Governo reprime greve e assassina 34 mineirosNo dia 17 de agosto, a polícia sul-africana reprimiu barbaramente uma manifestação de 3 mill trabalhadores em greve da mina Marikana, a 100km de Johanesburgo, assassinando 34 operários e ferindo outros 78. O acontecimento recorda os piores atos repressivos da época do apartheid e nos obriga a pergunta: o que mudou na África do Sul desde o fim do sinistro regime político em 1994?

Os atos de Marikana foram comparados com o massacre de Sharperile, um subúrbio de Johanesburgo, em 1960, e com o tristemente célebre massacre de Soweto, outro subúrbio dessa cidade, em 1976. São também demonstrações de que a profunda desigualdade social entre a minoria branca (menos de 10%) e a imensa maioria negra (80%), de fato uma clara divisão de classes, não terminou com o apartheid, tampouco se alterou a estrutura econômica e social, base dessa profunda desigualdade.

O que mudou foi o fato de que o atual regime e governos são controlados por um pequeno setor da população negra, uma nova burguesia que passou a defender o Estado capitalista. Por isso, já não lhes interessa questionar a exploração e, inclusive, aceitam que a burguesia branca continue com suas imensas riquezas e mantenham seus privilégios, impondo uma exploração selvagem aos trabalhadores cuja imensa maioria é negra. Por isso, para entender as contradições que estouraram em Marikana, é necessário repassar brevemente alguns elementos da história sul-africana.

O apartheid
África do Sul tem quase 50 milhões de habitantes e é o país mais desenvolvido e industrializado da África. O eixo de sua economia é a atividade mineradora, especialmente a extração de ouro, diamantes e platina (é o principal produtor mundial desse metal). Atualmente, existem cerca de 500 mil trabalhadores mineiros, em sua absoluta maioria negros já que, pelas condições de trabalho e salários, os brancos não querem trabalhar na mineração.

O país sofreu duas colonizações brancas: uma de origem inglesa e outra holandesa, que deu origem aos chamados “africâner”. Os africâner foram ganhando predomínio e, a partir de 1910, começaram a construir o regime do apartheid no qual os negros não tinham voto nem nenhum direito político. Este sistema foi completado em 1948.
Como parte desse sistema, formaram-se verdadeiras aberrações jurídicas, os bantustões (como Lesotho), supostas repúblicas negras independentes, das quais seus habitantes só podiam sair com permissões especiais, inclusive para ir trabalhar diariamente. Quem transgredia essa permissão era duramente reprimido.

Os níveis de exploração da população negra eram próximos da escravidão. Viviam em gigantescas favelas ou em vilas miseráveis, das quais a mais famosa foi a de Soweto, com quase um milhão de habitantes, quase sem nenhum serviço básico garantido.
Sob a base dessa superexploração e de um imenso aparato repressivo estatal, a burguesia branca sul-africana, associada aos capitais ingleses e holandeses, construiu seu poderio e sua riqueza.

O fim do apartheid
A população negra lutou duramente contra esta situação e pelos seus direitos políticos. Explosões sociais eram respondidas com uma selvagem repressão e massacres, algumas das quais já citamos.
Como parte da luta contra o apartheid, se cria o Congresso Nacional Africano, partido que nos anos 1950 começou a ter um crescimento cada vez mais acelerado até se transformar na expressão política e na direção da maioria da população negra. Seu dirigente mais conhecido e de maior prestígio popular e internacional foi Nelson Mandela, preso entre 1962 e 1990.
A luta do povo negro contra o apartheid cresceu e se radicalizou junto com o isolamento internacional do regime. Sua queda parecia inevitável e existia a possibilidade de que esta luta varresse o apartheid pela via revolucionária e avançasse também no caminho de uma revolução socialista do povo negro que destruísse as bases capitalistas da dominação branca.

Estava colocada a possibilidade de as massas, em sua luta revolucionária, expropriarem a burguesia branca.

