só a continuidade da Intifada e da mobilização revolucionária dos palestinos e todos os povos do Oriente Médio poderá derrotar Israel e a política imperialista, condição primeira para abrir a perspectiva de uma nova vida para palestinos e judeus numa Palestina laica, democrática e não rascista.