Manifestantes nas ruas
Reprodução

No dia 27 de fevereiro, completam-se 20 anos do Caracazo, insurreição popular que sacudiu a capital da Venezuela em 1989. O episódio ocorreu 15 dias após a posse do segundo governo de Carlos Andrés Pérez e terminou num horrendo massacre patrocinado pela polícia e pelo exército. Em três dias, foram mortas entre 9 e 11 mil pessoas e milhares foram torturados. Números que fazem os genocídios de qualquer ditadura parecer brincadeira de criança.

Nos anos 1980, a Venezuela vivia uma conturbada situação política e econômica. Os dias de bonança do petróleo, que fizeram o país ser comparado à Arábia Saudita na década de 1970, tinham ficado para trás. A economia venezuelana caiu a partir do endividamento gerado após o boom petroleiro. A Venezuela enfrentava uma terrível inflação, faltava alimento, a fome atingia a população mais pobre que sofria, ainda, a repressão policial.

A corrupção afetava todos os níveis do Estado. Durante o então governo do presidente Lusinchi, atingiu níveis escandalosos, com uma intrincada rede de servidores públicos construída na base de favores, regalias, que abarcava ministérios, Forças Armadas, empresários e o Congresso.

A situação social era explosiva. A falta de alimentos e a pesada inflação que corroia os salários começaram a provocar greves esparsas e mobilizações estudantis. Em 1987, professores entram em greve. Em seguida, é a vez dos estudantes protestarem contra vários assassinatos de jovens por agentes do governo. Em março de 1988, marchas estudantis chegaram a reunir 18 mil pessoas em Caracas.

Elio Colmenarez, no seu livro “A Insurreição de Fevereiro”, comenta os efeitos psicológicos sobre as massas do ressurgimento de uma velha figura política venezuelana: “No meio desta crise generalizada surgiu, qual uma Fênix, Carlos Andrés Pérez. Sua identificação com os anos de bonança econômica, o apoio dos setores “anticorrupção” encabeçados por Piñerua, ex-dirigentes de esquerda em seu comando de campanha, uma discreta oposição ao governo de Lusinchi; suas promessas de tempos melhores, um discurso anti-FMI e uma imagem terceiro-mundista alentada inclusive por Fidel Castro e pelos sandinistas, conformaram o jogo onde a maioria do país apostou suas esperanças”.

Pérez foi eleito facilmente e a expectativa sobre o anúncio de novas medidas era enorme. No dia 16 de fevereiro de 1989, o novo governo foi até a TV apresentar o novo plano econômico. Em seu livro, Colmenarez comenta o plano: “O pacote não se diferenciou em nada dos tradicionais planos que se vieram aplicando no resto dos países latino-americanos. A mesma receita do FMI que o próprio Carlos Andrés Perez denunciou como “martirizadora dos povos”, na campanha eleitoral: Libertação de taxas de interesses, privatização de empresas do estado, aumento dos serviços, a gasolina, os fertilizantes etc. Como benefício social mal, anunciou um aumento salarial de 30% limitado aos empregados públicos. O resto dos trabalhadores deveriam esperar por um acordo entre a CTV [na época principal central sindical do país] e a Fedecámaras”.

O efeito imediato do programa de ajustes promovido pelo FMI foi a liberação dos preços que gerou reajustes bruscos para as pessoas de menor renda. Muitos não acreditavam quando alguns produtos apareceram com o preço triplicado. Como se não bastasse, o governo ainda se recusou a mostrar ao Congresso a carta de intenção que assinaria com o FMI, ocultando o compromisso de Pérez em manter o país preso às amarras do imperialismo.

Um jornalista escreveu sobre estes dias: “Todos os preços têm subido, estamos padecendo inflação e desabastecimento. O café, o azeite, o pão e os detergentes não se encontram em nenhuma parte. Contrastando com esta realidade, nas grandes festas da oligarquia o dinheiro abunda… Champanhe, salmão e caviar. Todos devemos apertar o cinto! gritam os donos do poder”

Faltava apenas a centelha para explodir o barril de pólvora. Em algumas localidades no interior, o povo faminto já saqueava mercados em busca de alimentos. Logo as ruas das cidades estariam em chamas. A faísca para o levante foi o aumento da passagem do transporte. O governo tentou congelar a passagem para impedir protestos, mas os donos de ônibus não acataram a decisão.

