Versus de 1978 denuncia caso de racismo contra jornalistas do jornal

(Revista Versus X Revista Veja)

Vivemos no maior país negro fora do continente africano. E ainda assim, vivemos sob o peso da ideologia da democracia racial. Esse peso é de toneladas e esmaga a vida dos negros e negras brasileiras, que são diariamente assassinados pelo Estado e a todo tempo, humilhados.

O caso de Daniel Alves foi a expressão de mais uma violência racista. Esse jogador de futebol foi atacado por uma banana, em alusão ao comum xingamento que os negros recebem: macacos.

Esse xingamento é muito sério e quer fazer com que os negros acreditem que não são seres humanos, mas, sim, animais, macacos, inferiores aos humanos. Essa consideração, que afirma que uma grande parcela da humanidade não é humana, legitima todas as formas de barbárie contra o povo negro.

Uma ideologia com a força de séculos, sendo propagada pelos quatro ventos e divulgada amplamente pelos meios de comunicação e pela cultura tem a perversa força de convencer os oprimidos de que não são oprimidos.

O racismo foi uma ideologia criada pela burguesia, para a burguesia. Tinha a nefasta função de legitimar a escravidão, já extinta no Velho Continente, que foi a mão de obra encontrada pela burguesia para colonizar os territórios recém-encontrados por ela. O desenvolvimento econômico de toda a América tem na sua raiz a escravidão e por consequência, o racismo. Toda a burguesia que se ergueu em nossa história sujou suas mãos de sangue negro.

Mas, a burguesia brasileira, ao mesmo tempo em que fortalecia a ideologia racista, de que os negros são inferiores aos brancos, tratou de criar a ideologia de que o racismo não existe, criou o mito da democracia racial. Isto é, a ideia de que no Brasil a miscigenação é tão grande que brancos e negros convivem em paz, em condições iguais, sem maiores dificuldades para a vida dos negros. Certamente, essa ideologia é um tema mais complexo do que essa linha, mas, já foi apresentada em outros textos e não tomará mais linhas do que isso. (ver mais aqui)

No entanto, essa ideologia, como todas as outras, tem que passar pelo crivo da realidade. E o povo pode ser enganado por muitas gerações, mas, não para sempre. A realidade do povo negro brasileiro é de um verdadeiro genocídio. Esse tema vem saltando aos olhos e tomando as capas de jornais. Desde junho, quando a juventude destravou as indignações brasileiras, a periferia reclama os seus mortos. Amarildos, Ricardos, Douglas, Cláudias, DG. O morro desce ao centro, um ônibus arde em chamas. Não passam impunes.

Parece que não apenas o povo negro está mais confiante de suas próprias forças, mas, também a burguesia está atenta a isso.

A Revista Veja é uma nítida expressão dessa movimentação da burguesia. Esta revista tem história por seus posicionamentos reacionários e é o principal veículo de comunicação impresso do Brasil. Em junho, quando se tornou impossível vencer a força das multidões que acreditavam que era preciso sair às ruas e lutar pelos seus ideais, a Revista Veja deu um giro em sua argumentação e passou a defender a ida às ruas, para disputar por dentro o processo que se abria. Estampou em sua capa a denúncia da violência policial no dia 13 de junho e tentou pautar as ruas: lutemos contra a corrupção. Mas, apresentou uma diferenciação: pintemos as caras de verde e amarelo e sejamos pacíficos.

Como já diria o ditado: “se não pode vencê-los, confunda-os”.

O fato da Veja ter sido obrigada a pautar as manifestações de junho foi uma vitória por que derrotou a sua política que era a princípio, ignorar todo o movimento. Assim o é a atual capa da Revista Veja, que estampa Daniel Alves. Isto é, a Veja foi obrigada a colocar em sua capa o racismo, foi obrigada a parar de ignorar essa realidade.

A Veja, como porta voz da burguesia revela que a luta do povo negro está em outro patamar. Os negros não se calam mais a cada ataque que sofrem. Pelo contrário: estão dispostos a armar rebeliões e a defender as suas vidas.

E a burguesia está se vendo obrigada a disputar por dentro essa luta contra o racismo.

Por que Veja não estampou Amarildo, Cláudia ou DG? Escolheu logo o negro jogador de futebol, que vive na Europa com um salário muito alto. Veja não arrisca divulgar a luta da classe trabalhadora. Pelo contrário, tenta retirar da luta do povo negro essa perspectiva de classe.

A chamada da capa de Veja diz as seguintes palavras: “Daniel Alves, da seleção brasileira e do Barcelona, comeu a banana, os racistas do estádio escorregaram na casca e o preconceito quebrou a cara – talvez para sempre”.

Nas páginas da reportagem em questão a revista divulga a campanha dos globais: “Somos todos macacos” – campanha que para nada fortalece a luta contra o racismo, pelo contrário, é uma campanha racista (ver resposta: http://www.pstu.org.br/node/20581) e disputa os métodos de luta contra o racismo. A Veja destaca a resposta de Daniel Alves pela sua inteligência e tom irônico, mais do que isso, destaca a sua não alusão a violência. Compara a resposta de Daniel à de outros esportistas que não obtiveram tanta visibilidade e diz que isso se deu por que expressavam mais intenção de violência.