Ante essa situação e para frear e controlar o processo revolucionário, a maioria da burguesia branca elaborou um plano de transição que desmontasse o apartheid de modo ordenado e, por sua vez, garantisse seu domínio econômico por meio da manutenção da propriedade das empresas e dos bancos. As potências imperialistas apoiaram o plano, que teve como um dos operadores o bispo negro Desmond Tutu, que ganharia o Prêmio Nobel da Paz por este serviço.

Assim, o apartheid foi eliminado, mas o sistema capitalista e a dominação econômica burguesa se mantiveram. A burguesia branca se afastaria do controle direto do Estado e aceitaria um governo do CNA para manter sua dominação de classe. Para isso, contaram com a colaboração de Mandela (libertado em 1990) que, com o CNA, passou a frear a luta do povo negro e participou das negociações e da transição até 1994, quando Mandela foi eleito presidente.

A realidade atual
O fim do apartheid foi um grande triunfo do povo negro. Ao eliminar o apartheid, obteve liberdade e direitos políticos. Os bantustões foram eliminados e, pela primeira vez na história do país, um presidente negro foi eleito.

Mas a estrutura econômica do país não foi alterada e seguiu dominada pela burguesia branca que, agora, contava com a vantagem de ter um regime e governos formados pelo CNA para defender seus interesses. Ao mesmo tempo, a nova burguesia negra aproveitou para acumular uma força econômica e passar a ser parte da classe dominante da África do Sul.
A manutenção dessa estrutura econômica explica por que o desemprego é de 25%, mas entre os trabalhadores negros chega a 40%. Mais de 25% da população vive com menos de 1,25 dólares diários.
Quase 20 anos após o fim do apartheid, a burguesia branca detém grandes privilégios e riquezas, enquanto a imensa maioria do povo negro segue vivendo na pobreza. Mas agora, essa burguesia branca tem como sócia uma nova burguesia negra, formada nas últimas décadas. Essa desigualdade explosiva é a base de um grande crescimento da violência social: são 50 mil assassinatos por ano (proporcionalmente, 10 vezes mais que nos EUA).

O CNA e o governo de Jacob Zuma
Ao assumir o controle do regime e dos governos pós-apartheid, em 1994, Mandela e o CNA mudaram seu caráter. De expressão da luta do povo sul africano contra o apartheid passaram a ser os administradores do Estado burguês sul-africano. Fizeram uma nova aliança com os antigos inimigos africâners e, em troca dos serviços prestados, os principais quadros e dirigentes do CNA se transformaram numa burguesia negra, sócia menor da branca, que lucra com os negócios do Estado. Por exemplo, o atual presidente Jacob Zuma foi acusado de corrupção, em 2005, quando era vice-presidente, por receber uma alta comissão na compra de armamentos no exterior.

Mandela abandonou a política em 1999. O sucederam diversos presidentes do CNA. Mas, nas eleições, já começaram a ficar evidentes a crise e desgaste dessa organização.
Zuma foi eleito em 2009. A imprensa estrangeira o considerava representante de um setor mais à esquerda, opositor a seu antecessor Thabo Mbeki, que aplicou uma política neoliberal de favorecimento ao ingresso de capitais imperialistas. Algumas medidas tomadas por Zuma no campo da saúde e do emprego público (numerosos cargos reservados só para negros) pareciam justificar tal definição.

Mas a realidade é que ele representa uma continuidade da linha neoliberal a favor da burguesia sul-africana. Por exemplo, a maioria dos sul-africanos pede a nacionalização da mineração, hoje nas mãos do capital estrangeiro (a empresa Lonmin, proprietária da mina Marikana, tem sua sede em Londres). O próprio dirigente juvenil do CNA, Julius Malema, defendeu a nacionalização. Mas Zuma se opôs a ela e destituiu Malema de seu cargo no CNA. A repressão aos mineiros de Marikana também mostrou de que lado está Zuma e seu governo.