Na manhã de 27 de fevereiro, estudantes e trabalhadores se recusaram a pagar a passagem mais cara. A recusa produziu os enfrentamentos. No terminal de Guarenas, cidade satélite da capital, travaram-se os primeiros protestos. O tumulto tomou conta de um terminal da região metropolitana de Caracas. Alguns estudantes, já acostumados a enfrentar a polícia, formaram barricadas. Saques começaram e outras cidades dormitórios registravam protestos. O povo então toma as ruas numa onda de saques a supermercados e lojas que atinge não apenas a periferia, mas toda capital, inclusive as quadras próximas a Miraflores.

A polícia bem que tentou esboçar alguma reação, mas ficou impotente diante das ruas tomadas pelo povo pobre dos “barrios”, as favelas de Caracas.

A insurreição mostrou a impotência policial quando soldados tentaram impedir que o povo tomasse uma importante auto-pista de Caracas.

“Os soldados apontaram com suas armas e ordenaram que se detivessem. Desde a marcha respondem-lhe com um megafone: “Protestamos contra o pacote, não contra vocês. Não disparem, estamos desarmados”. Continuou-se avançando, desta vez com as mãos ao alto. Os policiais não continuaram apontando as armas, mas não dispararam. Após ser cercados, um oficial disse: “Está bem, fechem a autopista, mas respeitem a propriedade”. (A Insurreição de Fevereiro)

Neste dia a repressão da polícia falhou. Muitos soldados acabaram retornando para casa ou se juntando a população revoltada. A impotência da repressão era apenas um aspecto de uma paralisia progressiva de todas as instituições do regime. Nem os sindicatos oficiais, a CTV, a Igreja, o Congresso, nem nenhum dos partidos do Parlamento, de direita ou de esquerda, estavam na rua, nem eram capazes de liderar o processo.

No dia 28, nas primeiras horas da manhã a rua estava repleta de pedras, veículos incendiados, rastros de uma batalha noturna. Na madrugada anterior a maior parte dos policiais tinha sumido das ruas. Um indício de que a repressão tinha sido derrotada no primeiro dia de insurreição.

“Alguns que tentaram seguir para seu trabalho, não encontravam transporte. Os que conseguiram chegar por seus próprios meios encontraram as portas fechadas. Mas quase ninguém pensava em trabalhar. De fato, existia uma greve geral não convocada por ninguém” (A Insurreição de Fevereiro).

Mas a insurreição não derrotou apenas a polícia. Os saques aos supermercados colocaram comida nas mesas vazias de milhões de pobres. Crianças miseráveis e subnutridas se alimentaram fartamente depois de dias de fome. Os especulares que retiravam os produtos das prateleiras para remarcar preços foram expropriados. Bancos e caixas eletrônicos foram destruídos. Não se tratava de violência indiscriminada. Era a justiça popular nas ruas. “Não estou arrependida. Foi um saque honrado. Em minha casa há comida e quatro bermudas, uma flanela, um par de sapatos e uma correia para mim. Voltaria a fazer? Não sei”, confessava uma mulher ao “Diário de Caracas”.

O governo estava paralisado e nem conseguiu convocar uma reunião de emergência com os ministros, porque estes tinham fugido e os ministérios estavam vazios. Havia soldados nas ruas, mas estes também se encontravam hesitantes. Saques eram realizados na frente de tanques, mas, confusos, os soldados não reprimiam.

Mas no final da tarde o governo dá os primeiros passos em direção ao Estado de Sítio. Garantias constitucionais, como liberdade de imprensa, de manifestação e de reunião, foram suspensas. Começava assim a ofensiva do regime para recobrar o controle das ruas e das cidades. Mas houve resistência das massas.

