Um dos mais importantes debates contemporâneos no interior da esquerda socialista diz respeito ao “socialismo do século 21”, supostamente implementado por Chávez na Venezuela. As nacionalizações, a diminuição da pobreza, entre outras medidas, são apresentadas como passos nesta direção. Mas é preciso perguntar: a Venezuela realmente caminhou em direção a um novo modo de produção distinto do capitalismo?

Em 14 anos de governo Chávez, a Venezuela esteve longe de avançar sequer um passo na superação do capitalismo. Pelo contrário, o chavismo manteve as características fundamentais do sistema do capital, com políticas que reforçaram a propriedade privada, o poder do Estado burguês e beneficiaram as ações das multinacionais.

O que diz a história
O balanço sobre o “legado socialista” de Chávez precisa ser realizado sob a luz das experiências revolucionárias da história.
Durante a Revolução Russa de 1917, por exemplo, os bolcheviques colocaram em prática um conjunto de medidas transitórias para o socialismo. No terreno da economia, expropriaram os latifundiários, nacionalizaram as terras e distribuíram-nas aos camponeses pobres, estabeleceram o controle operário da produção e da distribuição de mercadorias por meio de conselhos operários e camponeses (os sovietes), romperam acordos com o imperialismo, além de instituírem o monopólio estatal do comércio exterior. Todas essas ações visavam a eliminação da propriedade privada e a implementação de uma economia socializada e planificada pelo novo Estado operário.
Tais medidas econômicas de transição possibilitaram uma elevação das condições de vida dos trabalhadores. Do país mais atrasado da Europa, a Rússia transformou-se numa potência mundial, apesar das travas da burocracia stalinista. Outro exemplo foi a revolução cubana, que possibilitou o país sustentar pod décadas os melhores índices sociais da América Latina. Hoje essas conqusitas estão sendo destruídas pelo retorno do capitalismo na ilha.
Algo bem diferente se passa na Venezuela de Chávez. A principal riqueza da Venezuela, o petróleo, continua dando lucro às multinacionais. Nem mesmos as limitadas nacionalizações modificaram este quadro.
Na medida em que o capitalismo foi preservado no país, as condições de vida dos trabalhadores não passaram por nenhuma grande alteração. Na verdade são iguais (senão piores) as condições da classe trabalhadora brasileira, enfrentando problemas como baixos salários, desemprego, superexploração e uma explosão da violência urbana.
A manutenção do capitalismo e das multinacionais na Venezuela deixa os trabalhadores na mais completa exploração. O índice de desemprego no país é de 8%, ou seja, semelhante aos altos índices apresentados em toda América Latina. Em fevereiro, o governo desvalorizou o Bolívar Forte em 46,5%, o que agravou mais ainda a desproporção entre o aumento do custo de vida e a redução dos salários reais.
O salário mínimo pago à maioria dos venezuelanos é de 2.047 bolívares,  ou US$ 324  dólares de acordo com a cotação oficial. No entanto, na cotação praticada nas ruas, no paralelo, o valor do salário mínimo cai para US$ 120 dólares ou R$ 240 reais. Ou seja, um valor muito abaixo do salário mínimo brasileiro (R$ 678 reais) ou até mesmo do mínimo pago no Paraguai (R$ 770) e Colômbia (R$ 648).
Por outro lado, o valor da cesta básica é de 8.083,52 bolívares forte (U$S 1.283 dólares). O poder de compra dos salários ainda é corroído pela inflação. No período da sua presidência, o indicador ficou em 21,8% ao ano e a inflação acumulada entre 2008 e 2012 foi de 130,9%, segundo o Banco Central do país.  
Como se vê, a economia do país está sujeitada às leis de mercado, ou seja, pelas grandes empresas, como é demonstrado pelos constantes desabastecimentos e pela alta inflação, que poderiam ser suprimidas pela estatização dos meios de produção e distribuição.