Com esse conteúdo é possível notar três aspectos:

1- A Veja tenta fortalecer a ideologia de que a visibilidade das ações é obra da sua qualidade e não da correlação de forças. Isto é, a ideologia dominante é um conjunto de ideias falsas tomadas pelas massas e encaradas como verdades. Como por exemplo, que mulheres e negros são seres inferiores. São ideias divulgadas para conservar a situação atual das coisas, isto é, para legitimar a classe dominante. Desse modo, todos os eventos que se enfrentam com a ideologia dominante tendem a ter dificuldade de aparição, pois tendem a se enfrentar com o nível de consciência. E além disso, não serão divulgados por nenhum dos meios de comunicação da grande mídia, pois esta é a principal veiculadora das ideologias burguesas. Nesse sentido, cada ação executada aparece mais ou menos de acordo com a correlação de forças da sociedade. Se, como reflexo da luta de classes, há mais espaço para as pautas do povo negro, há de se aparecer essa pauta, por que o veículo de comunicação tem que ser considerado legítimo para continuar propagando suas mentiras. Mas, haverá de refletir as pautas, disputando seu caráter. Vimos isso com as manifestações de junho, vemos agora com os casos de racismo. E a reportagem de Veja diz que esse ou aquele evento foram mais divulgados pelas suas características específicas e não como fruto da correlação de forças.

2- A Veja tenta disputar o caráter do combate ao racismo. Como já apresentado acima, já é um fato da realidade que o povo negro está com mais força e encontra apoio em outros setores da sociedade. Então, a burguesia se vê obrigada a disputar essa força. Como? Confundindo e dividindo. Em primeiro lugar, escolhe como expressão desse combate o negro mais elitizado dos últimos fatos políticos midiáticos. Em segundo lugar, propõe que a saída para combater o racismo são medidas individuais, inteligentes e pacíficas. Isto é, sem se enfrentar diretamente, apresenta que o morro não pode descer ao centro, por que isso não irá mudar a realidade, isso não é pacífico, nem, aos olhos da Veja, inteligente e elegante. Caberia aos negros comer as bananas e não por fim aos arremessos.

3-A Veja abre a possibilidade de que o racismo possa ter acabado para sempre. Isso é no mínimo, indignante! Ou seja, o que essa revista está dizendo é que não é um problema tão grande assim. Está dizendo, que não há genocídio nenhum. Está dizendo para os corações que ainda choram com suas feridas abertas por Amarildo, Cláudia e DG que eles já foram vingados e devem agora se calar e voltar para a casa. Está falando: “já conseguiram o que queriam, se continuarem a partir de agora já passaram dos limites”. E assim, disputa a consciência da sua fiel leitora classe média, para que vire as costas para o povo negro, “que deve estar exagerando”.

Portanto, é possível ver que, com muita sagacidade a Revista Veja tenta usurpar uma luta. Mas, o sangue dos corpos dos nossos negros ainda está quente, Veja. E de fato, a correlação de forças virou. E de fato, se fizermos mais do que o que recomenda a sua cartilha, passaremos do limite. Mas, de qual limite? Do limite da burguesia. E este é um limite que por mais que tentem nos enganar dizendo que é intransponível, é um limite político, que deve ser estourado pela classe trabalhadora e assim o será.

Vale lembrar que enquanto vivermos em um mundo capitalista, o jornalismo de largo alcance sempre será ideológico pró-burguesia, e haverá sempre a necessidade de resistência. Ainda assim, como expressão dessa resistência, em 1978 a revista Versus (número 24, setembro de 1978) escreveu uma matéria intitulada: “Cala a boca macaco!”. Essa revista era uma revista notadamente de esquerda, com circulação entre a juventude e setores médios de São Paulo. Disputava a mesma base que lê a Veja atualmente. A partir do seu décimo número passou a se chamar: Versus Afro Latino América, como forma de combater a opressão racista. E dedicava em todos as suas edições, algumas páginas para essa temática. Não à toa, tinha em sua equipe de jornalistas, muitos membros negros (as). A matéria acima destacada é uma denúncia de cinco jornalistas da revista Versus, todos negros, que foram abordados pela polícia. O motivo? Estavam os cinco em um carro. Eram todos negros. A polícia os acusou de roubo do carro. Eles usaram as suas carteirinhas de jornalistas para se protegerem da acusação, mostraram os documentos do carro, provaram sua inocência. A polícia, treinada para não acreditar na possibilidade de haver cinco jornalistas negros, não se contentou e passou a humilhá-los, os xingando de macacos. Eles responderam. E foram levados a delegacia por desacato. Não esqueceram o grito do policial: “Cala a boca macaco!”.

A Revista Veja tem que explicar se eles foram para a delegacia por racismo da polícia ou por violência dos oprimidos. Mas, não confiamos na sua explicação, que será mais uma grande mentira. A explicação é óbvia. E a saída que os jornalistas negros deram é exemplar, fizeram uma campanha política, denunciaram em sua própria revista o racismo que sentiam em sua própria pele. Gritaram: “Não somos macacos!”, como gritaram ao policial que os xingou. O subtítulo da coluna permanente Afro latino América era: “meu jornal é minha arma e meu sorriso”. Usaram sua arma e seu sorriso: a luta política, a luta de classes.

Por isso, é indignante que a Revista Veja tente usurpar uma luta de séculos que marcou com ferro o corpo de muitas gerações de negros e negras. Esse mesmo ferro que hoje alisa os cabelos crespos e algemam os pulsos pretos. Quando a Veja diz que pode ter o racismo acabado para sempre a consequência dessa afirmação é que também deve acabar a luta contra o racismo. Essa é a luta ideológica que a Veja faz. Para que o povo negro não faça mais a sua luta e que a classe média não a legitime. E isso não é aceitável! Mas, lembre-se Veja: Não é livre quem vive a oprimir. A luta do povo negro vai continuar!

Uma singela homenagem aos jornalistas negros da Revista Versus que deixaram esse legado.