“Caracas começou a converter em um inferno, comparado por jornalistas internacionais com Beirute ou Santiago de Chile durante o golpe de Pinochet. Não teve um só minuto em que se deixasse de ouvir os tiros das metralhadoras (…). Em alguns pontos os soldados permaneciam inertes, ou por temor ou por não saber que fazer diante das milhares de pessoas que saqueavam debaixo de seus narizes, no meio da noite e em pleno toque de recolher. A disposição das massas avariava a vontade de muitos soldados. O povo, ante das rajadas de metralhadoras, dispersava-se para voltar a se recompor mais adiante para voltar a avançar” (A Insurreição de Fevereiro).

Muitos resistiram à repressão com armas em punho. No dia 1° de março a população saiu às ruas em nova rebelião. Os soldados do exército já estavam exaustos e fustigados. Mas o governo deslocou novas tropas e mais de 8 mil soldados desembarcam nos arredores de Caracas. Gente que na sua maioria vinha do interior do país e não tinha nenhum vínculo com a população local. Compunham também soldados de Comandos Especiais, profissionais treinados para matar. Era a lei de guerra aplicada contra o povo para impor o receituário econômico do FMI.

A repressão foi brutal. Dos morros e barricadas a resistência combatia numa evidente desigual correlação de forças. Os soldados metralhavam pessoas indefesas, inclusive crianças e mulheres grávidas. São inúmeras as histórias de horror e massacre. Segundo o jornal O Nacional, do dia 10 de março de 1989, “No Bairro Nova Tacagua uma jovem de 16 anos que esperava em uma das ruas a sua mãe recebeu uma rajada de um jeep. Outro rapaz foi morto por dois motorizados da Disip em frente ao módulo policial.

A perseguição também era seletiva. Os policiais visavam prender e assassinar os principais dirigentes das universidades e dos bairros populares. Enquanto o horror tomava conta de Caracas, a imprensa na TV chamava a classe média a resistir aos “vândalos saqueadores”. Foi cômica a reação de setores da burguesia do Terrazas del Club Hípico ou Montalbán organizando barricadas para se defender da “gente dos morros” que nunca chegou.

Cadáveres foram enterrados em fossas comuns. O número de desaparecidos era incontável. Mas o governo do social-democrata Carlos Andrés Pérez dizia que a cifra de mortos atingia 243 pessoas. Ninguém engoliu. As organizações populares estimam que as vítimas da repressão estejam entre 9 e 11 mil pessoas, além de dezenas de milhares de torturados. A indignação tomou conta do país e a flagrante violação dos direitos humanos fez com que Carlos Andrés Pérez fosse denunciada pela Anistia Internacional.

Os acontecimentos do fevereiro venezuelano mudaram radicalmente a relação entre as classes sociais no país. Uma situação política revolucionária se abriu. O Caracazo pôs em crise todas as instituições. Pérez continuou no governo, mas aterrorizado pelos rumores de um novo levante. O facínora foi derrubado em 1993 em meio a um escândalo de corrupção. As instituições estavam desmoralizadas. O Congresso se encontrava falido junto com os partidos. A imagem das Forças Armadas não estava muito melhor, porque os militares mataram milhares durante o Caracazo. Vários setores entraram em crise. O tenente-coronel Chávez, expressão dessa crise, tentou um golpe, em 1992, cujo fracasso o levou à prisão. Mas, em 1994, saiu da cadeia com um prestígio enorme, e se candidatou a presidente, vencendo as eleições, em 1998.

Vinte anos depois do Caracazo, e no mesmo ano que Chávez completa 10 anos no governo, segue reinando uma vergonhosa impunidade e silêncio. Jamais foram julgados e condenados os responsáveis pelo crime. Nenhum governo depois de Pérez pensou em fazer isso. Nem Chávez, que utiliza a memória do Caracazo para buscar prestígio político.

Nem o atual governo, nem a Assembléia Nacional, nem a Defensoria do Povo, nem o Poder Judiciário se atreveram sequer a retomar, ainda que timidamente, as investigações do genocídio. As vítimas da repressão, porém, não foram esquecidas. São mártires da luta do povo contra o imperialismo e seus governos “democráticos”.