Crise na COSATU?
A COSATU (Congress of South African Trade Unions) é a principal central sindical sul-africana, construída na luta contra o apartheid em oposição aos velhos sindicatos “só para brancos”. Nesse período, ganhou força e prestígio. Era um exemplo mundial para a luta dos trabalhadores. Hoje, porém, está aliada (e de fato integra) o CNA e apoia seus governos e suas políticas. Isso rendeu aos seus dirigentes grandes benefícios em numerosos cargos governamentais ou parlamentares e, também, nas empresas privadas. Por exemplo, o ex-dirigente Cyril Ramaphoosa, que foi líder da luta dos trabalhadores mineiros contra o apartheid na época em que encabeçava o sindicato mineiro nacional (NUM) e a COSATU, é hoje sócio-propietário e membro da diretoria da empresa Lonmin.

No entanto, o alinhamento com o CNA e a defesa da burguesia branca parece estar provocando uma crise no interior da COSATU. Alguns ativistas e quadros estariam propondo a ruptura com o CNA e que a central lance um partido dos trabalhadores.
Por outro lado, estariam se produzindo rupturas nos sindicatos que a integram. Algo que se expressaria na própria greve de Marikana. Segundo informações, nessa mina surgiu um novo sindicato (o AMCU), caracterizado como muito mais ativo em suas demandas, em ruptura com o da COSATU (o NUM). AMCU ganhou a maioria na mina e impulsionou a greve por aumento salarial (dos atuais 500 dólares mensais para US$ 1.500). O NUM estava contra a greve e, depois do massacre, não fez nenhuma condenação clara ao governo, mas agitava contra os “divisionistas” (o AMCU)
Pior ainda foi a posição do Partido Comunista sul-africano, integrante (ao lado do CNA e da COSATU) do tripé em que se apoia o regime. Após o massacre, o PC pediu “a detenção imediata dos dirigentes do sindicato AMCU”, acusados pelo partido de “provocar o caos com a desculpa da exigência salarial”.

Algumas conclusões
A repressão em Marikana deixou clara a realidade sul-africana. Um regime e um governo de uma organização “negra”, mas que defende os interesses da burguesia nacional (branca e negra) e imperialista. Um aparato repressivo que não vacila em perpetrar um sangrento massacre para defender o capital. Uma patronal que se sente segura e atua com cínica soberba. Dois dias após o massacre, os porta-vozes de Lonmin ameaçaram demitir os trabalhadores que não se apresentassem para trabalhar. Essa é a realidade do capitalismo na África do Sul.

Na década de 1990, o povo negro sul-africano obteve liberdades e direitos políticos que, sem dúvida alguma, devem ser defendidos. Mas continuou submetido à pior exploração capitalista em beneficio de uma minoria branca e, agora, também da nova burguesia negra oriunda de seus antigos dirigentes. Não existirá verdadeira liberação do povo sul-africano sem destruir as bases capitalistas desta exploração. Por isso, as necessárias lutas por melhores salários e condições de trabalho dignas devem avançar no caminho da revolução operária e socialista para acabar com a exploração de classe que permanece no país.

Diante do massacre de Marikana, expressamos nossa mais profunda solidariedade de classe com os trabalhadores mineiros e, especialmente, com as famílias das vítimas. A greve continua e começa a se estender para outras minas, como a Royal Bafokeng Platinum, com 7 mil trabalhadores.

Apoiamos incondicionalmente esta luta. Por isso, chamamos todos os sindicatos, organizações políticas e democráticas do mundo a realizar uma grande campanha internacional de repúdio ao massacre. É preciso punir seus responsáveis materiais, intelectuais e políticos, sejam aqueles que estão dentro do governo sul-africano, sejam da empresa Lonmin. Chamamos também uma grande campanha de solidariedade e apoio à greve de Lonmin e de outras empresas mineiras sul-africanas. Seu triunfo será o de todos os trabalhadores do mundo.

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