Foto Divulgação Estado do RJ
Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

Desde que o novo coronavírus chegou ao Brasil em fevereiro deste ano, mais de 34 mil pessoas já perderam a vida. O sistema público de saúde, fragilizado por décadas de cortes de verbas, sucateamento e pilhagem, se viu em situação dramática para enfrentar um inimigo desconhecido e letal. Em meio à crise sanitária, governos federal, estaduais e municipais correram para flexibilizar regras administrativas para enfrentar a pandemia. Segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foram editados mais de 800 atos normativos relacionados à Covid-19, como a dispensa de licitações para aquisição de equipamentos, insumos e serviços, repasses financeiros, etc.

Essas medidas, supostamente necessárias para garantir o atendimento à população, se transformou numa enorme fonte de corrupção e desvios de recursos públicos. De norte a sul do país, pipocam denúncias de superfaturamento, suspeitas de fraude em contratos emergenciais, compra de equipamentos e insumos fora das especificações ou pagos e não entregues e até desvios no pagamento do auxílio emergencial. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), que atua nas investigações quando há repasse da União, mais de 400 procedimentos já foram abertos de forma preliminar em pelo menos 11 Estados e DF até agora, que podem originar processos criminais.

Ponta do iceberg

A recente operação Placebo da Polícia Federal (PF) deflagrada no último dia 16 envolvendo inclusive busca e apreensão na residência oficial do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), é apenas a ponta de um enorme iceberg. No início do mês, dois ex-subsecretários executivos da Secretaria Estadual de Saúde, Gabriell Neves e Gustavo Borges, foram presos pela Polícia Civil por suspeita de fraudes na compra de respiradores, que teriam sido adquiridos com superfaturamento de cerca de R$ 4,9 milhões. Além dos respiradores, foram adquiridos sem licitação, máscaras e testes rápidos.

No último dia 15, outra operação da PF, a Favorito, que apura desvios em contratos, entre outros, para a instalação de hospitais de campanha no estado, levou à prisão o ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) Paulo Melo e o empresário Mário Peixoto. Conforme comunicado de imprensa da PF, “surgiram provas de que a organização criminosa persiste nas práticas delituosas, inclusive se valendo da situação de calamidade ocasionada pela pandemia do coronavírus, que autoriza contratações emergenciais e sem licitação, para obter contratos milionários de forma ilícita com o poder público”.

Vale ressaltar que a IABAS, Organização Social de Saúde (OSS) que está sendo investigada por irregularidades no Rio de Janeiro, é a mesma que participa na administração do hospital de campanha do Anhembi, um dos três hospitais de campanha montados pelo prefeito de São Paulo Bruno Covas (PSDB) e entregues para a iniciativa privada. Isso apesar de pesar sobre ela dois processos no Tribunal de Contas do Município (TCM) que correm simultaneamente e apuram supostas irregularidades em contratos entre o instituto e a prefeitura em 2017.

O hospital de campanha no Anhembi tem sido alvo de queixas de pacientes e familiares, como falta de medicamentos, cobertores, exames e até itens de proteção individual. O teto do pavilhão onde foi montada a estrutura também apresenta problemas e teve um pedido emergencial de uma verba de R$ 1,2 milhão para emendas.

Operação Placebo investiga denúncia de fraude e superfaturamento

Farra generalizada

A farra com dinheiro público é generalizada. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) é investigado por fechar contratos de compra de respiradores sem fazer licitação. Há suspeita de superfaturamento. Foram comprados 3 mil aparelhos da China a um custo médio de R$ 180 reais cada um, bem acima do valor de mercado, já que modelos de ponta podem ser encontrados com preços na faixa de R$ 60 mil. No total, a compra custou aos cofres públicos estaduais U$ 100 milhões (cerca de R$ 550 mi), quase metade dos R$ 1,2 bilhão estimado pelo governo para custos extras com a pandemia, dos  quais U$ 44 milhões (mais de R$ 242 mi) foram pagos. Apesar da justificativa para a megacompra ter sido o prazo de entrega, passados mais de um mês de fechado o contrato, dos 3 mil respiradores apenas 50 foram entregues.

São Paulo – Sessão solene de posse dos vereadores e do prefeito João Doria, na Câmara Municipal (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Em Santa Catarina, a compra sem licitação de 200 respiradores artificiais causou a queda de dois secretários de estado, a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa e um pedido de impeachment do governador Carlos Moisés (PSL) por uma suposta fraude na aquisição dos equipamentos que custaram R$ 33 milhões, pagos antecipadamente e que também nunca chegaram. Entre os indícios de crime estão corrupção, falsidade ideológica de documentos oficiais, utilização de empresas de fachada e lavagem de dinheiro, entre outras infrações.

Em Minas Gerais, a Rede de Controle e Combate à Corrupção investiga a destinação de R$ 500 milhões enviados pelo governo federal para o enfrentamento à pandemia. O grupo já encontrou casos de superfaturamento, contratação de empresas que não fornecem bens para saúde e vínculo entre empresa contratada e funcionários públicos. Trinta contratos sem licitação são investigados.

No Amapá, a PF apura superfaturamento na aquisição de equipamentos de proteção individual no valor de R$ 930 mil por meio de dispensa de licitação. No entanto, se observados os preços médios praticados no mercado o valor de referência seria de cerca de R$ 291 mil, ou seja, menos de um terço do que foi gasto. Alguns itens como máscaras duplas e triplas atingiram patamares de 814% e 535% de sobrepreço, respectivamente.