Diminuição da pobreza, manutenção da desigualdade
A diminuição da pobreza extrema na Venezuela é apresentada por muitos como prova inconteste da socialização da riqueza do Estado. De fato, houve uma queda da pobreza extrema. Caiu de 49,4% em 1999, quando o militar assumiu a presidência, para 29,5% em 2011, segundo a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL). Apesar da redução, a pobreza extrema na Venezuela é maior do que a média da América Latina, de 28,8%. Além disso, grandes problemas sociais estão longe de serem resolvidos e o abismo entre pobres e ricos ainda é imenso. Segundo os próprios dados oficiais de 2010, 20% da população detém 45% da renda nacional, enquanto os 20% mais pobres receberam apenas 6%.
A diminuição da pobreza tem a ver com a proliferação de programas sociais como as Missões. Com esse programa, os setores mais pobres do país obtiveram, pela primeira vez, acesso à atendimento médico e alfabetização. Mas achar que isso representa um “passo ao socialismo” é mais do que distorcer a realidade.
Na verdade, esse tipo de programa social foi defendido energicamente pelo Banco Mundial nos anos 90. Com as privatizações, destruição de empregos, aumento da miséria, o banco passa a defender políticas sociais para “compensar” a pobreza produzida pelo capitalismo e evitar revoltas sociais. O que se vê na Venezuela é a aplicação dos maiores programas sociais deste tipo, que apenas atenuam as chagas do capitalismo. Tais políticas também foram adotadas por outros governos do continente (sejam de “esquerda” ou de direita, como o de Fernando Henrique Cardoso).
As Missões são similares ao Bolsa Família. Nem por isso se diz que o Brasil avança em direção ao socialismo.

Classes sociais
Defensores do “socialismo do século 21” se esquecem de outra lição do marxismo: a de que o socialismo significa o fim da classe dos proprietários dos meios de produção. A Venezuela ficou anos luz deste objetivo. Não só as velhas oligarquias do país continuaram intactas, como se gestou durante o governo de Chávez uma nova burguesia. A chamada “boliburguesia” prosperou à sombra do governo.
A “boliburguesia” surgiu de ações parasitas e da corrupção do Estado, agindo como intermediários dos seus negócios com empresas privadas, ou ainda ganhando dinheiro especulando com a crise inflacionária vivida no país.
Em geral são velhos aliados de Chávez ou altos funcionários do Estado. O mais importante “boliburguês” é, sem sombra de dúvidas, o atual presidente do Congresso DiosdadoCabello e companheiro de armas de Chávez no levante militar de 1992. Ele se tornou dono de várias empresas e três bancos.

Como fica o Estado burguês?
A abolição do capitalismo significa também o fim do Estado burguês. O Estado na forma como o conhecemos hoje é um conjunto de instituições que tem a função de preservar o sistema capitalista.  
Na Revolução Russa, os bolcheviques “quebraram” o aparato de Estado burguês e o substituíram pelo Estado operário baseado no poder dos conselhos operários e camponeses. Os conselhos seriam formados por representantes eleitos em suas ramificações nas fábricas e bairros, onde também seriam eleitos os responsáveis pela administração dos respectivos setores urbanos.
Chávez nunca se propôs destruir o Estado burguês. Sua proposta era reformar a democracia burguesa para controlar melhor o poder político. Por isso, realizou uma reforma na constituinte e criou seu partido (PSUV) para controlar o movimento de massas do país.
Estas reformas agregaram uma característica cada vez mais autoritária à democracia burguesa venezuelana.  Muitos trabalhadores sentiram isso na pele quando foram à luta por suas reivindicações. A repressão brutal, assassinatos e perseguições se abateram nas greves dos trabalhadores de Sanitários Maracay, da Mitsubishi entre outras.
Por fim, o pilar fundamental do Estado burguês, as Forças Armadas (FA), foram (e continuam) o principal ponto de apoio do governo chavista, que as manteve intactas e organizadas dentro de um molde burguês, no qual os trabalhadores não têm nenhum controle sobre as armas.
 

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