Ela cantou a vida do campo, as injustiças do mundo, a hipocrisia do clero, a nostalgia da juventude e a alegria da vida. Num momento em que a imensa maioria das salas de cinema do país é dominada pelos blockbusters norte-americanos, uma bem-vinda exceção é o premiado “Violeta Foi para o Céu” (Violeta se fue a Los Cielos), de Andrés Wood, mesmo diretor do chileno Machuca. Co-produção entre Chile, Argentina e Brasil, o filme traz a vida da cantora Violeta Parra, uma das principais inspiradoras e precursoras do movimento que ficaria conhecido como Nova Canção Chilena (anos 1960-1970).

Grande vencedor do Sundance Festival 2012, aqui no Brasil conquistou o prêmio principal do Festival de Cinema do Ceará, cujo tema foram justamente as lutas sociais da América Latina. Baseado na biografia de Violeta escrita por seu filho, Ángel Parra, um dos colaboradores do filme inclusive, “Violeta foi Para o Céu” não é tão político quanto o filme que tornou Wood conhecido, fazendo a opção de mergulhar no universo particular da cantora, traçando um perfil poético e ao mesmo tempo dramático de Violeta Parra. Para isso colabora a interpretação da atriz Francisca Gavilán, que incorpora a personagem de maneira impressionante, assim como sua inquietude, rebeldia e, ao mesmo tempo, tristeza e melancolia. A atriz chega até mesmo a interpretar as músicas da cantora com perfeição, o que requereu quase um ano de intenso ensaio.

Do Chile para o mundo
Abdicando da ordem cronológica da narrativa, o longa traz reconstituições da entrevista de Violeta Parra a uma TV argentina entrecortando diferentes fases de sua trajetória. Podemos então ver a pequena cantora junto a seu pai, professor de música e alcoólatra, numa pequena província do Chile. Autodidata ao violão, desde pequena Violeta se apresentava junto a seus irmãos, os “Los Parras”, em circos e festas nas pequenas cidades do interior. Foi só mais tarde, nos anos 1950, que a cantora concentrou seus esforços nas pesquisas de músicas folclóricas transmitidas apenas oralmente nas pequenas vilas. Responsável por um programa de rádio, seu objetivo era impedir que essas canções se perdessem com o tempo e difundi-las ao restante do país.
Mas o estreito país incrustrado entre o Pacífico e o continente americano parecia pequeno a Violeta. Convidada para uma apresentação na Polônia, não pensou duas vezes antes de fazer as malas e se aventurar pelo velho continente. Passou pela URSS e se estabeleceu por alguns anos na França, aonde desenvolveu suas outras habilidades além da música. O filme mostra um aspecto menos conhecido da biografia de Violeta como artista plástica, a ponto de ter sido a primeira latino-americana a expor obras, no caso tapeçarias, no museu do Louvre, em Paris. Multifacetada, transitava com desenvoltura também pela pintura e cerâmica. Questionada por uma jornalista se tivesse que escolher apenas uma dessas expressões artísticas, qual escolheria, Violeta respondeu: “Eu escolheria ficar com as pessoas, porque são elas que me inspiram”.

Músicas de protesto
Se Violeta se inspirava nas pessoas, foi entre e para os pobres que ela escolheu cantar. Ainda que o filme de Wood não se detenha no aspecto político de sua vida, mostra algumas passagens no mínimo interessantes. Como na espirituosa entrevista à TV argentina na qual, ao ser questionada se “era verdade que era comunista”, respondeu: “Sou tão comunista que, se você me der um tiro, derramarei sangue vermelho”. “Eu também tenho sangue vermelho”, respondeu o apresentador, no que Violeta respondeu “Então somos companheiros”, provocando risadas no público. Em outro momento, ao ser convidada para se apresentar em um requintado jantar em Santiago, Violeta foi tratada com desprezo e abandonou o local insultando os presentes.

As músicas de Violeta transpiram indignação às injustiças e, num país profundamente religioso, constituem verdadeiros hinos anticlericais. Como na belíssima “Por que los pobres no tienen” (Porque os pobres não tem): “De tempos imemoriais/ que inventaram o inferno/ para assustar os pobres/ com seus castigos eternos/ e o pobre, que é inocente/ com sua inocência crendo”. Em outra canção “Que dirá el santo padre”, escrita em homenagem a Julián Grimau, comunista fuzilado pela ditadura franquista, Violeta dispara: “Vejam como nos/ falam do paraíso/quando nos mandam balas/como granizo”. Composições que, mais de meio século depois, continuam atuais, como a canção “Me gustan los estudiantes”, entoados durante as recentes mobilizações dos estudantes chilenos que viraram o país de cabeça para baixo no ano passado.

A cantora e sua obra já traziam as principais características do que viria a ser o movimento da Nova Canção Chilena, que almejava o resgate da música folclórica e da arte do povo como inspiração para os novos artistas, traçando uma contraposição à cultura importada, sobretudo a dos EUA. Tinha por objetivo, ainda, a integração dos povos latino-americanos e contava com paralelos, como a Nova Canção (Argentina, Chile, Uruguai), ou até mesmo a MPB no Brasil. No Chile, o movimento teve como principal expressão o cantor e dramaturgo Victor Jara, que via em Violeta Parra uma verdadeira professora. O contexto, de profunda polarização social e política, que viria a desembocar na sucessão de golpes no cone sul e no de Pinochet em 1973, que inauguraria um período sombrio de uma brutal ditadura, explicam em parte esses movimentos. Ainda que contenha pressupostos discutíveis, não se pode desconsiderar seu papel.

Vivendo e morrendo com intensidade
De seu início ao fim, a vida de Violeta Parra é permeada por um certo tom trágico. Sua personalidade contraditória e complexa tornou-se parte do mito que envolve sua figura até hoje. O certo, porém, é que Violeta Parra viveu com intensidade e paixão, até o seu suicídio em 1967, aos 50 anos. Não aceitou o tolhimento do marido quando jovem, levantou-se contra a igreja e as injustiças e fez de suas músicas armas de protesto e de celebração da vida, como uma de suas canções mais conhecidas por aqui, “Gracias a La Vida”.

Mesmo com importantes lacunas, “Violeta foi para o Céu” veio em boa hora, mostrando a atualidade de uma artista que o mundo conheceu em sua época e que precisa, agora, reconhecer.
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