Outro estado investigado pela compra fraudulenta de respiradores é o Pará, onde a operação Profilaxia da PF apura a compra de equipamentos defeituosos pelo governo do estado, no valor aproximado de R$ 25,2 milhões. O preço médio de uma modelo similar ao adquirido pelo governo do Pará custa no mercado nacional e internacional em torno de R$ 20 mil, mas a compra foi fechada por R$ 126 mil cada unidade, ou 6,3 vezes a mais, o que acendeu o sinal vermelho das autoridades.

Já na Paraíba, o alvo é a Prefeitura de Aroeiras, suspeita de usar recursos do Fundo Nacional de Saúde, por meio de dispensa de licitação, para compra de livros, supostamente com o intuito de auxiliar na disseminação de informação e combate à situação de pandemia do coronavírus. Segundo a PF, livros e cartilhas similares estão disponibilizadas gratuitamente na página do Ministério da Saúde na internet. A Controladoria Geral da União (CGU) apontou que um dos livros adquirido pelo município teve um curto 330% acima do valor comercializado na internet, o que ocasionou um superfaturamento correspondente a R$ 48,2 mil.

No Amazonas, estado que vive uma das piores crises sanitárias do país, o sistema de saúde está fragilizado não apenas pela pandemia, mas sobretudo pela má gestão e pilhagem que ocorrem há vários governos. A operação Maus Caminhos investiga desvios de recursos públicos no estado desde 2016, sendo que ex-secretários, ex-gestores de saúde e empresários já foram alvos da operação. As investigações do MPF apontam o médico e empresário Mouhamad Moustafa, sócio e administrador da Salvare Serviços Médicos, como chefe de um esquema criminoso que desviou mais de R$ 100 milhões em recursos públicos. Até o início de março, Moustafa acumulava sete condenações criminais, que somam 81 anos de cadeia. No total 118 ações penais e de improbidade administrativa contra mais de 80 pessoas físicas acusadas nos processos foram ajuizadas pelo MPF. As condenações chegam a 309 anos, e os pedidos de reparação, a R$ 104 milhões.

Coronavaucher

Mas não é só estados e municípios que patrocinam a festança com o dinheiro público. No início do mês de maio, quando milhares de trabalhadores ainda esperavam desesperados a liberação do auxílio emergencial pelo aplicativo da Caixa Econômica e outros aguardavam em filas intermináveis, até mesmo debaixo de chuva, para tentar sacar os R$ 600, surgiu a denúncia de que 73,2 mil militares das Forças Armadas, entre ativos, inativos, temporários, pensionistas, dependentes e anistiados haviam recebido de forma indevida o auxílio destinados a trabalhadores informais afetados economicamente pela pandemia.

Embora o Ministro da Cidadania Onyx Lorenzoni tenha declarado diversas vezes que um forte esquema de segurança havia sido montado e fraudadores do auxílio emergencial seriam postos na cadeia, uma semana após a denúncia do pagamento indevidos aos militares o ministério lançou um site para devolução dos valores por “cidadãos arrependidos”.

Farra legalizada

Em fevereiro, o Congresso normatizou a dispensa de licitação para a “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”. A Lei do Coronavírus, que teria como objetivo, supostamente, facilitar a aplicação de recursos públicos para o combate a pandemia, na verdade abriu as portas para a corrupção. Além disso, uma série de medidas provisórias (MPs) editadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao longo da pandemia ainda facilitam o desvio de verbas e dificultam o combate e a punição dos gestores envolvidos em corrupção.

Como a MP 928/20, por exemplo, editada em 24 de março e que fazia alterações na Lei de Acesso à Informação limitando o acesso às informações prestadas por órgãos públicos durante a emergência de saúde pública decretada em razão da pandemia do novo coronavírus. No final de abril a MP foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para o relator, o Ministro Alexandre de Moraes, a MP instituiu “restrições genéricas e abusivas, sem qualquer razoabilidade”.

No último dia 21 de maio, o STF limitou o alcance de outra medida provisória, a MP 966/20, que livrava agentes públicos de processos relativos a atos tomados para conter a pandemia. Segundo juristas, da forma como foi redigida, a medida permitiria, entre outras coisas, a autoridades e servidores se livrarem de processos de improbidade administrativa.

Um programa de classe contra a corrupção

O governo Bolsonaro e seus apoiadores vêm se valendo das denúncias e suspeitas de corrupção envolvendo governadores e prefeitos (em especial os de oposição) para justificar seu discurso contra o isolamento social, argumentando que aqueles estão usando a pandemia para desviar recursos públicos e enriquecer às custas da miséria do povo, mas está mais que evidente que Bolsonaro não está nem um pouco preocupado com o combate à corrupção, se fosse assim não teria editado medidas provisórias limitando ao acesso à informação ou livrando gestores de processos criminais por decisões tomadas durante a pandemia.

Além disso o próprio Bolsonaro está envolvido até o pescoço em denúncias, a ponto de fazer de tudo (incluindo sacrificar Sérgio Moro) para trocar a direção da PF no Rio de Janeiro para proteger seus filhos e “amigos” de investigações nesse sentido. De modo que sem botar pra fora Bolsonaro, Mourão e toda sua trupe não há como implementar qualquer medida séria de combate à corrupção.

Por outro lado, não dá pra aceitar a farra com dinheiro público por parte dos gestores estaduais e municipais sob a alegação de agilidade para garantir o atendimento à população. É preciso que todas as denúncias que surgiram até agora sejam rigorosamente apuradas, sem interferências políticas ou seletividade nas investigações, e prisão e confisco dos bens de todos os corruptos e corruptores.

Por fim, é preciso garantir a mais ampla transparência e o controle social do uso do dinheiro público, para isso defendemos a formação de comitês compostos por trabalhadores e representantes da comunidade, que decidam quando, como e onde o dinheiro público será usado.